“A Parede”, de Marlen Haushofer (1963)

Marlen Haushofer (1920-1970), foi uma escritora austríaca que nunca quis a notoriedade, mas que acabou por influenciar outras autoras do seu país. Escreveu três ou quatro romances e um livro de contos e morreu com 50 anos, vítima de cancro ósseo.

Este “A Parede” é o seu romance mais conhecido e parece ter sido redescoberto recentemente; como diz a badana do livro, trata-se de um “clássico ecofeminista”.

A narradora vai passar um fim de semana a um pavilhão de caça pertencente a um casal amigo, em plenos Alpes. O casal decide ir a um aldeia próxima e a narradora fica sozinha. Adormece e quando acorda, o casal não regressou. Explorando as imediações do pavilhão de caça, descobre uma parede que a isola do resto do mundo. Para lá da parede, todos os seres vivos parecem ter perecido. Terá acontecido uma qualquer catástrofe, mas a narradora não se detém muito sobre quem terá construído a parede, como ela foik parar àquela zona, nem sobre que tipo de catátrofe terá acontecido. E assim, ali está ela, aparentemente sozinha no mundo, apenas com a companhia de um cão.

Tudo isto é revelado logo nas primeiras páginas, portanto, é obra como a autora nos consegue manter interessados ao longo de quase 300 páginas, limitando-se a contar o seu dia-a-dia. Confesso que achei o livro um pouco monótono, mas, ao mesmo tempo, interessou-se esta espécie de Robinson Crusoe moderno.

A tradução é de Gilda Lopes Encarnação, numa edição Antígona.

“Atos Humanos”, de Han Kang (2014)

Han Kang (Gwangju, Coreia do Sul, 1970) foi o Prémio Novel da Literatura de 2024.

Dela, já tinha lido, A Vegetariana.

Este Atos Humanos é um pequeno livro todo ele dedicado ao período em que a Coreia do Sul viveu sob a ditadura de Park Chung-hee e dos seus seguidores. A cidade de Gwangju, onde a autora nasceu, foi uma cidade mártire, com milhares dos seus habitantes a serem barbaramente assassinados pelos militares, a mando do ditador, apenas porque se tinham rebelado contra as ordens de Seul.

As atrocidades cometidas devem ter sido horríveis e Han Kang que, na altura, teria apenas nove anos, decidiu escrever sobre isso, com o lirismo que lhe é característico.

“Retrato Huaco”, de Gabriela Wiener (2021)

Gabriela Wiener (Lima,1975) é uma jornalista, colunista e escritora peruana emigrada em Espanha.

Retrato huaco é o nome que se dá a peças de cerâmica que representam rostos indígenas e que, segundo se dizia, capturavam as suas almas.

Gabriela Wiener, mestiça, é tetraneta de Charles Wiener, explorador austríaco-francês que visitou o Peru no século 19 e de lá levou, para Paris, muitas peças de cerâmica e não só, abrindo um museu perto da Torre Eiffel.

Gabriela escreve este pequeno livro de autoficção arrojado, confessando-se adepta do poliamor, vivendo com um marido e uma namorada. Fala-nos do trisavô, colonialista, do pai, revolucionário e adúltero, da mãe e da amante do pai, bem como das suas próprias aventuras sexuais, fora do seu núcleo familiar.

É, por isso, um livro arrojado e estranho, difícil de catalogar.

Duas citações:

Página 45:

“Os meus avós paternos eram tão brancos, que eu não me sentia confortável com eles. Quando o meu avô branco morreu, a minha avó branca começou a tocar-nos um pouco mais e a peidar-se quando ia de uma divisão para a outra, saiu do armário como uma católica simpática e ensinou-me a tricotar. A minha avó chola balançava-me nas pernas e ensinava-me a rezar, enquanto falava com o meu pai como se estivesse a falar com o dono da fazenda, até que adoeceu e começou a mandar todos à merda.”

Página 110:

“Não queremos deixar de foder com brancos, o que queremos é começar a foder entre nós. Branqueámos o sexo, branqueámos o amor, racionalizámo-lo. O poliamor, por exemplo, é uma prática branca que não tem em conta como funciona a circulação do desejo e os seus limites para pessoas como nós, as feias do baile. Desconfiem dos olhos azuis e da lógica do progresso aplicada ao corpo! Deixámos de desejar e de amar corpos como os nossos, afastámo-nos das nossas próprias formas de vida amorosa e sexual, do que nos sai da cona”.

Está dito!

“A Picada da Abelha”, de Paul Murray (2023)

Calhamaço de 716 páginas, finalista do Booker de 2023, é um romance à “moda antiga”, um daqueles que poderá dar um bom filme, uma história com várias personagens, cada uma com as suas peripécias.

O livro conta a história, aparentemente banal, de uma família irlandesa, que vive numa parvónia, a duas horas de Dublin.

Maurice tem um stand e oficina de automóveis, cujos lucros lhe permitem, depois da morte da mulher, viver dos rendimentos, no Algarve. Tem dois filhos: Frank, uma estrela do futebol gaélico e Dickie, pouco dado ao desporto, mas com futuro como gestor do stand. Frank morre tragicamente e Dickie acaba por casar com a noiva de Frank, Imelda e desse casamento nascem Cassandra e JD.

Esta é a base da história. Depois, Murray desenvolve-a, dedicando uma parte do livro a cada personagem. À medida que a história se desenvolve, a trama vai-se adensando e o final é digno de um thriller.

Além disso, o autor condimenta a história com todos os ingredientes actuais: alterações climáticas, emigrantes brasileiras, abrigos anti-nucleares, dúvidas sobre a identidade de género, atenção aos pronomes correctos, crises económicas, etc.

Claro que aconselho…

“Queria? Já Não Quer?”, de Marco Neves (2024)

O subtítulo deste pequeno livro diz tudo: Mitos e Disparates da Língua Portuguesa.

Entre eles, o mito de que a palavra “bica” é um acrónimo de “beba isto com açúcar”, que é uma daquelas ideias peregrinas postas a correr nas redes sociais. O autor pesquisa, procura e até consegue, neste caso, transcrever um depoimento de um descendente dos fundadores da Brasileira do Chiado, a explicar que bica vem disso mesmo: de uma bica, a bica da cafeteira de onde saía o café de saco.

Mas o livro debruça-se sobre outros disparates, como o do título. Estará errado dizer “queria um café e um pastel de nata?”. E o que devemos responder ao empregado espertinho que nos responde: “Queria? Já não quer?”

Talvez lhe devêssemos responder:” Eu que eu queria era partir-lhe a cara, mas não devo, devido a convenções sociais, portanto, quero exigir-lhe que me traga um café!”

E, afinal, a excelente palavra “caralho” vem mesmo do cesto da gávea, ou estamos todos enganados? Quando mandamos alguém para o caralho, será que pensamos todos nesse cesto?

Enfim, mais um livrinho de Marco Neves que devia ser obrigatório ler antes de começar a usar as chamadas redes sociais…

“Só Neste País”, de Filipe Santos Costa e Liliana Valente (2024)

Terminámos o ano lendo mais um livro em conjunto. O título deste livro escrito por dois jornalistas é um das frases que mais me irritam. Sempre que oiço alguém dizer “isto só neste país”, tenho vontade de vociferar meia dúzia de impropérios. Cenas ridículas, corrupção, falhanço dos serviços públicos só acontecem neste país? Por que raio a malta que está sempre com esta frase na boca não emigra definitivamente para qualquer outro país onde nada destas coisas acontecem? Por que razão continuam por cá, no país em que só neste país estas coisas sucedem?

No entanto, para o livro em questão, o título assenta que nem uma luva.

Ao longo de mais de trezentas páginas, estes jornalistas contam-nos as cenas mais ou menos tristes, mais ou menos ridículas, que foram acontecendo nestes 50 anos de Democracia. E escrevo Democracia com letra grande porque antes do 25 de abril ninguém conseguiria publicar um livro destes, como é óbvio. E, a nível europeu, essa impossibilidade é que era só mesmo neste país (talvez também na Grécia…).

Das inúmeras historietas que o livro narra, muitas já as conhecia, como o poema que Natália Correia escreveu ao deputado centrista Morgado, as tiradas de Pinheiro de Azevedo ou de Alberto João Jardim e muitas outras.

Mas algumas foram verdadeiras surpresas, como os coices que o tenente-coronel Azeredo deu em direcção a Jardim ou o caso do bombeiro que foi multado em 15 contos por ter ultrapassado, em marcha de emergência, transportando uma bebé doente, a fila de carros de Estado, pondo em perigo a vida de Cavaco Silva, coitadinho…

O livro está escrito com  muito humor, mas a melhor frase – na minha opinião – está na página 291. Refere-se a André Ventura e a sua religiosidade:

“«Nunca vou conseguir dissociar o meu discurso público da parte religiosa», explicou Ventura. Nota-se. Em campanha eleitoral, entre em igrejas como Marcelo entra em farmácias”.

Gostámos, aconselhamos e oferecemos aos nossos familiares.

“Cem Anos de Solidão”, a série

Lemos a obra de Gabriel Garcia Marquez em 1978, num daqueles pequenos Livros de Bolso das Publicações Europa-América e aquele escritor colombiano passou a ser um dos nossos preferidos. Temos todos os seus livros publicados em Portugal. O chamado realismo mágico ou fantástico da escrita de GGM era algo de novo para nós e, ao longo dos anos, “Cem Anos de Solidão” ficou sendo um dos nossos livros preferidos, embora nunca mais o tenhamos lido.

Vimos agora os oito episódios da primeira temporada da adaptação televisiva do romance e não ficámos nada desiludidos.

A Netflix, em vez de entregar a adaptação à indústria norte-americana, preferiu a Colômbia e fez muito bem.

Na minha opinião, foi tudo bem feito: a adaptação, os diálogos, a narração, a fotografia, o ritmo, a duração de cada episódio, o modo como a história vai sendo contada – tudo perfeito!

Citar os nomes da equipa técnica e dos actores não teria muita importância, porque são pessoas desconhecidas para nós. Mas aqui ficam alguns nomes. A adaptação pertence a José Rivera e Natalia Santa, entre outros; a direcção, a Alex Garcia López e Laura Mora; o narrador é Jesús Reyes; a personagem de José Arcadio Buendía quando jovem, é interpretada por Marco Antonio Gonzalez Ospina, e, quando mais velho, por Diego Vasquez; Ursula Iguarán é interpretada por Susana Morales Cañas e, depois, por Marleyda Soto; Claudio Cataño interpretada o coronel Aureliano Buendía.

Parece que Garcia Marques nunca permitiu que o livro fosse adaptado ao cinema, muito menos, à televisão. No entanto, depois da sua morte em 2014, os herdeiros acabaram por concordar com a adaptação a série de televisão, desde que os actores fossem todos colombianos e/ou espanhóis.

Toda a série foi filmada na Colômbia e merece ser vista de uma ponta à outra.

Aguardamos ansiosamente os restantes oito episódios.

“Nexus”, de Yuval Noah Harari (2024)

Mais um calhamaço de cerca de 600 páginas deste historiador e filósofo (Israel, 1976), que atingiu o patamar de guru depois das suas obras anteriores: Sapiens, Homo Deus e 21 Lições para o Século XXI.

Neste livro, Harari faz uma “História breve das redes de informação – da Idade da Pedra à Inteligência Artificial”, como diz o subtítulo.

O autor fala-nos das tábuas egípcias, dos pombos correios (um deles até figura na capa, do telégrafo, da prensa de Gutemberg, dos jornais, rádio e televisão, enfim das mais variadas redes de informação que o homem foi criando e controlando. A inteligência artificial será a primeira rede de informação que poderá fugir ao controlo do homem. E isso será bom ou será mau? Ninguém sabe. Por enquanto.

Poderia citar muitos parágrafos. Fiquemo-nos por estes (e já são muitos):

Pág. 57

“Uma «marca» é um subtipo de história. Trata-se de um rótulo aplicado a um produto, que conta uma história sobre ele. Pode ter pouco que ver com as especificidades do produto, mas, ainda assim, o público habitua-se a associar um ao outro. Por exemplo, há décadas que a Coca-Cola vem investindo dezenas de milhares de milhões de dólares em campanhas publicitárias que nos contam e recontam a história da Coca-Cola. O público viu e ouviu essa narrativa tantas vezes que muitos passaram a associar esse preparado – afinal, uma variedade de água com sabor – a diversão, felicidade e juventude (em lugar de cáries, obesidade e resíduos de plástico). Eis o propósito de uma marca.”

Pág. 74:

“Neste aspecto, a Constituição dos Estados Unidos da América diferenciou-se das narrativas que negavam a sua natureza fictícia e chamavam a si a origem divina, como é o caso dos Dez Mandamentos. À semelhança daquele texto constitucional, também os Dez Mandamentos sancionaram a escravatura. Reza do Décimo Mandamento: «Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu próximo nem o seu servo ou a sua serva». Deduz-se daqui que Deus não vê nenhum impedimento a que as pessoas tenham escravos, objectando apenas a que se cobicem os escravos do próximo. Porém, ao contrário da Constituição dos EUA, os Dez Mandamentos não estão equipados com um mecanismo de autocorrecção. Não se lê, num Décimo Primeiro Mandamento: «Poderás emendar quaisquer destes mandamentos, bastando-te para isso o apoio de dois terços dos votantes»”

Pág. 123:

“A Bíblia diz que não devemos trabalhar ao sábado. Porém, não nos esclarece sobre o que é «trabalho». Pode regar-se um terreno cultivado? As plantas nos vasos? Pode levar-se água às cabras? Pode ler-se um livro ao sábado? E escrever um livro? E rasgar um papal? Os rabinos decidiram que ler um livro não é trabalhar, mas que rasgar um papel é trabalho, daí que, na actualidade, os judeus ortodoxos separem antecipadamente tiras de papel higiénico para usarem ao sábado”

Pág. 262

“Quando um banco central sobe as taxas de juro de referência 0,25 pontos percentuais, que impacto tem isso na economia? Quando a curva de rendimentos dos títulos de dívida pública sobre, é boa altura para os comprarmos? Em que momento é aconselhável reduzir o preço do petróleo? Tratando-se da área financeira, eis o tipo de perguntas importantes a que os computadores já conseguem responder melhor do que a maioria dos humanos. Não admira, portanto, que os computadores venham assumindo uma fatia cada vez maior das decisões financeiras de todo o mundo. Poderemos mesmo chegar a um ponto em que os computadores dominarão os mercados financeiros e inventarão ferramentas financeiras que estarão além da nossa capacidade de compreensão”

Pág. 289

“Surgindo e desenvolvendo-se as redes burocráticas centralizadas, entre os vários papéis dos burocratas, um dos mais importantes era a vigilância da população. No Império Qin, os funcionários públicos tratavam de saber quem pagava impostos e quem planeava a insurgência. Já a Igreja Católica queria saber se pagávamos dízimo e se nos masturbávamos. A Coca-Cola queria saber como nos podia convencer a comprarmos-lhes os produtos. Governantes, padres e negociantes quiseram descobrir os nossos segredos, usando-os para nos dominar e manipular”.

Recomendo.

“Visitar Amigos e Outros Contos”, de Luísa Costa Gomes (2024)

Luísa Costa Gomes gosta de nos contar histórias. Vencedora do Grande Prémio do Conto da Sociedade Portuguesa de Escritores tem já, no seu currículo, alguns livros de contos.

Depois de lermos “Setembro e Outros Contos” (2007) e “Afastar-se e Outros Contos” (2021), detivemo-nos, por estes dias, com este “Visitar Amigos”, editado já este ano.

São 13 contos, dos quais talvez destaque dois.

No conto “O Velho Senhor”, lemos este parágrafo:

“A mãe morrera num acesso de extrema discrição. Retirar-se por partes para um silêncio todo feito de modéstia, contíguo a uma etapa em que a sua única frase tinha sido, não me lembro, não sei, já não sei nada.”

O outro chama-se “Património” e começa assim:

“Na primavera dos seus quarenta e um anos, saindo de um duche frio, Félix teve a consciência de que nunca por nunca viria a ser rico. A nitidez, quase de alucinação, pode ter vindo do choque térmico, ou da fome danada com que sempre acordava. Secando-se depressa calculou que o esperavam anos e anos de contas e acertos, dívidas pequenas que iam transitando de mês a mês, mudando, na melhor das hipóteses, a intensidade com que as sentia”.

Mas há mais, muito mais…

A história “Catilinária”, começa assim:

“Não encontro dono de gato que o seja sem relutância. É comum julgar-se vítima de um acaso que lhe trouxe à porta, miando pela vida, uma exigência a que ele, por fraqueza, não resiste. Diz com ironia que é mais o gato que o tem a ele do que ele ao gato. Não convém argumentar”.

Muito bom…

“A Orgia de Praga” (1985), de Philip Roth

Este é o último livro de Roth dedicado ao seu heterónimo Nathan Zuckerman.

Após a publicação do Complexo de Portnoy, Roth foi atacado de tal modo, sobretudo pela comunidade judaica, que decidiu inventar Zuckerman, um escritor proscrito por ser judeu e criticar os hábitos judaicos.

Foram quatro livros: O Escritor Fantasma (1979), editado em Portugal em 2017, Zuckerman Libertado (1981), editado cá em 2023, A Lição de Anatomia (1983), por cá em 2015 e A Orgia de Praga (1985), aqui apenas este ano.        

Estes quatro livros de Roth não são, certamente, dos mais interessantes do grande escritor norte-americano, já que são uma espécie de vingança perante a comunidade judaica norte-americana.

Este último volume, A Orgia de Praga, talvez seja o menos interessante. No entanto, tem algumas diatribes que vale a pena assinalar:

“A Olga também é escritora. É muito conhecida na Checoslováquia pelos seus livros, pelo seu alcoolismo, e por mostrar a cona a toda a gente”.

Ou esta, ainda melhor:

“- Mas nós vivemos numa sociedade sem classes – diz ela – No socialismo. De que me serve o socialismo se ninguém me fode quando eu quero? Todas as grandes figuras nacionais vêm a Praga ver a opressão em que vivemos, mas não hã um único que me foda. O Sartre esteve cá e não quis foder-me. A Simone Beauvoir veio com ele e não quis foder-me. O Heinrich Boll, o Carlos Fuentes, o Graham Greene – e nenhum quer forder-me.”

O resto tem menos interesse…