“O que Podemos Saber”, de Ian McEwan (2025)

McEwan continua a ser um dos meus escritores preferidos e este último livro é mesmo muito bom.

Thomas Metcalfe é um universitário académico que estuda a literatura do século 21. Ele e a sua companheira Rose, também académica, vivem em 2119, numa Europa destroçada pelas alterações climáticas, numa Inglaterra transformada num arquipélago, depois da Grande Inundação, num mundo totalmente alterado pela Desordem, em que a América voltou à confusão do wild west e em que a Nigéria domina a internet.

McEwan não perde muito tempo a explicar como é o planeta Terra no século 22. A história é narrada por Thomas e ele vive naquela actualidade e não sente necessidade em explicá-la, dando-nos, apenas, algumas pistas que nos permitem pensar que o mundo mudou muito depois de ataques nucleares e alterações climáticas extremas.

Thomas está obcecado por um poeta inglês do século 21, Francis Blundy e, sobretudo, pela sua mulher, Vivien. Na noite em que Vivien festejava o seu 54º aniversário, Francis ofereceu-lhe um poema, em forma de coroa, uma série de sonetos em que o último verso é o primeiro verso do soneto seguinte. Seria uma cópia única, escrita em pergaminho, e que até então, nunca tinha sido encontrado.

Francis Blundy não acreditava nas alterações climáticas, mas Thomas pensa que talvez aquele poema pudesse mostrar que ele estava a mudar o seu pensamento e não descansa enquanto não o encontrar.

Entretanto, pesquisa tudo o que pode sobre o poeta, a sua mulher e os amigos que estiveram no célebre jantar onde o poema foi lido, vasculhando e-mails, diários escritos on-line e outros documentos. Acabará por deduzir que o poema poderá estar enterrado algures perto da propriedade onde Francis e Vivien viveram, entretanto, localizada numa das pequenas ilhas, onde apenas se pode ir de barco dirigido por um capitão conhecedor daquele mar estranho, cheio de torres de igrejas.

O que fica de cada um de nós quando morremos?

Daqui a cem anos, o que poderão saber sobre cada um de nós? Por mais fotos que publiquemos no Instagram, por mais post colocados no X, ou no Facebook, ou no Whatsapp, por mais blogs que inventamos, como poderá alguém, daqui a cem anos, reconstituir a nossa vida, as nossas intenções, o que de facto nos aconteceu?

É isso que McEwean nos mostra, magistralmente, com a segunda parte deste livro, um longo capítulo, em que Vivien Blundy nos conta a sua vida e as suas atribulações e nos revela um segredo que não consta de nenhum e-mail, de nenhum diário, de nenhum registo informático.

Mesmo depois de lermos esse longo capítulo, a nota final que McEwan acrescenta e que diz que esse capítulo foi anotado e editado por Thomas Metcalfe deixa-nos a dúvida: será que essa é toda a verdade?

Um dos melhores livros que li nos últimos tempos!

Outros livros de McEwan: A Barata; Máquinas Como Eu; Numa Casca de Noz; A Balada de Adam Henry; Mel; Na Praia de Chesil; Cães Pretos; Entre os Lençóis; O Jardim de Cimento; Solar; Lições

“Mortes Fabulosas dos Antigos”, de Dino Baldi (2010)

Há livros para todos os gostos e sobre tudo e mais alguma coisa.

Dino Baldi, ensaísta e tradutor de textos clássicos, decidiu fazer um livro em que nos conta as mortes de numerosas personagens da antiga Grécia, do Império Romano e de outras civilizações da chamada Antiguidade Clássica.

Para além da descrição pormenorizada de como essas personagens morreram, Baldi aproveita para contar alguns pormenores curiosos das suas vidas.

Por exemplo, a propósito do imperador Cláudio, conta:

“Todavia, no geral, parece que não foi um mau príncipe, tendo sido, pelo contrário, bastante justo e tolerante, considerando a média dos seus antecessores. Certa vez, por exemplo, ponderou emitir um decreto através do qual autorizava que as pessoas arrotassem e se peidassem durante os banquetes, ao saber que um indivíduo quase morrera após se ter contido na sua presença.”

Uma das características do livro – que, com a descrição de tantas mortes, se torna um pouco monótono – é, sem dúvida, os nomes de algumas personagens e o modo como se relacionam, como se vê por este naco:

“Os seus filhos, além de irmãos de Agripina Menor, Nero César e Druso César, foram escolhidos como herdeiros por Tibério após a morte de Germânico e do filho Druso Menor, embora por ordem de Sejano o primeiro tenha sido exilado na ilha de Ponza com a acusação de homossexualidade e subversão, onde morreria por suicídio ou fome, o segundo tenha sido aprisionado nos calabouços do palácio imperial, sendo que também ele morreria de fome, constrangido a comer, segundo dizem, o estofo da cama. Druso Menor já estava morto, envenenado com toda a probabilidade pela mão da mulher, Cláudia Lívila, irmã de Germânico e neta de Augusto, bem como de Sejano, que aspirava secretamente à sua mão e ao império”.

E continua neste tom por mais umas quantas páginas.

Ficamos aliviados quando o livro chega ao fim…

“Todos os Amantes da Noite”, de Mieko Kawakami (2011)

Mieko Kawakami (Osaka 1976) é considerada uma das mais importantes escritoras japonesas da actualidade.

Depois de ter lido o excelente “Seios e Óvulos”, fiquei com curiosidade para ler este “Todos os Amantes da Noite”, publicado nove anos antes e não fiquei desiludido.

Kawakami conta-nos a história de Fuyuko, uma revisora de textos freelancer, na casa dos trinta anos. Vive sozinha e teve apenas uma experiência sexual, muito má – no fundo, foi violada por um colega de escola.

Com uma vida monótona e triste, Fuyuko acaba por cair no alcoolismo. O saké e a cerveja ajudam-na a descontrair-se e a enfrentar o mundo. A certa altura conhece um homem, que diz ser professor, e a sua vida muda por algum tempo.

A escrita de Kawakami cheira a Japão por todos os lados e quem a ler percebe o que quero dizer, embora a tradução, que é feita a partir do inglês, use expressões idiomáticas que são demasiado portuguesas para serem ditas por uma japonesa.

Outra curiosidade: Fuyuko é revisora de textos e diz que não há livros perfeitos, que todos os livros têm erros, que escapam as revisores e editores, e este livro não foge a essa regra. Na página 127, quando a jovem Fuyuko está no quarto do rapaz que a há de violar, escreve:

“(…) entretive-me a olhar para as minhas mãos e para os pelos do tapete onde pousara o meu saco. Imaginei um globo terrestre suspenso entre mim e o tapete. Depois de ter circum-navegado, atravessando mares e oceanos, deixei que rodasse devagar até chegar à América do Sul, onde adquiriu a forma filiforme da Argentina…”

Tenho quase a certeza de que a autora estava a pensar no Chile e não na Argentina.

Mas gostei.

“A Desconhecida do Retrato”, de Camille de Peretti (2024)

Estes factos são verdadeiros: pintado em Viena, em 1910, o quadro de Klimt, Retrato de Uma Senhora, é comprado por um colecionador anónimo em 1916, alterado pelo mestre no ano seguinte e depois roubado em 1997, antes de reaparecer em 2019 nos jardins de um museu de arte moderna de Itália.

A partir desta história verdadeira, a escritora, nascida em Paris em 1980, inventou uma história à volta destes eventos que mais parece o enredo de uma telenovela, com muitos clichés.

Camille de Peretti foi “aprendiz de análise financeira num banco de investimentos em Singapura, professora de cozinha francesa na televisão japonesa num programa chamado A Cozinha de Camille e, depois de obter o diploma, inscreveu-se no Cours Florent, famosa escola de teatro, e criou uma empresa de eventos.”

Para além de tudo isto, teve tempo de escrever este livro de 300 páginas em que inventa uma história inverosímil e muito cor-de-rosa.

Cansativo.

“A Invenção da Biologia”, de Jason Roberts (2024)

O escritor californiano Jason Roberts escreveu um excelente livro sobre duas personalidades que acabaram por inventar aquilo a que chamamos História Natural, abrindo caminho, por exemplo, a Charles Darwin: Lineus e Buffon.

Confesso que, embora conhecesse Lineus, a partir da classificação das plantas e dos animais, sendo famosa a expressão “vulgar de Lineu”, nunca ouvira falar de Buffon e, no entanto, este naturalista francês é tão ou mais importante que o sueco.

Lineus e Buffon foram contemporâneos. Lineus viveu em Upsala, na Suécia, entre 1707 e 1778 e Buffon, em Paris, 1707 e 1788. O sueco defendia que todos os animais e plantas e minerais existiam desde o princípio do mundo, criados por Deus, Buffon desconfiava disso e por pouco que não “inventou” a teoria da evolução das espécies.

Este livro de Jason Roberts vai acompanhando a vida e os estudos de Lineus e de Buffon e fazendo uma resenha histórica muito interessante.

Uma curiosidade:

“Vivendo nós numa época em que os frutos tropicais são presenças habituais nos supermercados locais, é fácil esquecer o clamor que a visão de um simples ananás ou de uma banana suscitava nos europeus. O que os impressionava não era apenas o próprio artigo, mas também a longa e dispendiosa cadeia de esforços necessários para o transportar entre climas diferentes. (…)

Nos anos 1730, os plebeus pagavam o equivalente a oito mil dólares actuais por um ananás”.

Lineus deixou-nos uma taxonomia que ainda hoje é aceite, mas, no seu tempo, tentou organizar tudo, incluindo a espécie humana, de um modo muito polémico para os dias de hoje:

“Homo sapiens americans – coloração vermelha, colérico, direito. Cabelo preto, liso, espesso; narinas largas; face áspera; barba escassa. Teimoso, bem-disposto; livre. Pinta-se a si mesmo com as linhas vermelhas de Dédalo. Regido pelos costumes.

Homo sapiens europaeus – pele clara, rosado, musculoso. Cabelo louro, solto. Olhos azuis. Gentil, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas. Regido por leis.

Homo sapiens asiaticus – amarelado, melancólico, rígido. Cabelo enegrecido. Olhos escuros. austero, arrogante, ganancioso. Coberto por vestes largas. Regido pelas opiniões.

Homo sapiens afro – cabelo preto contorcido. Pelo sedosa. Bnariz arrebitado. Lábios cheios. Mulheres de peito nu, sem vergonha; amamentam muito tempo. Dissimulados, lentos, descuidados. Untam-se espessamente. Regido pelo capricho.”

Além de botânico e zoólogo, Lineus também se dedicou à Medicina. Aliás, naqueles tempos, a Medicina não passava de uma espécie de sub-ciência da Botânica, uma vez que os medicamentos se limitavam a certas plantas. Lineus escreveu um livro sobre isso:

Um paciente diagnosticado com Mentalis pathetici por exibir um grau indecoroso de desejo sexual devia ser tratado com plantas com «cheiro grosseiro» – Himantoglossum hircinum, erva-fedegosa, Linaria vulgaris – visto que as pessoas raramente querem copular quando sofrem de náuseas.”

O livro de Roberts não se limita às vidas de Lineus e de Buffon, mas continua até perto dos nossos dias, falando também de Darwin, Mendel e, por exemplo, de Julian Huxley, irmão de Aldous, o autor do clássico “Admirável Mundo Novo”.

Huxley foi um divulgador da Ciência e considerava que o conhecimento da biologia podia tornar o mundo um lugar mais equitativo, uma vez que podia eliminar o preconceito.

“Porém, a celebridade de Huxley tornava-se cada vez mais controversa. (…) considerava seu dever contrapor a ciência ao preconceito. Isso suscitava-lhe a antipatia dos conservadores do sul americano, quando ele e H.G.Wells comentaram que «em algumas das regiões mais atrasadas dos Estados Unidos (…) há uma campanha gigantesca pela penalização de qualquer ensinamento da Biologia que possa contradizer a Bíblia»”.

E ainda hoje é assim, sobretudo agora, graças ao cabrão do Trump e seus apaniguados.

Muito bom livro!

“Funeral Divertido”, de Ludmila Ulitskaya (1997)

Alik é um russo emigrado nos Estados Unidos, pintor sofrível, que está à beira da morte. Confinado à cama, os seus últimos momentos são rodeados de uma série de personagens mais ou menos caricatas, incluindo a sua actual e a sua ex-mulher, a sua filha adolescente e mais uma série de supostos amigos, todos russos, todos emigrantes.

Ulitskaya nasceu em 1943, nos Urais e estudou e cresceu em Moscovo, vivendo actualmente em Berlim.

Apesar de um dos principais protagonistas estar a morrer, o tom do livro é sarcástico e, apesar de ser traduzido do russo pela dupla de tradutores Nina e Filipe Guerra, dá a sensação de que algumas piadas ficam perdidas na tradução, que serão piadas demasiado russas, por assim dizer…

Gostei desta:

“O que importava era isto: ambos eram médicos de nascença, no mesmo sentido em que as pessoas nascem loiras, cantoras ou cobardes, ou seja, por imposição da natureza; havia em ambos o instinto da compreensão do corpo humano, um bom ouvido para a circulação do sangue, uma maneira especial de raciocinar”.

O livro foca-se nos emigrantes russos na América, mais especificamente, os judeus russos e a sua maior ou menor dificuldade em se adaptar.

“Alik, um homem do terceiro mundo, o da Rússia, aos trinta anos travou conhecimento com a Europa e a América. Primeiro, Viena e Roma (com todas as delícias italianas que não chegaram a saciá-lo durante quase um ano)… Só quando emigrou para a América e lá se fixou, sem sair das duas fronteiras, compreendeu a inveja americana velha Europa, com a sua decrepitude diáfana, o seu requinte e quase esgotamento cultural, assim como compreendeu a atitude arrogante, mas no fundo também invejosa, da Europa em relação à América espadaúda e elementar”.

Um curioso pequeno livro.

“Licença para Espiar”, de Carmen Posadas (2022)

O subtítulo deste livro diz: “o romance sobre as mulheres que se dedicaram à perigosa arte da espionagem”.

Na verdade, não é propriamente um romance, mas sim uma espécie de ensaio em que se misturam factos históricos com recriações da autoria da escritora.

Carmen Posadas nasceu em 1973, em Montevideu, mas vive em Madrid e teve uma boa ideia para este calhamaço de mais de 400 páginas: fazer uma revisão histórica das mulheres que terão exercido o míster de espionagem, desde antes de Cristo até aos nossos dias. Tão ambicioso projecto tem altos e baixos, histórias mais interessantes e outras um pouco monótonas. Destaco as histórias relacionadas com episódios mais recentes, nomeadamente com as duas espias que terão estado envolvidas no assassinato de Trotsky. Estranhamente, no episódio relacionado com a invasão das tropas napoleónicas, Posadas parece ignorar que essas tropas invadiram também o território português e apenas fala da resistência dos espanhóis.

De qualquer modo, é um livro curioso.

“Sobre o Cálculo do Volume – I” – de Solvej Balle (2020)

Solvej Balle é uma escritora dinamarquesa nascida em 1962 que, com este livro, conseguiu ser finalista do Booker Prize deste ano.

Parece que os escritores nórdicos gostam de publicar as suas obras em vários volumes. Tivemos o exemplo do norueguês Knausgard, com os seus seis volumes de autobiografia romanceada e agora temos esta escritora com este projecto que engloba sete volumes.

O que está na base destes sete livros é já conhecido e explorado anteriormente: a protagonista acorda sempre no mesmo dia, dia após dia. O exemplo mais conhecido é o do filme Groundhog Day, de 1993, realizado por Harold ramis e protagonizado por Bill Murray.

No caso deste livro de Balle, há uma pequena grande diferença. A protagonista, Tara Selter, apercebe-se que acorda sempre no dia 18 de novembro, mas que as restantes pessoas, não, nomeadamente o seu companheiro Thomas, que, dia após dia, repete sempre os mesmos gestos. Ela, pelo contrário, tenta mudar alguma coisa, na tentativa de saltar para o dia 19.

Este primeiro volume tem apenas 150 páginas e fico a pensar que voltas é que a autora vai dar para encher mais seis livros?…

“O Estado Novo em 101 Objectos”, de Fernanda Cachão (2025)

Os deputados do centro-direita e, sobretudo, os venturistas, deviam ser obrigados a ler, várias vezes, este excelente calhamaço.

O primeiro a ser obrigado até devia ser Paulo Portas, aquela espécie de Sebastião Bugalho do século passado que, em entrevista conduzida por Carlos Cruz, disse, há muitos anos, que o fascismo nunca existiu em Portugal.

A jornalista Fernanda Cachão fez um extraordinário trabalho de pesquisa e é difícil destacar esta ou aquela entrada nesta espécie de enciclopédia do fascismo à portuguesa.

Vou dar apenas alguns exemplos:

* A entrada 14 tem o título “A carta da irmã Lúcia”.

“De toda a correspondência trocada pelos dois homens (Franco Nogueira e Salazar), destaca-se este cartãozinho com o selo do Patriarcado (…)

Segundo o diplomata do Estado Novo e biógrafo de Salazar, o ditador atravessava uma grande crise psicológica. Esses meses de fragilidade, a seguir à vitória dos Aliados e à queda dos fascismos na Europa, deixava Portugal politicamente isolado face ao triunfo das democracias. (…)

«António, nesta hora de tantas preocupações, desgostos e talvez dúvidas para ti, envio-te este trecho de uma carta da Irmã Lúcia, a vidente de Fátima, que acabo de receber. Deve levar-te muita consolação e confiança. (…) escuso de dizer que isto que ela diz, o não diz por ela mesma, mas por indicação divina. (…)

O Salazar é a pessoa por Deus escolhida para continuar a governar a nossa Pátria, a ele é que será concedida a luz e graça para conduzir o nosso povo pelos caminhos da paz e da prosperidade.”

Ora se a irmã Lúcia dizia que Deus lhe tinha dito que Salazar é que era o tal, quem éramos nós para o contradizer? E assim, tivemos de o aturar todos aqueles anos!

* A entrada 52 é dedicada à Constituição de 1933, que foi referendada:

“A 19 de março de 1933, o voto foi obrigatório, mas só votavam os chefes de família, e as abstenções foram contadas como votos a favor”.

Deve ter sido então que foi inventada o refrão: quem cala, consente.

* Na entrada 57, A Lista dos assinantes da Seara Nova, lê-se:

A Seara Nova publicava ainda textos de Vladimir Ilitch (porque se omitia Lenine do nome do autor) ou de Carlos Marques (na realidade Karl Marx).”

Os censores, além de incultos eram estúpidos…

* A entrada 59: A carta que denuncia o «passador»

A máquina burocrática do Estado sustentou a actividade da polícia política. Nas suas diversas esferas sociais, o cidadão era obrigado a pedir múltiplas autorizações e preencher os mais diversos documentos. Queria sair do país? Tinha de pedir ao Governo Civil? A professora desejava casar? Tinha de pedir um atestado de idoneidade do futuro marido. O estudante matriculava-se na Universidade? Um dos impressos ia direitinho para a Pide”

Agora, o PSD também quer obrigar as mães a pedirem um atestado de 6 em 6 meses para poderem continuar a dar de mamar…

* Na entrada 80, podemos ler um dos mais profundos pensamentos de Salazar – esse que muitos acham que faz muita falta a Portugal (aliás, um nunca chegaria, pelos vistos!…). Disse o Botas:

“É mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar o povo a ler. É que os grandes problemas nacionais têm de ser resolvidos, não pelo povo, mas pelas elites enquadrando as massas.”

* Na entrada 84, podemos recordar algumas publicações do Diário do Governo. Esta diz respeito aos direitos das mulheres. O que diria a isto a judiciosa Rita Matias?

Foi extensa a legislação que abrangeu a mulher, desde aquela que impedia o exercício da carreira diplomática, da magistratura judicial e de cargos de chefia da administração local, à que obrigava as casadas a ter a autorização do marido para viajar. Dependia igualmente dele para abertura de conta bancária. O marido devia ainda autorizar tanto o uso de contraceptivos como contrato de trabalho (…). Podia, por exemplo, chegar a uma empresa e dizer: «Eu não autorizo a minha mulher a trabalhar».”

E, no que respeita a enfermeiras:

“O diploma não só atribui o tirocínio ou prestação de enfermagem hospitalar feminina a mulheres solteiras ou viúvas sem filhos, como define as condições de idoneidade exigidas às candidatas. (…) exigindo bom comportamento moral e o teor de vida irrepreensível e para candidatos à enfermagem hospitalar, do sexo feminino, ser solteira ou viúva sem filhos”

* Na entrada 94, fala-se nos mineiros e na silicose:

“A Companhia das Minas teve o monopólio da exploração do complexo de São Pedro da Cova entre 1921 e 91972. (…) Para terem direito a habitação, todo o agregado familiar, incluindo filhos menores, acabava de ser obrigado a trabalhar na mina”.

Estas citações são apenas algumas das muitas que aqui poderia colocar. Parabéns à jornalista autora desta obra que mostra, à exaustão, que o fascismo existiu e que, se não invertermos alguns caminhos que a democracia está a tomar, ele vai voltar, talvez com outro rosto, mas com a mesma intenção.

“Tóquio Express”, de Seicho Matsumoto (1958)

Este livrinho editado pela Presença e traduzido por André Pinto Teixeira, é apresentado como “um dos grandes clássicos da literatura japonesa”, e quem sou eu para contestar…

O autor, Matsumoto – que também é o nome de uma cidade, que visitei no ano passado – é apresentado como o “mestre do mistério japonês”.

Comparado com os seus contemporâneos norte-americanos da literatura policial, este Matsumoto parece ser muito – como direi? – japonês. Enquanto os escritores policiais norte-americanos são malandrecos, violentos, sacaninhas, estes dois detectives japoneses são tão puros e tão inocentes que até dá raiva.

A história gira à volta de dois eventuais amantes que se suicidam – coisa que parece ser banal para os japoneses. No entanto, há por ali muito mistério, sobretudo em redor de horários de comboios.

“O Asakaze chega à plataforma quinze às 17:49 e parte às 18:30. Fica na plataforma um total de quarenta e um minutos. Entretanto, nas linhas treze e catorze, efectuam-se as seguintes movimentações: na linha treze, um comboio da linha Yokosuka chega às 17:46 e parte às 17:57. Pouco depois, às 18:01, chega outro comboio, que parte às 18:12. Contudo, mesmo após a partida deste comboio, há o comboio regular 341, na linha catorze, com destino a Shizuoka, que dá entrada pelas 18:05, partindo apenas às 18:35. A sua paragem durante esse período bloqueia a vista do expresso Asakaze na linha quinze, ao lado”.

E é graças a todas estas verificações que o detective acaba por descobrir o crime.

Para quem nunca foi ao Japão, tudo isto soa a brincadeira – mas não é! Os japoneses nunca brincam com comboios!