A secretária

O chefe da secção estava furioso. Aqueles relatórios eram uma miséria, tudo engatado! Chamou o funcionário mais competente e deixou-se enervar um pouco mais enquanto esperava. Finalmente, o empregado chegou, trémulo, prevendo a tempestade.

– Mas o que é isto, Sousa?! – perguntou o chefe de secção, dando um valente murro na secretária – Estes relatórios estão todos enganados! Nada bate certo!

– Não me diga, sr. Gonçalves… – ripostou, hesitante, o empregado Sousa, aproximando-se do relatório.

– Olha para isto! – berrou o sr. Gonçalves, dando novo murro na secretária. E apontou para os gráficos, para as contas, para tudo o resto que, pelos vistos, não batia certo. – Isto assim não pode continuar tenho de tomar medidas e das duras! – continuou o chefe de secção. E deu mais dois murros na secretária.

De súbito, indignada e cheia de nódoas negras, a secretária levantou-se e encaminhou-se para a porta, dizendo: “É um bom emprego, o ordenado é óptimo, mas estou farta de levar porrada! Boa tarde!”

E saiu.

-in Pão com Manteiga, Rácio Comercial, 4.10.1981

O farol fundido

Luís Montenegro – esse grande político e empresário espinhense – declarou-se farol deste país.

E depois, foi a banhos.

Resultado: molhou o farol e o farol fundiu-se!

Toda a gente sabe que não se deve molhar o farol. já George Constanza chamava-se a atenção para a chamada “shrinkage” do farol, sempre que é mergulhado em água.

E é assim, com um candidato a primeiro-ministro com o farol encolhido que temos que aguentar mais uma semana de campanha eleitoral!…

“Eva”, de Cat Bohannon (2023)

Cat Bohannon (Atlanta, USA, 1979) é um cientista norte-americana, doutorada pela Universidade de Columbia e que com este calhamaço conseguiu mostrar como a evolução da espécie humana está relacionada com a mulher.

O livro, de mais de 500 páginas, está dividido nos seguintes capítulos: O leite, O Útero, A Percepção, As Pernas, As Ferramentas, O Cérebro, A Voz, a Menopausa e O Amor.

Com abundância de notas e de referências a estudos de diversos autores, Bohannon vai-nos guiando desde os primórdios da espécie humana até aos nossos dias, demonstrando quão importante é o contributo da mulher, grande responsável pela perpetuação da espécie.

Aprendemos muitas coisas com este livro:

“As progenitoras das espécies felídeas tendem a roncar e a ofegar; os símios guincham e fazem estalidos com os lábios. A maioria das mulheres da espécie humana prefere embalar os seus bebés e amamenta-los na mama esquerda, o que, por acaso, também permite que o bebé fique alinhado com o lado mais expressivo do nosso rosto”.

Mitos há muitos:

“Por exemplo, a vagina de uma fêmea de rinoceronte é de tal maneira complicada que, para se adaptar a ela, o macho teve de desenvolver um pénis com mais de setenta e cinco centímetros de comprimento e em forma de relâmpago. Há muito tempo, na China, houve quem vislumbrasse esse pénis em forma de relâmpago (ou se calhar assistiu às típicas duas horas e meia de acasalamento por que os rinocerontes têm de passar só para fazer funcionar esses dois malfadados órgãos) e acreditasse erradamente que as proezas físicas dos rinocerontes podiam ser transferidas para os humanos. Os chifres de rinoceronte – adquiridos ilegalmente, secos e moídos até formarem um pó – continuam a render lucros avultados aos caçadores furtivos no mercado negro.”

Outro mito:

“Todas as aves conseguem ver o vermelho. A maioria dos peixes também. Mas os gatos, não, nem os cães, as vacas ou os cavalos, os roedores, as lebres, os elefantes ou os ursos. O vermelho não faz parte dos seus mundos. Nem os touros das festas de Pamplona conseguem realmente ver a capa vermelha do toureiro nem os tradicionais lenços e casacos vermelhos dos corredores de touros que invadem as ruas da cidade como bandos de tarados assassinos de bovinos. Os touros não são agressivos por conseguirem ver a cor vermelha, que as seus olhos se assemelha provavelmente a um castanho-escuro ou até ao preto. Os touros são agressivos porque são tratados como lixo.”

Curiosidades? Muitas:

“Em termos de pressão absoluta, o músculo mais forte do corpo humano é o masséter do maxilar. No que diz respeito à pressão constritiva, o útero é o mais forte. Todavia, quando se trata de músculos que têm força e flexibilidade, o claro vencedor é a língua humana, que tem de rolar e empurrar um bolo de alimentos amassados de um lado para o outro da boca, esmagando melhor os bocados não mastigados antes de os engolir, enquanto se esquiva ao corte e trituração dos dentes em movimento. Quem já mordeu acidentalmente a língua ou a bochecha sabe que a mastigação nem sempre é fácil.”

Implícitas muitas críticas ao modo como o sexismo e a religião influenciam a evolução da espécie – e não só no mundo islâmico ou nas regiões mais pobres de África ou da Índia:

“Onde é que a maioria das mulheres norte-americanas grávidas morre? Nas comunidades pobres, sim, mas sobretudo nas comunidades pobres do Texas, do sul dos Estados Unidos e do Minesota. Em todas estas regiões, o acesso das mulheres aos cuidados de saúde e à educação para a saúde foi drasticamente reduzido nos últimos anos por vias de campanha contra o aborto, políticas educativas em prol da abstinência coimo único método de contracepção e simultaneamente uma série de cortes nos centros de saúde financiados pelo sector público”.

Estas são apenas algumas citações das muitas que poderia fazer destas excelente obra, que aconselho vivamente.

Aqui está um livro que devia ser leitura obrigatória para todos os liberais e políticos de Direita – se acontecesse o caso desses tipos lerem livros…

A Criação do Domingo

No princípio, a semana possuía apenas seis dias, o que era um inconveniente inegável. Por isso, às 24 horas de sábado, deus decidiu criar o domingo.

Adão e Eva ficaram satisfeitíssimos porque tinham o dia livre para crescerem e se multiplicarem, entregando-se ao Pecado Original, sob os olhares reprovadores dos Querubins. Esse foi o primeiro domingo que ficou na História da Humanidade. E, apesar de tudo, deus achou que o domingo fora uma boa invenção.

Com efeito, sem domingos, não haveria a missa de domingo, os passeios de domingo e o Pão com Manteiga. Sem domingo, Fernando Namora não teria escrito o romance “Domingo à Tarde”, a semana inglesa teria de começar na sexta-feira à hora do almoço e os calendários teriam muito menos números vermelhos. Sem domingo, o domingo de Páscoa calharia para aí a um sábado.

Percebendo tudo isso, deus achou que o domingo fora uma boa invenção e sentiu-se até tentado a criar mais domingos ao longo da semana, eliminando dias bem mais aborrecidos. Teríamos então o domingo, a segunda-feira, o segundo domingo, a terça-feira, o terceiro domingo, a quarta-feira e o sábado. Mas isso seria muito confuso e convidaria os homens à boa vida. Por isso deus deixou ficar a semana como ainda está hoje e para mostrar que nem tudo corre bem aos domingos, escolheu esse dia para o Dilúvio.

Talvez digam as Escrituras que Sodoma e Gomorra foram destruídas a um domingo, que as setes pragas do Egipto calharam a um domingo, que Cristóvão Colombo descobriu a América a um domingo e que François Mitterand foi eleito a um domingo.

E é por essas e por outras que o Pão com Manteiga é a um domingo.

  • in Pão com Manteiga, 21.6.1981

“A Carne”, de Rosa Montero (2006)

Este é o sexto romance de Rosa Montero que passa pelos meus olhos. Nascida em 1951, Montero escreve que se desunha, mas é um pouco irregular. Gostei muito de A Louca da Casa (2023), de “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” (2013), de “O Perigo de Estar no Meu Perfeito Juízo” (2022) e de “Instruções para Salvar o Mundo” (2008); gostei menos de “A Boa Sorte” (2020) e também deste “A Carne” (2016), que terminei hoje.

Este último é um romance mais ligeiro, em que Rosa Montero assume o início da velhice. Nascida em 1951, Rosa teria os mesmos 60 anos que a protagonista do romance, Soledad, uma solitária que se envolve com um prostituto, trinta anos mais novo que ela.

Como pano de fundo, uma das habituais obsessões da escritora: os escritores malditos que, de um modo ou outro, tiveram vidas estranhas e trágicas.

Apesar de ser um romance mais ligeiro, não deixa de ser interessante, embora o final, na minha opinião, seja um pouco atabalhoado.

Montenegro, tem vergonha nessa cara!

O governo cancelou os festejos do 25 de abril devido à morte do Papa Francisco. Montenegro anunciou que os festejos seriam adiados para o 1º de Maio – e no Dia do Trabalhador organizou um concerto do grande combatente anti-fascista, esse ilustre militar de Abril, Tony Carreira, nos jardins do Palácio de São Bento.

Montenegro não merece ser primeiro-ministro de todos os portugueses, mas apenas das balzaquianas malucas por um tipo com uma voz fininha que, ainda por cima, plagia as canções francesas.

Tem vergonha nessa cara, Montenegro!

“A Água do Lago Nunca é Doce”, de Giulia Caminito (2021)

Giulia Caminito (Roma, 1988) consegue, com este romance, uma narrativa convincente dos marginalizados, dos pobres, dos dependentes dos apoios sociais e que, apesar disso, tentam melhorar as suas vidas.

A narradora é a jovem Gaia. A sua mãe, trabalha a dias e é uma lutadora; o seu pai, trabalha nas obras e, certo dia, cai de um andaime e fica preso a uma cadeira de rodas; tem um irmão mais velho, filho de outro homem e dois irmãos gémeos, ainda bebés quando acontece o acidente do pai. Uma verdadeira desgraça. Mas a mãe, Antónia, luta e quer que a sua filha tenha um futuro diferente e Gaia, que não se dá muito bem com a mãe, também tenta ser diferente, fugir daquela vida. Será que consegue?

Uma imagem com texto, livro, pessoa, Cara humana

Os conteúdos gerados por IA poderão estar incorretos.Gaia sabe que é diferente das suas colegas e que nunca poderá ter o que a maioria tem:

“E depois aquilo que não tenho, desde logo a televisão, os telefilmes da Italia Uno, as madeixas louras do cabelo, os cromos dos futebolistas, o Game Boy, a PlayStation, Tom Raider, todos os livros que me proibiste (…) o curso de natação, de voleibol, de teatro, o telemóvel sempre a tocar sem nunca se cansar, o McDonald’s onde festejar o aniversário (…), os discos da Britney Spears, as idas vespertinas a discotecas menores…”

Tem vergonha do seu corpo:

“O que fiz durante anos foi tapar-me, evitar a nudez, não suportar as exibições, afastar os corpos dos outros, não por ser valente, não há em mim valentia, nada de casto ou pio, nada de impoluto, mas porque me dão nervos as pessoas nuas, ter de as satisfazer, não saber aproximar-me delas, os cheiros que têm, os cheiros que eu tenho, a boca que entreabrem, os lábios que humedecem, as palavras sussurradas que dizem”.

E também há coincidências engraçadas:

“Trocamos ainda assim números de telefone e ela deixa-me a estudar, levanta-se e sacode com a maõ o vestidinho às bolinhas e chama o cão que se chama Gin, como gin tonic diz-me ela e sorri…”

Gostei muito.

“Orbital”, de Samantha Harvey (2023)

Samantha Harvey (Kent, UK, 1975) venceu o Booker Prize de 2024 com este livro.

Penso que o júri valorizou a originalidade deste pequeno livro, cuja acção se desenrola numa estação orbital durante apenas 24 horas.

Lá dentro, seis astronautas de diversas nacionalidades entregam-se às suas actividades rotineiras enquanto a escritora vai descrevendo as diversas órbitas, são 16 ao todo, e o que se vai vendo em cada uma delas, os oceanos, os continentes, um tufão que se está a formar, os acidentes geográficos. Achei o livro monótono e tive alguma dificuldade em lê-lo até ao fim. Com efeito, embora sejam curiosos alguns pormenores relacionados com a vida a bordo de uma estação orbital, a descrição acaba por ser um pouco entediante