“Azul de Agosto”, de Deborah Levy (2023)

Deborah Levy é uma escritora britânica, nascida em Joanesburgo em 1959. Escreveu várias peças de teatro estreadas pela Royal Shakespeare Company e é autora de diversos romances, tendo sido nomeada para o Bokker Prize três vezes.

Este “August Blue”, traduzido para a Relógio de Água por Alda Rodrigues, é uma romance singular, um pouco surrealista até, que nos conta a história de Elsa M. Aderson, uma pianista virtuosa que, a meio da interpretação do concerto para piano e orquestra nº2 de Rachmaninov, em Viena, começa a falahar e acaba por abandonar a sala de concertos.

Devido ao tom da escrita, eu teria optado pelo título “Agosto triste”, mas enfim…

Elsa foi adoptada aos 6 anos por um professor de piano que está agora velho e doente. Ela pouco sabe sobre a sua mãe biológica.

Ao longo do livro, a pianista vai saltitando entre Atenas, Paris, Londres e a Sardenha, sempre “perseguida” por uma mulher que ela pensa ser a sua dupla.

O livro tem uma linguagem, por vezes, surreal e poética:

“Durante a adolescência, fui uma pessoa serena, disse ele. Fiquei neurótico aos vinte, quando comecei a beber batidos de abacate e a esforçar-me por ter apenas pensamentos positivos.”

Ou ainda:

“As plantinhas cheiravam a meia-noite e a pedras quentes sob a chuva”.

Gostei de ler, mas não vai deixar marcas.

Montenegro contra o soprismo

Na reunião sobre comunicação social, o primeiro-ministro Luís Montenegro disse:

“Fazer a pergunta que o outro sopra ao ouvido não é jornalismo”

Apesar desta afirmação sensacional, Montenegro recusou-se a explicar o que substituiria o soprismo.

Alguém aventou a hipótese de os jornalistas passarem a usar cábulas onde registariam todas as perguntas possíveis e imaginárias que gostariam de fazer.

As senhoras jornalistas poderiam passar a escrever essas cábulas nas coxas e, durante as conferências de imprensa (raras, como se sabe), puxariam as saias para cima, discretamente, para relembrar as perguntas que teriam de fazer ao Montenegro.

Os homens poderiam, por exemplo, escrever as perguntas possíveis nas palmas das mãos.

Tudo menos usar auriculares!

Outra possibilidade poderia ser o Governo de Montenegro usar alguns jornalistas para soprar perguntas divertidas aos ouvidos dos colegas.

Por exemplo: “pergunta ao gajo se, por acaso, esta bêbado!”

Outra: “pergunta-lhe há quanto tempo não manda uma queca!”

Com perguntas destas, os jornalistas ficariam muito mal-vistos e acabavam por desistir de fazer perguntas e Montenegro ficaria, finalmente, livre dessa espécie incomodativa.

Ainda estamos longe, mas cada vez mais perto…

“Os Detalhes”, de Ia Genberg (2023)

Ia Genberg (Suécia, 1967) conseguiu, com este pequeno livro, ser selecionada para o Prémio Booker Internacional deste ano.

É um livro simples, muito ao estilo de Annie Ernaux – estilo que parece estar na moda. Será autobiográfico, será autoficção, será qualquer coisa intermédia.

A narradora está doente, com febre, e começa a recordar pessoas que foram importantes para si. Ao recordá-las, narra diversos episódios da sua vida, mesmo os mais íntimos e os mais banais. Parece que, afinal, a importância está nos detalhes.

Ficamos assim a conhecer as histórias de Johanna e de Alejandro, duas paixões da narradora, a da amiga Nikki e a de Birgitte, sua mãe.

Recomendo.

“Abril em Espanha”, de John Banville (2021)

John Banville (Wexford, Irlanda, 1945) venceu o Booker Prize de 2005 com o romance “O Mar”, razão pela qual esperava algo de melhor.

Este “Abril em Espanha” é um romance “antigo”. Embora tenha sido publicado apenas há três anos, a história cheira a velho: não há telemóveis, muito menos computadores, a máquina de escrever ainda é usada, toda a gente fuma e em todo o lado, dentro dos hotéis, até no hospital – e isto não seria nada de especial se, em algum lado, durante o romance, soubéssemos em que época a história se passava.

Depois, todas as personagens são demasiado caricaturadas. O assassino a soldo é, todo ele, uma caricatura. O patologista alcoólico idem idem. E a história é pouco credível.

Esta passagem da página 226 é bem ilustrativa do mofo da história:

“Observou o homem do outro lado da secretária. Olhando para ele, com aquela cabeça quadrada e aqueles ombros enormes, ninguém diria que era maricas. Mas, numa noite de nevoeiro, não há muitos anos, os Gardas tinham-no apanhado na casa de banho dos homens em Burgh Quay, de joelhos, em frente a um rapaz que tinha as calças pelos tornozelos”.

Já não se usa…

“O Caderno Proibido”, de Alba de Céspedes (1952)

Alba de Céspedes nasceu em Roma em 1911, trabalhou como jornalistas na década de 1930, publicou o seu primeiro livro cinco anos depois; foi também nesse ano que foi presa pela primeira vez, devido a actividades antifascistas. Faleceu em Paris em 1997.

“O Caderno Proibido” é um livro surpreendente que nos ajuda a perceber como era o ambiente da pequena-burguesia italiana (e portuguesa também, embora ainda mais pobre, penso eu).

A narradora é uma mãe de família, casada com um homem pouco ambicioso. Entre eles já não atração erótica e é suposto não haver porque já se considerem velhos, apesar de ainda não terem cinquenta anos. Têm uma filha que, a pouco e pouco, está a romper com as convenções e um filho, mais convencional. Valéria – é o nome da narradora – trabalha num escritório porque a família precisa de mais um salário; além disso, encarrega-se de todo o trabalho doméstico.

Certo dia, decide, num impulso, comprar um caderno e nele escrever um diário, que se manterá secreto.

À medida que vai escrevendo o seu diário, sempre às escondidas, Valéria cai-se descobrindo a si própria e questionando as convenções, embora não sinta coragem para as ultrapassar.

Um livro surpreendente, que aconselho.

“Antologia do Conto Erótico Brasileiro” (2024)

Eliane Robert Moraes organizou esta antologia, que vai desde contos escritos por Machado de Assis até a autores dos nossos dias, mais precisamente, desde 1886 a 2003.

Para nós foi uma completa desilusão. A culpa deve ser da “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, coligida pela Natália Correia, que tanto prazer nos deu.

Esta Antologia brasileira tem muito pouco de erótica e os textos são muito pouco interessantes.

Para além do texto ordinário e asqueroso de Reinaldo Moraes e da sua “cinta caralha”, apenas vale a pena salientar o conto de Ignácio Loyola Brandão, “Obscenidades para uma dona de casa”, em que aprendemos alguns sinónimos de pénis que desconhecíamos” (“Repete essa palavra que não suo. Nem pau, nem pinto, cacete, caralho, mandioca, pica, piça, piaba, pincel, pimba, pila, careca, bilola, banana, vara, trouxa, trabuco, traíra, teca, sulapa, sarsarugo, seringa, manjuba”).

O resto, é um deserto de erotismo.

“Canção do Profeta”, de Paul Lynch (2023)

Com este seu quinto romance, Paul Lynch (Irlanda, 1977) venceu o Booker Prize de 2023 e, na minha opinião, é um dos melhores romances dos últimos tempos.

Quando o comecei a ler percebi que estava perante o nascimento de um estado fascista. A acção decorre na Irlanda quando um Partido de Acção Nacional ganha as eleições e começa, a pouco e pouco, a impor as suas regras, a colocar os seus apaniguados nos lugares importantes, a proibir greves e manifestações. Faz-nos logo lembrar qualquer coisa, não é verdade?

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A situação do país vai-se deteriorando, as liberdades vão sendo cada vez mais limitadas e vamos conhecendo todo o drama através da família Stack.

O pai, Larry Stack, professor, desaparece logo no princípio da história, quando está a organizar um protesto. A mãe, Eilish, bióloga, fica responsável pelos quatro filhos, Mark, adolescente, Molly e Bailey, a caminho da adolescência e Ben, um bebé de colo. Há ainda um avô, Simon, já com sintomas de demência, que vive noutra parte de Dublin.

Paul Lynch consegue escrever toda a história num crescendo de drama, que culmina numa guerra civil e na fuga do que resta da família. Eilish vai enfrentando cada vez mais dificuldades, num crescendo dramático. Ao colocar a acção no seu próprio país, na Irlanda, o autor consegue que nós façamos auto-relacionamento com mais facilidade. Todos nós vemos, diariamente, imagens horríveis do que se passa, por exemplo, em Gaza, mas a vida em Gaza é muito diferente da nossa; aquelas famílias palestinianas sempre viveram em guerra e, por maior que seja o nosso sentimento de solidariedade, sentimo-nos distantes delas. Ao lermos a descrição das vicissitudes por que Eilish vai passando, facilmente nos identificamos com ela. E perguntamo-nos: não poderá acontecer algo de semelhante entre nós? A coberto da liberdade e da democracia, não existirão forças que disso se aproveitam para instituir uma ditadura?

Como diz alguém, já quase no fim do livro:

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“eu costumava acreditar no livre-arbítrio, se me tivesse perguntado antes de tudo isto acontecer ter-lhe-ia dito que era livre como um passarinho, mas agora já não tenho tanta certeza disso, agora não vejo como é possível o livre-arbítrio quando fomos apanhados em tamanha monstruosidade, uma coisa leva a outra coisa até ao raio da coisa ter a sua própria dinâmica e já não haver nada que possamos fazer, agora vejo que o que eu julgava ser liberdade na verdade era luta e que nunca houve liberdade nenhuma.”

Quando acabei de ler Canção do Profeta, respirei fundo e senti-me, de certo modo, aliviado por ter terminado o meu “sofrimento”, que não o daquela família.

E o final é surpreendente.

Aconselho vivamente.

É uma edição da Relógio de Água, com tradução de Marta Mendonça.

Urologia ou orografia

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A ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, meteu as mãos pelos pés e, em vez de falar na orografia da Madeira, falou na urologia.

É certo que, quando se tem uma infecção, a urina, quando sai, parece que vai a arder e devia ser isso que a ministra queria dizer ao falar na urologia complicada da Madeira, que tem dificultado o combate ao incêndio.

Nos homens, as prostatites são também causa de um verdadeiro incêndio no baixo-ventre e os urologistas recorrem, muitas vezes, ao toque rectal como meio de avaliar a próstata.

Talvez seja por isso que Miguel Albuquerque tem andado arredado da frente da urologia.

Mas afinal quem quer um toque rectal?…

“Os Nossos Desconhecidos”, de Lydia Davis (2023)

Desta autora norte-americana (Massachussets, 1947), já tínhamos lido “Contos Completos”, mas esta nova colectânea é mais, digamos, radical.

Que dizer deste conto, intitulado “Momento Matrimonial de Irritação – Coco”:

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“Após muitos dias, ele disse à mulher:

«Podias fazer alguma coisa com este coco?»

A maioria destes textos são assim, curtos, simples frases ouvidas ao acaso. Outro exemplo, intitulado “Solteirona Melancólica”:

“O que é aquilo,

Tocando-lhe tão delicadamente durante o banho

Ah,

Um marcador de livros a flutuar…”

Na contracapa, diz-se que este livro é “gracioso, engraçado, estranho, surpreendente, improvável, persuasivo e comovedor”.

Estou de acordo com a maioria dos adjectivos.