“Correcções”, de Jonathan Franzen (2001)

Jonathan Franzen (Nova Iorque, 1959) é considerado, pela Time, o “grande romancista americano”. Especialista em escrever grandes calhamaços, já tinha lido dele “Liberdade” (2010, 682 páginas), “Purity” (2015, 694 páginas) e “Encruzilhadas” (2021, 677 páginas). Faltava-se este “Correcções” (2001, 512 páginas), vencedor do National Book Award.

Conta-nos a história da família Lambert, no final dos anos 90, nos EUA. Alfred é o pai, antigo engenheiro dos caminhos de ferro, abraços com a doença de Parkinson e a demência, Enid, a sua mulher, obcecada por um último Natal em família; e ainda os três filhos: Gary, um banqueiro snob com um casamento complicado, Chip, um desempregado crónico que se envolve em negócios escuros na Lituânia e Denise, uma cozinheira que se envolve com o patrão e, sobretudo, com a mulher dele.

Como os restantes calhamaços, também este é um romance essencialmente americano. As suas personagens não poderiam ser, por exemplo, francesas, ou italianas, muito menos portuguesas. São americanos típicos.

Franzen escreve que se desunha, fabricando enormes parágrafos, como este, sobre o casamento de Gary e a sua incapacidade em se envolver com outras pessoas:

“Gary lembrou-se de que outro motivo por que permanecera fiel a Caroline ao longo de vinte anos de casamento fora a sua constante e crescente aversão ao contacto físico com outros seres humanos. Estava, com certeza, apaixonado pela fidelidade, com certeza de perfilhar esse princípio lhe causava um frémito erótico, mas algures entre o seu cérebro e os seus testículos também havia, porventura, um fio a soltar-se, pois o seu principal pensamento, enquanto despia e violava mentalmente aquela rapariguinha de cabelos vermelhos, era como acharia abafado e infecto o lugar da sua infidelidade – um armário com uma provisão bacterial coliforme, um hotel Courtyard da cadeia Marriott com sémen seco nas paredes e nas colchas, o estafado e febril banco de trás do adorável Volkswagen ou do Plymouth que ela sem dúvida conduzia, a alcatifa infestada de esporos do seu exíguo apartamento em Montgomeryville ou Conshohocken, todos eles lugares sobreaquecidos, subventilados e sugestivos de condilomas genitais e clamidíase à sua própria e desagradável maneira – e como seria difícil respirar, como a carne dela seria sufocante, como seriam sórdidos e de antemão condenados os esforços dele para não condescender…”

Ufa! Gostei.

“A Arte de Cozinhar”, novo livro do Chefe Aníbal

O antigo presidente Cavaco Silva, dedicou-se à culinária, como toda a gente sabe. Desde que deixou de ser presidente, arrumou as suas botas de político profissional, recolheu-se a Boliqueime e, com a ajuda da sua Maria, esposa dedicada e esmerada dona de casa, decidiu aprender a cozinhar.

Sabe-se que, hoje em dia, cozinha umas caras de bacalhau com arroz de grelos como ninguém. Também os seus carapaus com molho de escabeche são conhecidos além-fronteiras, bem como as papas com muito sarrabulho.

Por isso mesmo, o Chefe Aníbal, como é agora conhecido em quase todo o Algarve, decidiu publicar um livro intitulado “A Arte de Cozinhar”, que será apresentado ao público no próximo dia 15 – e quem melhor para apresentar um livro de culinária senão o Cherne em pessoa?

Portanto, contamos ver, na mesma sala, o Chefe Aníbal, o Cherne Barroso e o próximo líder do PSD, o saudoso Coelho e esperamos que o Chefe nos premeie com um uma receita de Coelho à Caçadora.

A Universidade Laranja é Canja!

Decorre em Castelo de Vide, mais uma edição da Universidade Laranja.

Já não vamos a tempo de nos inscrevermos e temo que, mesmo que conseguíssemos frequentá-la, o resultado seria um valente chumbo. Se o PSD tivesse uma linha política que se percebesse, ainda poderíamos tentar, mas assim é difícil. Sociais-democratas já sabemos que não são; serão então liberais, anarco-capitalistas, populistas, nacionalistas envergonhados?

Sim, nacionalistas. Então não ouvimos um seu destacado membro elogiar a política de habitação do Salazar? Ou aquilo não era um elogio a Salazar, mas sim um ataque ao Costa?

Adiante.

Depois de muito trabalho, conseguimos arranjar uma lista das cadeiras ministradas na Universidade Laranja. Aqui estão elas.

* Como se tornar candidato a presidente sem se pôr em bicos dos pés – pelo Dr. Marques Mendes

* Vejam como sou inteligente e alto – pelo Dr. Hugo Soares

* Como se tornar especialista em tudo, mas mesmo tudo, excepto submarinos – pelo Dr. Paulo Portas

* Estudo comparativo entre Antónios ou Como Salazar e Costa podiam formar uma coligação – pelo ilustre Doutor por Extenso Leitão Amaro

* Como escavar trincheiras – pelo Professor Rebelo de Sousa

* Aprender ucraniano em três quartos de hora – também pelo Professor Rebelo de Sousa

É pena já não irmos a tempo para nos inscrevermos…

“O Quarto do Bebé”, de Anabela Mota Ribeiro (2023)

Li algures que Annie Ernaux, a escritora francesa que venceu o Nobel, é uma das escritoras favoritas de Anabela Mota Ribeiro. Li também, que este livro será uma obra de autoficção.

Seja como for, é uma obra muito conseguida. Lemo-lo em conjunto em três ou quatro sessões de leitura e gostámos muito.

Escrito em forma de diário, acompanhada não só os tempos da pandemia, com o estado de emergência e o confinamento, como também as vicissitudes da doença da narradora. Um cancro da mama, a histerectomia radical, a infertilidade, tudo isso é narrado com emoção, mas de um modo muito pessoal.

Poderia citar dezenas de frases que nos tocaram por uma ou outra razão, mas escolhi apenas estas três.

A propósito do confinamento provocado pela pandemia:

“Que sorte viver em Portugal, ter um governo socialista. A Europa disse para injectar dinheiro na economia. Como vamos viver daqui a três meses, apesar das medidas e dos apoios às famílias e empresas”.

Isto passou-se há bem pouco tempo, mas muitos dos nossos políticos e comentadores parecem ter esquecido.

A narradora fala do seu dia-adia. O João, que se depreende ser o seu companheiro, está presente, embora não interfira muito na escrita. A propósito de uma visita que fizeram a Auschwitz, como nós fizemos, gostava de ter inventado a frase que a autora escolheu.

“O João e eu fomos a Auschwitz, Birkenau, Treblinka. Fomos ao fim do mundo. Não se vem de lá com palavras.”

Mais à frente, quando se recorda do momento em que soube que tinha cancro da mama:

“A próxima pessoa que me falar de excesso de medicina, excesso de radiação, excesso de zelo, terapias alternativas, naturismos e o caralho, leva um murro”.

Como eu a compreendo!

Este é o primeiro romance de Anabela Mota Ribeiro (Trás-os-Montes, 1951), mas a sua escrita já é uma escrita madura.

Aconselho vivamente.

“A Louca da Casa”, de Rosa Montero (2023)

Rosa Montero (Madrid, 1951) explica, no final do livro, que esta é uma reedição, já que A Louca da Casa foi editado, pela primeira vez, em 2003. Terá sido o primeiro título de uma trilogia que a autora apelida de artefactos literários, uma vez que não são bem um ensaio, muito menos um romance, mas têm ingredientes de ambos.

Os outros dois títulos da trilogia são: A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te, publicado em 2013, e O Perigo de Estar no Meu Perfeito Juízo (2022). Curiosamente, cada título está separado do seguinte por cerca de dez anos.

Neste A Louca da Casa, Rosa Montero fala sobre a imaginação e como ela domina o acto de escrever romances, de tal modo, que a autora conta alguns episódios da sua vida e conta-os em diversas versões. O leitor fica sem saber qual dessas versões será a verdadeira, se é que alguma delas é.

Rosa Montero pouco mais velha que eu é, e isto que ela diz sobre o envelhecimento, é bem verdade:

“O envelhecimento é um processo orgânico lamentável que tem apenas duas coisas boas (a primeira é que, se nos esforçarmos, aprendemos algumas coisas; e a segunda, é ser a melhor prova de que ainda não morremos) e muitas outras péssimas, como, por exemplo, os neurónios destruírem-se às mãos cheias, as células se deteriorarem e se oxidarem, a gravidade puxar o corpo em direcção à terra-campa enfraquecendo os músculos e dependurando as carnes. Pois bem, a todos esses pesares, e a outros que não cito, é possível que também se some um fastio acabrunhante da realidade, a perda progressiva da nossa capacidade de fantasia, o anquilosar da imaginação.”

A propósito das técnicas que os romancistas usam para escrever as suas obras, Montero cita diversos outros autores. Destaco esta citação de Mark Twain:

“O livro relata uma história ainda mais inquietante sobre Mark Twain, que, em adulto, contou a um jornalista que tinha tido um irmão gémeo, Bill, com quem se parecia tanto que ninguém conseguia distingui-los, ao ponto de terem de colocar-lhes cordelinhos coloridos nos pulsos para saber quem era quem. Pois bem, um dia deixaram-nos sozinhos na banheira e um deles afogou-se. E, como os cordões se tinham soltado, «nunca se soube qual dos dois tinha morrido, Bill ou eu», explicou Twain placidamente ao jornalista”.

Também Rosa Montero fala, neste livro, da sua irmã gémea Martina, e ficamos na dúvida se ela não estará a seguir o exemplo de Mark Twain, inventando uma história que, afinal, pode ser verdadeira.

Mais um bom livro desta escritora castelhana.

Ver ainda: Instruções Para Salvar o Mundo; A Boa Sorte

“Dor Fantasma”, de Rafael Gallo (2023)

Com este livro, Rafael Gallo (São Paulo, Brasil, 1981), venceu o Prémio Literário José Saramago.

Trata-se de um livro notável no que diz respeito ao substrato narrativo, isto é, a história é curta, mas o autor consegue prender-nos e fazer com leiamos o livro quase como se fosse um thriller.

A história centra-se em Rômulo Castelo, um pianista especialista em Liszt, rígido, incapaz de aceitar a mais pequena imperfeição, quer na música, quer na vida. Foi assim que o seu pai, maestro, o ensinou desde tenra idade.

Rômulo todos os dias treina o Rondeau Fantastique, obra de Liszt de difícil execução. Ele pensa que mais ninguém a conseguiu interpretar, a não ser o seu autor e vai ser ele, Rômulo, que a irá apresentar ao mundo na sua tournée europeia. Por isso, todos os dias a treina, na sua sala insonorizada, no seu apartamento, ignorando a existência da sua mulher e, sobretudo, do seu filho, prematuro, que tem um atraso cognitivo.

Só que Rômulo sofre um acidente grave e a sua mão direito é amputada.

Esta é a súmula da narrativa. Tudo o resto é a argúcia do escritor, que nos consegue agarrar até à última página.

Gostei muito desta história, apesar de, por vezes, ser difícil ler o português do autor, devido à construção frásica, demasiado “brasileira”.

Mas aconselho.

Um Presidente sem cuecas

Marcelo está de férias. Na praia, no Algarve.

No entanto, aparece todos os dias nos telejornais, comentando a actualidade. Aceita que os jornalistas o perseguiam no areal, corram atrás dele até ao toldo. Enfia o bonezinho na cabeça e responde às suas perguntas, sem um enfado. Pela-se por aparecer. Um vaidoso do camandro! Incapaz de desaparecer de cena, nem que seja por uma semana ou duas. Diz que tem muitos decretos para promulgar, ou vetar. E sujeita-se a imagens ridículas: um presidente a tirar o fato de banho e a limpar os testículos da água salgada.

Um insulto à República!

“A Cona de Irène”, de Louis Aragon (1928)

Claro que foi o título que despertou a minha curiosidade. Isso e o facto de o autor ser Aragon. A propósito do centenário de Cesariny, tinha lido que ele preferia Aragon a Breton, no que dizia respeito aos surrealistas franceses – e logo por coincidência, tomei conhecimento deste pequeno livro da coleção Livros Negros, da editora Guerra e Paz.

O livro terá sido publicado clandestinamente, e anonimamente, em 1928 e logo proibido. Foi reeditado em 1952, e novamente proibido. E o mesmo aconteceu em 1962 e 1968. Finalmente, em 1993, o livro pôde ser reeditado com o nome do seu autor, Louis Aragon.

Lê-se de uma penada e, hoje em dia, não escandaliza ninguém. Classificam-no de clássico da literatura erótica, mas penso que é um exagero. A maior parte das páginas deste livrinho estão preenchidas por uma escrita automática, tão ao gosto dos surrealistas e, da cona da Irene, apenas se fala en passant, classificando-a de “fenda húmida e doce, querido abismo vertiginoso”.

Tem interesse histórico…

“O Estranho e Surpreendente Mundo dos Sentidos”, de Guy Lischeziner (2022)

Este neurologista britânico pode ser um sucessor de Oliver Sacks, falecido em 2015 e autor de diversos livros sobre neurologia e temas adventícios, como o famoso “O Homem Que Confundiu a Sua Mulher Com Um Chapéu”, ou ainda, “Tudo No Seu Lugar”, ou “Musicofilia”.

Este livro de Leschziner conta-nos as histórias de alguns pacientes que têm em comum disfunções dos órgãos dos sentidos. É certo que são esses órgãos que nos põem em contacto com o mundo exterior; mas, quando eles nos pregam partidas, a comunicação pode ser complicada.

Os diversos capítulos vão detalhando perturbações relacionadas com os diversos órgãos dos sentidos.

No que respeita ao olfacto, o autor sublinha que é o cheiro que evoca estados emocionais e sei bem do que fala. Ainda hoje, há cheiros que me fazem regressar à infância.

“muito embora outros estímulos, quer sejam musicais, tácteis ou verbais, sejam igualmente bons para trazer de volta memórias de acontecimentos, as lembranças desencadeadas por cheiros são acontecimentos consistentemente mais emocionais. Na verdade, experiências mostraram que o estado emocional pode reforçar o elo entre o olfacto e a memória.”

Os sintomas que os doentes nos apresentam são, muitas vezes, enganadores. O autor confessa que fica perturbado com essa possibilidade – e percebo-o muito bem!

“Não tenho grande vontade de falar sobre estes casos nas páginas deste livro – a decisão de administrar ou não um fármaco, de fazer uma ressonância a alguém agora ou daqui a três meses – ainda voltam para me atormentar durante a noite, meses ou até anos depois, com nomes e rostos gravados na memória.”

Essa uma das razões que me levou a nunca mais pensar na minha profissão, depois da aposentação!

Uma das coisas que aprendemos na Faculdade: o que é raro, é raro – o que é frequente, é frequente. Por outras palavras: se alguém se queixa de uma dor de cabeça, é muito provável que tenha, apenas, uma dor de cabeça e não um tumor cerebral.

Diz o autor:

“Na medicina há um velho adágio que diz «Quando ouvires o barulho de cascos, pensa em cavalos, não em zebras», que é atribuído ao Dr. Theodore Woodward, professor de Medicina na Universidade de Maryland na década de 1940 e que queria com isto dizer que devemos procurar a explicação mais provável para um conjunto de sintomas e sinais, e não um diagnóstico raro e exótico”.

No entanto, este livro apenas trata de situações raras e exóticas, como a jovem que foi perdendo a visão devido a diversos meningiomas, ou o homem incapaz de sentir dor, ou ainda o outro para quem as palavras tinham cor.

Um livro muito interessante.

Jornadas da Juventude Envelhecida

Se estivéssemos na Primeira República, o Papa vinha a Portugal mas era em gesso! Nesses tempos, tínhamos um regime verdadeiramente laico.

Agora, os pichas-moles do governo, cederam ao presidente beato e vamos levar com as Jornadas Mundiais da Juventude e com Portugal transformado numa enorme sacristia. Não vai faltar o cheio a estearina queimada e a bafio. Ainda me lembro bem de S. Marcelo a agitar os bracinhos e a gritar “Conseguimos! Conseguimos!”

Estive a ler, por curiosidade ateia, o programa das Jornadas e fiquei estupefacto com a falta de originalidade dos organizadores.

As festividades começam na chamada Colina do Encontro. Sabem onde fica? Pois, no Parque Eduardo VII.

Dar o nome de um monarca britânico ao parque já foi uma ideia abstrusa, mas renomeá-lo Colina do Encontro ainda é mais estranho. Conhecendo a fama de que goza o parque, no que respeita a encontros mais ou menos suspeitos, e aliando isso à tradição de abuso de menores no seio da santa madre igreja, temos de concordar que Colina do Encontro não foi uma boa ideia.

Depois de se encontrarem todos na tal colina, segue-se uma vigília no Campo da Graça, que não fica na Graça, mas sim no Parque Tejo. E por que se chama Campo da Graça? Porque é lá que se vão realizar os Encontros Rise Up. Diz o programa que Rise Up é um novo modelo de catequese, mas a mim soa-me a mais uma ordinarice. Rise up quer dizer levantar-se, aumentar, vir à superfície… malandrecos, estes católicos…

Segue-se a chamada Cidade da Alegria, o que não espanta. Depois dos encontros na colina e de se terem levantado, estão todos muito alegres. A Cidade da Alegria é um espaço que junta a Feira Vocacional e o Parque do Perdão. Está tudo explicado, depois de terem pecado, os jovens têm direito a ser perdoados, através da confissão. Os confessionários foram construídos por presidiários e, dentro deles, estarão padres dispostos a perdoarem todos os pecados cometidos na Colina e arredores.

Haverá ainda um Festival da Juventude, onde certamente serão consumidas toneladas de hóstias e, para terminar, haverá mais uma missa.

Em resumo, uma seca de Jornadas!