“Palavras Descruzadas”, de Bagão Félix (2022)

Surpreendeu-me este livro de Bagão Félix. Desconhecia que um tão formal ex-ministro das Finanças pudesse ter um sentido de humor tão refinado. Claro que, para ler este seu livro, tive que me abstrair que o senhor é membro do CDS, e compensou o facto de ser do Benfica.

O livro é muito curioso, sobretudo a parte, digamos, mais gramatical.

Está dividido em 5 partes: Palavra puxa palavra, Idiomatismos, modismos e idiotismos, Onomástica e toponímia, Entre letras e números e um Post Scriptum sobre o desacordo ortográfico.Achei a primeira parte mais interessante. Aqui, Bagão Félix fala sobre uma série de erros muito comuns na comunicação social e não só, como este, na página 43:

“…Já quanto ao verbo evacuar, na sua forma transitiva, significa esvaziar ou desocupar. «A sala de aula teve ser evacuada», pelo que os estudantes tiveram de ser retirados. No entanto, ainda há pessoas a dizer ou a noticiar (!) que «houve uma ordem para os alunos evacuarem imediatamente».

—

É claro que este verbo assume também a forma intransitiva, querendo dizer defecar, expelir fezes. Não admira, pois, que a «ordem para os alunos evacuarem imediatamente» não tenha sido devida e literalmente cumprida. Alguns, por manifesta prisão de ventre, outros por a fila de espera sanitária ser longa, e outros, ainda, por entenderem evacuar, mais calmamente, em casa e com um videojogo nas mãos.”

Para além de assinalar muitos outros erros comuns, Bagão Félix também demonstra o seu gosto pelas palavras ao dar publicidade í s excelentes “…greguerias” de Ramon Gómez de la Serna. São tantas que apetecia transcrevê-las todas. Deixo aqui apenas estas três:

“…A cabeça é o aquário das ideias

Ressonar é comer ruidosamente sopa de sonhos

Reumatismo é ter dor de cabeça nas pernas”

Aqui está um livro muito interessante, que proporciona algumas tardes de divertida leitura, que devia ser obrigatória para alguns elementos da comunicação social e para os defensores do Novo Aborto Ortográfico.

The Fabelmans, de Steven Spielberg (2022)

Antes do filme começar, Steven Spielberg surge no écran para nos dizer que aquele é o seu filme mais pessoal e para nos agradecer por o irmos ver num grande écran e numa sala com outras pessoas.

—

The Fabelmans é a história do pequeno Samuel Fabelman até ser aceite num estúdio cinematográfico. Vemos, primeiro, o Sammy em criança, a fazer os primeiros filmes com uma câmara que a mãe lhe dá e, depois, o adolescente Sam, a fazer filmes caseiros, já com montagem e com música a acompanhar. Ao mesmo tempo, desenvolve-se a história da família, do pai que trabalha em computadores e obriga a família a mudar-se, primeiro para Phoenix, depois para a Califórnia, da mãe, que podia ter sido uma pianista profissional, do tio Bernie que, afinal, é mais do que um tio, das três irmãs de Samuel. Ficamos a conhecer a dificuldade de integração de Sammy na escola californiana, onde é o único judeu, dificuldade que acaba por ultrapassar graças aos filmes.

Claro que Samuel Fabelman é Steven Spielberg, como o próprio já disse em diversas entrevistas e este é um dos melhores filmes que vi ultimamente.

Expresso – 50 anos

Foi há 50 anos que o Expresso saiu pela primeira vez.

Não há dúvida que, na altura, foi aquilo a que se chama uma pedrada no charco. Era um jornal diferente de todos os que existiam, moderno e arrojado. Lembro-me de ler, com entusiasmo, as colunas de Miller Guerra e de Sá Carneiro, tentando perceber, nas entrelinhas o que eles, de facto, insinuavam.

O República já fazia parte do meu dia-a-dia, e o Expresso veio juntar-se-lhe. Com o prec, o República finou-se. O Expresso, pelo contrário, foi-se fortalecendo e continuei a comprá-lo todas as semanas. Era leitura para o todo o fim de semana.

Nos últimos anos, no entanto, o Expresso já não é o que foi. É um jornal cada vez mais encostado, com um director que não esconde a sua simpatia pelos liberais, e com canais directos para o Palácio de Belém. Continuo a comprá-lo, mais por hábito do que por prazer. Folheio rapidamente o corpo do jornal, raramente me detendo num artigo. Começo a ler o editorial do director, irrito-me e desisto. Começo a ler a opinião do Miguel Sousa Tavares e acho que já li aquilo há uns tempos. A opinião dos colunistas habituais também não traz nada de novo. Em resumo, o corpo do jornal vai para a reciclagem em três tempos. Fica a Revista que ainda consegue despertar-me algum interesse. Não falho as Palavras Cruzadas!

De qualquer modo, parabéns ao Expresso.

Coisas da democracia

Três notícias na edição de hoje de o Público, fazem-nos pensar um pouco sobre o valor das democracias.

Em Portugal, a nova secretária de estado do Tesouro foi demitida depois de ter recebido meio milhão de euros de indemnização por ter sido despedida da TAP.

Faltavam-lhe dois anos de contrato, tal como a Fernando Santos, o selecionador nacional de futebol que, no entanto, recebeu 3,5 milhões de indemnização.

Percebe-se a diferença: Santos ganhou um campeonato da Europa, enquanto Alexandra Reis, a secretária de Estado, não ganhou coisa nenhuma ““ a não ser a tal indemnização.

Nos Estados Unidos, o congressista republicano George Santos admitiu que mentiu sobre a sua formação académica e o seu histórico profissional durante a campanha para as eleições intercalares de novembro.

Santos é adepto de Trump e afirmou que não é criminoso; acrescentou: “…o meu pecado foi ter enfeitado o meu currículo. Peço desculpa. Fazemos coisas estúpidas na vida”. Mesmo assim, pretende tomar posse como congressista.

Em Israel, o Parlamento aprovou duas leis que poderão permitir que os políticos passem a ter um poder quase absoluto e em que as mulheres, homossexuais, estrangeiros, ou até judeus não ortodoxos, possam perder direitos.

Um dessas alterações torna possível que políticos condenados por crimes graves como corrupção, possam ser ministros.

São coisas da democracia ““ o pior regime político, mas o único que é aceitável…

Os jornalistas passaram de conferentes a entendedores

Aqui há uns tempos era frequente os jornalistas da rádio e da televisão, dizerem coisas como estas:

* “…Vamos agora conferir como decorreu a reunião de hoje do Conselho de ministros”.

* “…Hoje foi mais um dia de greve dos trabalhadores da Transtejo; junto do representante do sindicato, o nosso repórter vai conferir a adesão í  paralisação…”

Portanto, os jornalistas conferiam. Eram conferentes.

Mas os tempos mudaram e agora, ouvimos os mesmos jornalistas a dizerem:

* Vamos agora tentar perceber como decorreu a reunião de hoje do Conselho de ministros”.

* “…Hoje foi mais um dia de greve dos trabalhadores da Transtejo; junto do representante do sindicato, o nosso repórter vai tentar perceber a adesão a esta greve”

Ou seja: os jornalistas da rádio e televisão, deixaram de ser conferentes, para passaram a ser entendedores.

E para entenderem melhor o que se passa passaram a ter a ajuda permanente dos comentadores.

Todos os canais de televisão têm os seus comentadores para questões relacionadas com a guerra, a inflação, a corrupção, os casos dos tribunais, o futebol, as crises políticas, as alterações climáticas e tudo e tudo.

Quer isto dizer que, afinal, os jornalistas não entenderam nada e precisam dos comentadores para perceberem o que se passa.

Por isso, mesmo que confiram e tentem perceber o que se passou na reunião de hoje do Conselho de ministros, precisam da ajuda de um comentador para compreenderem mesmo o que se passou.

Há qualquer coisa no curso de comunicação social que está a falhar…

“O Feiticeiro de Oz” pelo TIL

Parabéns ao Teatro Infantil de Lisboa (TIL) por esta produção de “O Feiticeiro de Oz”!

—

As nossas netas (10, 7 e 5 anos) adoraram. O texto de Ana Saragoça é uma adaptação muito boa do livro de Frank Baum, está bem esgalhado e é muito divertido.

Parabéns a Quim Tó, responsável pela música e pela direção musical, a João Cachulo pelo desenho de luz, a Kim Cachopo pela excelente cenografia, a Ana Sabino e Pessoa Júnior pelos figurinos e parabéns, claro, aos intérpretes: Bia Guimarães, Henrique Macedo, Kim Cachopo, Marta Lys, Miguel Vasques, Paulo Neto e Tiago Almeida.

foi uma tarde bem passada no Teatro Armando Cortez.

“HIstórias Bizarras”, de Olga Tokarczuk (2008)

A Cavalo de Ferro continua a publicação desta escritora polaca, vencedora do Prémio Nobel em 2019.

—

Como o nome indica, este livro, editado já há 14 anos, contém um conjunto de histórias estranhas.

Como diz a contracapa: “…um médico escocês do século XVII, ao serviço do rei da Polónia, descobre uma estranha raça de crianças verdes. Uma família de quatro mulheres idênticas, que se podem ligar e desligar, vê a sua rotina ser perturbada pelo aparecimento de dois vizinhos. Um mundo onde impera o uso do metal mantém a sua ordem graças ao sacrifício de um misterioso semideus com mais de trezentos anos. Uma mãe deixa uma estranha herança de vários frascos de conserva ao aseu filho preguiçoso”.

São, de facto, histórias bizarras, umas mais bem conseguidas do que outras.

Apesar de serem histórias em que impera o lirismo próprio de Tokarczuck, prefiro os seus romances.

Outros livros de OPlga Tokarczuk: “Casa do Dia, Casa de Noite“; Outrora e Outros Tempos; Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos; Viagens;

“Os Anos”, de Annie Ernaux (2008)

Annie Ernaux terá concluído este livro quando tinha 66 anos, após a sua aposentação. Já nas páginas finais deste livro, escreve:

“…De um dia para o outro, as aulas redigidas, as notas de leitura para as preparar, deixavam de ter qualquer utilidade. Por falta de uso, os conceitos antes adquiridos para explicar os textos apagavam-se nela ““ e quando procurava em vão o nome de uma figura de estilo, era obrigada a confessar, como a sua mãe fazia a propósito de uma flor da qual lhe escapava o nome, «já soube»”.

E mais í  frente:

—

“…Já lhe acontece, quando tenta lembrar-se das colegas do liceu na montanha, onde deu aulas durante dois anos, ver algumas silhuetas, rostos, por vezes até com extrema precisão, mas é-lhe impossível «dar nome». Desespera para tentar encontrar o nome que falta, para fazer coincidir uma pessoa com um nome, como se conciliam duas metades separadas.”

Como eu a compreendo! Passa-se o mesmo quando vejo na rua um ex-doente meu, que reconheço imediatamente, mas cujo nome se perdeu algures no espaço e no tempo, ou quando tento lembrar-me do nome de um medicamento ou até de um síndroma.

Este livro de Annie Ernaux é uma espécie de diário; são pequenos fragmentos que contam pequenos episódios a partir de uma foto, ou de uma notícia de jornal, ou de um filme, de uma canção, de um jingle comercial. Começa nos anos 40, pouco depois da Segunda Guerra e vai caminhando ao longo dos anos (daí o titulo do livro), até 2006.

Logo na página 31, escreve:

“…Não se deitava nada fora. Os baldes da noite serviam de estrume no jardim, o esterco apanhado na rua depois de passar um cavalo servia de adubo para os vasos das flores, o jornal servia para embrulhar legumes, secar por dentro os sapatos molhados, limpar o rabo na casa de banho.”

Mais í  frente, página 40:

“…O sexo era a grande suspeição no seio da sociedade, que via sinais dele por todo o lado: os decotes, as saias travadas, o verniz vermelho das unhas, a roupa interior preta, o biquíni, a mistura de sexos, a obscuridade das salas de cinema, as casas de banho públicas, os músculos do Tarzan, as mulheres que fumam e traçam a perna, o gesto de passar a mão pelos cabelos na sala de aula, etc.”

E muito mais í  frente, como último exemplo do modo como Ernaux escreve este “…diário” (página 140):

“…Os filhos, sobretudo os rapazes, dificilmente largavam o ninho familiar, o frigorífico cheio, a roupa lavada, o ruído de fundo das coisas da infância. Faziam amor, com todo o í -vontade, no quarto ao lado do nosso. Instalavam-se numa juventude longa e duradoura, o mundo parecia não estar í  sua espera. E nós, alimentando-os, continuando a cuidar deles, tínhamos a sensação de estarmos a viver, sem rutura, no mesmo tempo de sempre.”

Sem nunca se referir a ela própria especificamente, mas sim a um conjunto de pessoas que poderão ser a sua geração, Ernaux vai referindo os acontecimentos da política, a eleição de Mitterand, depois de Chirac, depois de Sarkozy, a evolução da tecnologia até ao telemóveis e os computadores, as modas, os programas de televisão, as canções, não esquecendo praticamente nada de importante, a não ser, talvez, o 25 de Abril ““ já que fala na queda da ditadura grega, por exemplo.

É um livro muito interessante, que foi finalista do Man Booker Internacional de 2009, e que poderia ainda ser mais interessante se não fosse “…tão francês”, uma vez que a autora refere nomes de apresentadores de televisão e respectivos programas e outros acontecimentos (guerras da Indochina e da Argélia) que dizem respeito apenas aos franceses. Vale a pena ler.

“Tudo é Possível”, de Elizabeth Strout (2017)

Este é o terceiro livro da série Lucy Barton, da autoria de Elizabeth Strout.

—

Começámos pelo fim, “…Oh William“, de 2021 e, como o livro nos despertou curiosidade, lemos o primeiro da série, “…O Meu Nome é Lucy Barton“, de 2016.

Se nos outros dois livros desta série, Lucy Barton, a escritora que veio de uma família extremamente pobre, é a narradora, neste “…Tudo é Possível”, ficamos a conhecer as histórias de outras personagens que Barton refere nos seus livros.

São histórias simples de pessoas simples e Lucy Barton surge apenas como personagem periférica dessas histórias.

Dos três livros, este pareceu-me o menos interessante…

“O Acontecimento”, de Annie Ernaux (2000)

Confesso que nunca tinha ouvido falar de Annie Ernaux. Claro que o facto de esta escritora francesa , nascida na Normandia em 1940, ter ganho o Nobel deste ano, me despertou a curiosidade ““ sobretudo depois de ter lido uma entrevista sua que veio publicada no Expresso.

Comecei por ler este “…O Acontecimento”, publicado há 22 anos. É um livrinho que se lê num par de horas porque não chega í s 90 páginas.

—

Ernaux, que afirma que todos os seus livros são biográficos, tem a coragem de contar como, em 1963, se submeteu a um aborto clandestino, que a fez sentir-se humilhada, abandonada e em risco de vida. Afinal, ela era uma estudante universitária e, no entanto, no que respeita ao problema que enfrentava, tanto fazia.

Embora nunca tenhamos passado por nada de semelhante, sabemos muito bem o que era, uma década depois, continuar a basear a anticoncepção no famoso método Ogino e não ter ninguém que nos informasse melhor.

Annie Ernaux descreve os factos numa linguagem simples, mas emotiva e consegue transmitir-nos a angústia por que passou nesses tempos.

Vou já iniciar a leitura de mais um livro desta escritora francesa.