“Eva”, de Cat Bohannon (2023)

Cat Bohannon (Atlanta, USA, 1979) é um cientista norte-americana, doutorada pela Universidade de Columbia e que com este calhamaço conseguiu mostrar como a evolução da espécie humana está relacionada com a mulher.

O livro, de mais de 500 páginas, está dividido nos seguintes capítulos: O leite, O Útero, A Percepção, As Pernas, As Ferramentas, O Cérebro, A Voz, a Menopausa e O Amor.

Com abundância de notas e de referências a estudos de diversos autores, Bohannon vai-nos guiando desde os primórdios da espécie humana até aos nossos dias, demonstrando quão importante é o contributo da mulher, grande responsável pela perpetuação da espécie.

Aprendemos muitas coisas com este livro:

“As progenitoras das espécies felídeas tendem a roncar e a ofegar; os símios guincham e fazem estalidos com os lábios. A maioria das mulheres da espécie humana prefere embalar os seus bebés e amamenta-los na mama esquerda, o que, por acaso, também permite que o bebé fique alinhado com o lado mais expressivo do nosso rosto”.

Mitos há muitos:

“Por exemplo, a vagina de uma fêmea de rinoceronte é de tal maneira complicada que, para se adaptar a ela, o macho teve de desenvolver um pénis com mais de setenta e cinco centímetros de comprimento e em forma de relâmpago. Há muito tempo, na China, houve quem vislumbrasse esse pénis em forma de relâmpago (ou se calhar assistiu às típicas duas horas e meia de acasalamento por que os rinocerontes têm de passar só para fazer funcionar esses dois malfadados órgãos) e acreditasse erradamente que as proezas físicas dos rinocerontes podiam ser transferidas para os humanos. Os chifres de rinoceronte – adquiridos ilegalmente, secos e moídos até formarem um pó – continuam a render lucros avultados aos caçadores furtivos no mercado negro.”

Outro mito:

“Todas as aves conseguem ver o vermelho. A maioria dos peixes também. Mas os gatos, não, nem os cães, as vacas ou os cavalos, os roedores, as lebres, os elefantes ou os ursos. O vermelho não faz parte dos seus mundos. Nem os touros das festas de Pamplona conseguem realmente ver a capa vermelha do toureiro nem os tradicionais lenços e casacos vermelhos dos corredores de touros que invadem as ruas da cidade como bandos de tarados assassinos de bovinos. Os touros não são agressivos por conseguirem ver a cor vermelha, que as seus olhos se assemelha provavelmente a um castanho-escuro ou até ao preto. Os touros são agressivos porque são tratados como lixo.”

Curiosidades? Muitas:

“Em termos de pressão absoluta, o músculo mais forte do corpo humano é o masséter do maxilar. No que diz respeito à pressão constritiva, o útero é o mais forte. Todavia, quando se trata de músculos que têm força e flexibilidade, o claro vencedor é a língua humana, que tem de rolar e empurrar um bolo de alimentos amassados de um lado para o outro da boca, esmagando melhor os bocados não mastigados antes de os engolir, enquanto se esquiva ao corte e trituração dos dentes em movimento. Quem já mordeu acidentalmente a língua ou a bochecha sabe que a mastigação nem sempre é fácil.”

Implícitas muitas críticas ao modo como o sexismo e a religião influenciam a evolução da espécie – e não só no mundo islâmico ou nas regiões mais pobres de África ou da Índia:

“Onde é que a maioria das mulheres norte-americanas grávidas morre? Nas comunidades pobres, sim, mas sobretudo nas comunidades pobres do Texas, do sul dos Estados Unidos e do Minesota. Em todas estas regiões, o acesso das mulheres aos cuidados de saúde e à educação para a saúde foi drasticamente reduzido nos últimos anos por vias de campanha contra o aborto, políticas educativas em prol da abstinência coimo único método de contracepção e simultaneamente uma série de cortes nos centros de saúde financiados pelo sector público”.

Estas são apenas algumas citações das muitas que poderia fazer destas excelente obra, que aconselho vivamente.

Aqui está um livro que devia ser leitura obrigatória para todos os liberais e políticos de Direita – se acontecesse o caso desses tipos lerem livros…

“A Carne”, de Rosa Montero (2006)

Este é o sexto romance de Rosa Montero que passa pelos meus olhos. Nascida em 1951, Montero escreve que se desunha, mas é um pouco irregular. Gostei muito de A Louca da Casa (2023), de “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” (2013), de “O Perigo de Estar no Meu Perfeito Juízo” (2022) e de “Instruções para Salvar o Mundo” (2008); gostei menos de “A Boa Sorte” (2020) e também deste “A Carne” (2016), que terminei hoje.

Este último é um romance mais ligeiro, em que Rosa Montero assume o início da velhice. Nascida em 1951, Rosa teria os mesmos 60 anos que a protagonista do romance, Soledad, uma solitária que se envolve com um prostituto, trinta anos mais novo que ela.

Como pano de fundo, uma das habituais obsessões da escritora: os escritores malditos que, de um modo ou outro, tiveram vidas estranhas e trágicas.

Apesar de ser um romance mais ligeiro, não deixa de ser interessante, embora o final, na minha opinião, seja um pouco atabalhoado.

“A Água do Lago Nunca é Doce”, de Giulia Caminito (2021)

Giulia Caminito (Roma, 1988) consegue, com este romance, uma narrativa convincente dos marginalizados, dos pobres, dos dependentes dos apoios sociais e que, apesar disso, tentam melhorar as suas vidas.

A narradora é a jovem Gaia. A sua mãe, trabalha a dias e é uma lutadora; o seu pai, trabalha nas obras e, certo dia, cai de um andaime e fica preso a uma cadeira de rodas; tem um irmão mais velho, filho de outro homem e dois irmãos gémeos, ainda bebés quando acontece o acidente do pai. Uma verdadeira desgraça. Mas a mãe, Antónia, luta e quer que a sua filha tenha um futuro diferente e Gaia, que não se dá muito bem com a mãe, também tenta ser diferente, fugir daquela vida. Será que consegue?

Uma imagem com texto, livro, pessoa, Cara humana

Os conteúdos gerados por IA poderão estar incorretos.Gaia sabe que é diferente das suas colegas e que nunca poderá ter o que a maioria tem:

“E depois aquilo que não tenho, desde logo a televisão, os telefilmes da Italia Uno, as madeixas louras do cabelo, os cromos dos futebolistas, o Game Boy, a PlayStation, Tom Raider, todos os livros que me proibiste (…) o curso de natação, de voleibol, de teatro, o telemóvel sempre a tocar sem nunca se cansar, o McDonald’s onde festejar o aniversário (…), os discos da Britney Spears, as idas vespertinas a discotecas menores…”

Tem vergonha do seu corpo:

“O que fiz durante anos foi tapar-me, evitar a nudez, não suportar as exibições, afastar os corpos dos outros, não por ser valente, não há em mim valentia, nada de casto ou pio, nada de impoluto, mas porque me dão nervos as pessoas nuas, ter de as satisfazer, não saber aproximar-me delas, os cheiros que têm, os cheiros que eu tenho, a boca que entreabrem, os lábios que humedecem, as palavras sussurradas que dizem”.

E também há coincidências engraçadas:

“Trocamos ainda assim números de telefone e ela deixa-me a estudar, levanta-se e sacode com a maõ o vestidinho às bolinhas e chama o cão que se chama Gin, como gin tonic diz-me ela e sorri…”

Gostei muito.

“Orbital”, de Samantha Harvey (2023)

Samantha Harvey (Kent, UK, 1975) venceu o Booker Prize de 2024 com este livro.

Penso que o júri valorizou a originalidade deste pequeno livro, cuja acção se desenrola numa estação orbital durante apenas 24 horas.

Lá dentro, seis astronautas de diversas nacionalidades entregam-se às suas actividades rotineiras enquanto a escritora vai descrevendo as diversas órbitas, são 16 ao todo, e o que se vai vendo em cada uma delas, os oceanos, os continentes, um tufão que se está a formar, os acidentes geográficos. Achei o livro monótono e tive alguma dificuldade em lê-lo até ao fim. Com efeito, embora sejam curiosos alguns pormenores relacionados com a vida a bordo de uma estação orbital, a descrição acaba por ser um pouco entediante

“As Coisas”, de Georges Perec (1965)

Segundo a badana, “As Coisas”, romance de estreia de Georges Perec (1936-1982), tornou-se um “clássico da literatura contemporânea.”

Pode ser que sim, mas é um romance demasiado datado e muito localizado em França e numa certa juventude francesa dos anos 60 – que nada terá a ver com a portuguesa dessa época, por exemplo.

Os protagonistas são Sylvie e Jerôme, dois jovens que desistem dos estudos e se dedicam a fazer inquéritos para empresas de publicidade, actividade muito em voga naquela época (em Portugal, um pouco mais tarde, penso).

Apesar de viveram com pouco dinheiro, o grande objectivo da sua vida era tornarem-se ricos e adquirir coisas – daí o título do livro.

Incapazes de conseguirem os seus objectivos em Paris, decidem partir para a Tunísia, que foi um protectorado francês até 1956. Aí, numa cidade triste, Sylvie foi professora e Jerôme não fez nada. Acabaram por regressar a Paris, sem terem conseguido enriquecer.

Apenas interessante.

“Os Enamoramentos”, de Javier Marías (2011)

Javier Marias (1951-2022) tem um estilo inconfundível. A história pode ser muito simples, mas ele envolve-a em considerações filosóficas que a tornam muito longa e complexa, usando parágrafos longos e usando e abusando da conjunção coordenativa “ou”.

Neste romance, Marías conta-nos, mais uma vez, uma história muito simples, embora um pouco tétrica, mas usou um truque narrativo que não sei muito bem se resultou: a história é narrada por uma mulher. confesso que, ao ler certas passagens de enamoramento, digamos assim, essas passagens me soaram um pouco a falso porque, mesmo que não quisesse, sei que o autor é um homem.

Exceptuando estas minudências, é sempre um prazer ler um livro deste autor que desapareceu precocemente.

“Conta-me tudo”, de Elizabeth Strout (2024)

Elizabeth Strout (Portland, EUA, 1956), criou um universo que lhe permite escrever livro atrás de livro.

Depois de ter ganho o Pulitzer com a obra Olive Kitteridge, criou outra personagem, a escritora Lucy Barton e, neste último livro, faz com estas duas personagens se encontrem.

Olive, uma ex-professora agora com 90 anos, escuta as histórias que Lucy lhe conta, mas, ao mesmo tempo, vamos conhecendo muitas outras histórias relacionadas com os amigos e os vizinhos.

Resumindo: é a vidinha em Crosby, pequena terra situada no Maine, onde life goes on.

O segredo destes livros é simples: falar do dia a dia de pessoas simples, com as suas angústias, as suas desgraças e as suas coisas boas.

No entanto, penso que depois de todos estes livros, Elizabeth Strout esgotou a mina.

“Kairos”, de Jenny Erpenbeck (2021)

Kairos era o deus grego do tempo oportuno e foi com um livro com este título que Jenny Erpenbeck, nascida em Berlim Oriental em 1967, ganhou o Booker Prize Internacional de 2024.

A acção do livro começa em julho de 1986, quando Hans, um intelectual com mais de 50 anos, casado e com um filho, se encontra, num dia de chuva, com Katherina, uma estudante de 19 anos. Nasce então uma paixão que, com os anos, se transforma numa relação sado-masoquista. Depois de uma grande fascínio mútuo – ele, pela juventude dela, e ela, pela maturidade e experiência dele –  a coisa descamba para uma relação de poder, que ele exerce sobre ela, depois de Katherina ter tido uma experiência com outro jovem.

No fundo, a relação entre Hans e Katherina é uma metáfora para o declínio de uma nação, a RDA, e o despontar de uma Alemanha unida.

A certa altura, Katherina consegue autorização para visitar a avó, que vive em Berlim Ocidental e fica espantada com o que vê no metropolitano:

Uma imagem com texto, Tipo de letra, preto e branco

Os conteúdos gerados por IA poderão estar incorretos.“Junto às escadas que descem para o metropolitano, está sentado no chão um velho de barba por fazer, a dois metros de distância, uma rapariga, não muito mais velha que Katherina, mas que magra está, tem ar de doente, ao pé dela estão sentados dois homens jovens mal vestidos. Estão todos sentados no chão nu. O velho pôs à sua frente um letreiro onde escreveu em letras tortas: TENHO FOME. Um dos jovens dormita, o outro espera juntamente com a rapariga diante de um prato com alguns trocos. Claro que Katherina sabe que, no Ocidente, há mendigos, mas é uma coisa diferente ver isso com os próprios olhos”.

Na RDA não havia mendigos, pelos vestidos, mas havia outras necessidades e, quando Katherina vai a Colónia, visitar a avó, não perde a oportunidade para comprar vestidos que não existem no seu país.

A certa altura, Hans e Katherina vão visitar Moscovo e espantam-se com a monumentalidade do metropolitano da cidade:

“Já andaram agora quatro vezes de metro, e cada estação tem um aspecto diferente (…)

Ao entrar e sair há empurrões e cotoveladas, mas lá dentro, nas carruagens, no maior dos apertos, há sempre uma série de pessoas de livro na mão numa perfeita calma. Gente simples, operários, empregados, a ler. E livros bons, não uma porcaria qualquer, diz Hans. Em nenhum outro país, diz ele, qualquer vendedor e qualquer operário das obras é capaz de dizer poemas de cor”.

O elogio do intelectual, ignorando tudo o resto, nomeadamente, a falta de liberdade que, segundo ele, só conduzirá ao capitalismo.

As páginas mais interessantes do livro, na minha opinião, acontecem depois da queda do muro de Berlim. Nessa altura, a relação entre Hans e Katherina já se degradou – aliás, nunca é feita crítica nenhuma, ao facto de Hans ser casado e ignorar a sua mulher, Ingrid e o seu filho adolescente. São coisas que acontecem…

“Quando, em contrapartida, Katharina percorre a parte ocidental, sente-se como uma cópia de má qualidade das pessoas que têm ali o seu quotidiano, sente-se como uma embusteira, em risco permanente de ser desmascarada. Com os seus olhos, que, na outra metade da cidade, são os olhos de uma estranha, vê que, nas lojas do Ocidente, há muito tempo todas as necessidades imagináveis foram respondidas por um produto, a liberdade de consumo parece-lhe uma parede de borracha que separa as pessoas dos anseios que estão além das suas necessidades pessoais.”

Em conclusão: trata-se de um livro curioso, mas não é um dos meus preferidos.

“O Lago da Criação”, de Rachel Kushner (2024)

Rachel Kushner (Oregon, EUA, 1968) é já uma romancista norte-americana consagrada.

Dela já li Telex de Cuba (2008), Os Lança-Chamas (2013) e O Quarto de Marte (2018).

Sáo todos romances actuais, com implicações políticas e este O Lago da Criação não foge à regra.

Foi finalista do International Booker Prize e trata-se de um romance de espionagem à moda antiga, com a característica específca de ser narrado por uma mulher.

Sadie Smith é uma espia contratada para se infiltrar num grupo de activistas franceses, prontos a pôr em causa o status quo.

Sadie é implacável, e tem um humor muito especial, não se importando que o seu disfarce a obrigue a algumas cenas menos, digamos, formais. Faz-se passar por namorada de um grande amigo do líder do grupo activista, com tudo o que isso a obrigada a fazer, nomeadamente sob o ponto de vista sexual:

“Baixou-me os calções e pouco depois senti-lhe o hálito quente entre as minhas pernas. Sabia o que esperar. A língua na minha vulva era um prelúdio, um serviço que era sobretudo um pedido. (…)

Não sentia a menor atracção por Lucien, mas nessa tarde, naquele quarto de hotel, fechei os olhos, concentrei-me e, fingindo que me masturbava com um aparelho, ainda que o aparelho fosse o corpo de outra pessoa, consegui vir-me, precipitando assim o orgasmo dele, como cavalheiro que era.”

Sadie é americana e aceita trabalhos na Europa, nunca revelando quem a contrata. Desta vez está em França.

“…ou trufas secas, mostardas e frascos de carne gelatinosa semelhante a comida de gato, que os franceses apelidam de «terrine» e comem como se não fosse comida de gato”.

A crítica aos franceses está presente ao longo do livro:

“«Mas vai e diverte-te», dissera a Vito. «Os meus familiares teriam feito tudo para pertencer a um clube como esse. Em vez disso, esfregavam chãos e eram confundidos com portugueses.»”

A história é muito boa e poderá dar uma excelente mini-série de televisão, se alguém pegar nela.

Os activistas que Sadie infiltra, querem impedir as autoridades francesas de constituírem as chamadas mega-bacias hidrográficas que vão alimentar a agricultura intensiva. Têm, como mentores, alguns dos antigos activistas do Maio de 68 e toda a narrativa está cheia de ironia, como se este fosse um romance policial negro.

“Acho que confundiu água com identidade. Como aquelas pessoas que vão para o ioga e se convencem de que lhes bastará respirar para resolverem todos os problemas que têm.”

São 400 páginas de puro divertimento.

“A Parede”, de Marlen Haushofer (1963)

Marlen Haushofer (1920-1970), foi uma escritora austríaca que nunca quis a notoriedade, mas que acabou por influenciar outras autoras do seu país. Escreveu três ou quatro romances e um livro de contos e morreu com 50 anos, vítima de cancro ósseo.

Este “A Parede” é o seu romance mais conhecido e parece ter sido redescoberto recentemente; como diz a badana do livro, trata-se de um “clássico ecofeminista”.

A narradora vai passar um fim de semana a um pavilhão de caça pertencente a um casal amigo, em plenos Alpes. O casal decide ir a um aldeia próxima e a narradora fica sozinha. Adormece e quando acorda, o casal não regressou. Explorando as imediações do pavilhão de caça, descobre uma parede que a isola do resto do mundo. Para lá da parede, todos os seres vivos parecem ter perecido. Terá acontecido uma qualquer catástrofe, mas a narradora não se detém muito sobre quem terá construído a parede, como ela foik parar àquela zona, nem sobre que tipo de catátrofe terá acontecido. E assim, ali está ela, aparentemente sozinha no mundo, apenas com a companhia de um cão.

Tudo isto é revelado logo nas primeiras páginas, portanto, é obra como a autora nos consegue manter interessados ao longo de quase 300 páginas, limitando-se a contar o seu dia-a-dia. Confesso que achei o livro um pouco monótono, mas, ao mesmo tempo, interessou-se esta espécie de Robinson Crusoe moderno.

A tradução é de Gilda Lopes Encarnação, numa edição Antígona.