“Um Cão no Meio do Caminho”, de Isabela Figueiredo (2022)

Gostei muito de A Gorda, o livro anterior de Isabela Figueiredo. Não posso dizer o mesmo deste novo romance.

Penso que as personagens são demasiado esquemáticas. O protagonista é um homem solitário que vive í  custa do Rendimento de Inserção, uma pequena pesada de uma avó nonagenária e da recolha de trastes que apanha no lixo e vende na Feira da Ladra. Para compor o ramalhete, é vegetariano e adora animais em geral, e cães em particular. Na casa ao lado vive uma vizinha que é acumuladora e adora gatos.

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Posso estar enganado, mas a história do protagonista é pouco credível. Durante a noite, anda pelos contentores, em busca de coisas que as pessoas deitam fora e que ele aproveita, para depois vender na Feira da Ladra, mas essa parte ““ a da venda dos objectos recolhidos no lixo ““ quase não faz parte da história e poderia enriquecê-la. Visito a Feira da Ladra com frequência e penso que aqueles homens e mulheres e estão ali a vender bugigangas, velharias sem importância, verdadeiro lixo, são muito capazes de terem histórias bem interessantes para contar. Não é o caso do protagonista deste romance. A história dele é mais comezinha. Perdeu os pais muito cedo, o pai era do PCP, a mãe era mais moderada, a avó foi funcionária pública. Ele teve uma paixoneta por uma colega de liceu que se entregou í  droga e que, afinal, talvez fosse lésbica. Quase a terminar a história, o protagonista, o tal que vai vender trastes para a Feira da Ladra, diz:

“A segunda, terceira e quarta novidades de 2019 é que tinha passado a ter telemóvel para lhes telefonar todos os dias. e televisão, que a minha avó me oferecera. pequena, mas com qualidade HD, aliás, ultra HD. era como se estivesse no cinema e dentro do ecrã. e um pacote de tv, internet e fixo. era todo um novo mundo. podia ver as notícias, mas sobretudo os canais de filmes e documentários.”

Quase parece um anúncio a um dos operadores do mercado…

Fui percorrendo as páginas deste livro de Isabela Figueiredo, em busca do interesse que A Gorda me despertou. Em vão. Paciência…

“Vejam Como Dançamos”, de Leila Slimani (2022)

Depois do êxito de O País dos Outros, que venceu o Prémio Goncourt, a expectavia era grande em relação a este segundo volume da saga de Mathilde e Amine, uma alsaciana que se casou com um marroquino, indo viver para o norte de ífrica, enfrentando todas as grandes diferenças civilizacionais entre as suas raízes e as do seu marido marroquino.

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Este segundo volume não me marcou tanto como o primeiro, talvez porque a escrita de Slimani já me fosse conhecida de outros livros, como em Canção Doce e No Jardim do Ogre.

Apesar disso, gostei bastante deste segundo volume da saga da família Belhaj. Acompanhamos o crescimento de Aicha, que se forma em Medicina e se casa com Mehdi, a emancipação de Selim, que, seguindo o movimento hippie, sai de casa e acaba nos Estados Unidos, país que Amine, seu pai, gostaria de ter conhecido.

Seguimos o envelhecimento de Mathilde, que engorda e aceita que  Amine tenha amantes, mas que vai conseguindo algumas conquistas, como ter uma piscina na propriedade cada vez maior do seu marido.

Não há dúvida que Slimani escreveu uma obra épica e, com o aparecimento de novas personagens, como o marido de Aicha e a sua relação ambígua com o Poder do rei Hassan II, poderemos vir a ter um terceiro volume desta saga.

Trigo alentejano para o corpo do Senhor

Li no Expresso que vão ser necessárias duas toneladas de trigo para fabricar as hóstias que serão distribuídas nas Jornadas Mundiais da Juventude.

Depois de moídas, essas duas toneladas deram origem a uma tonelada e meia de farinha que vai ser entregue í s Irmãs Clarissas do Mosteiro Imaculado Coração de Maria. Serão elas que vão fabricar os milhões de pequenos pedaços do corpo do Senhor, que serão depois engolidos pelos jovens participantes nas Jornadas ““ e até, suponho eu, pelo nosso devoto Presidente Marcelo.

Fiquei a saber que o trigo é da marca Cereais do Alentejo e terá sido doado. Foi, portanto, um ajuste directo, mas como não envolveu dinheiro, talvez o Presidente Moedas se salve de mais uma polémica.

A menos que os produtores de trigo do Baixo Mondego e do Alto Tâmega perguntem por que raio é que o corpo do Senhor há de ser feito só com trigo alentejano ““ acaso é de melhor qualidade? Acaso não sofre também de ferrugem-da-folha como qualquer trigo?

Todos sabemos que o Senhor é omnipresente. Por que razão querem enfiá-lo apenas no trigo alentejano?

“Paraíso”, de Abdulrazak Gurnah (1994)

Gunarh (Zanzibar, 1948) ganhou o Prémio Nobel em 2021 pelo conjunto da sua obra e pelo modo como aborda o colonialismo, o destino dos refugiados e o fosso cultural entre continentes.

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Este romance foi finalista do International Booker Prize em 1994 e conta-nos a história de Yusuf. Para pagar uma dívida, o pai de Yusuf entregou-o a um comerciante, saldando assim essa dívida. Yusuf passou assim a ser propriedade do comerciante, trabalhando numa das suas lojas e, mais tarde, acompanhando-o numa viagem através da selva africana para fazer comércio com diversos sultões, enfrentando diversas aventuras.

Não sabemos em que época esta história se desenrola, mas sabemos que há colonos alemães e ingleses que, a pouco e pouco, estão a tomar conta das terras africanas, fazendo escravos, que negoceiam entre si.

Yusuf vai crescendo e amadurecendo, mas sem nunca conhecer a liberdade, já que ele pertence ao comerciante.

Um livro diferente.

Perdoa-lhe porque não sabem o que fazem

As iniciativas das Jornadas Mundiais da Juventude não deixam de surpreender.

Fiquei agora a saber que vai haver um Cidade da Alegria.

O que será essa Cidade? Um sítio onde os jovens católicos vão poder rir-se í  brava, dançar e cantar, abraçar-se, beijar-se e tocar-se alegremente?

Talvez.

Mas atenção: nessa Cidade da Alegria vai ser instalado um Parque do Perdão, que vai contar com 150 confessionários ao ar livre!

Quer dizer, primeiro, os jovens pecam que nem uns malucos e depois vão confessar-se.

Meia-dúzia de avé-marias depois, toca a pecar novamente!

Esta fabulosa ideia não é nova. A ideia nasceu no Panamá, em 2019, onde foram construídos 250 confessionários no parque Omar e mais 47 nos centros comerciais.

Por cá, serão só 150 confessionários, o que só prova que a malta do Panamá peca muito mais que os portugueses.

Segundo o Público, em cada confessionário estará disponível um sacerdote para ““ segundo a organização ““ “…acolher e escutar os jovens peregrinos, convidando-os a fazer a experiência do amor e da misericórdia de Deus através do sacramento da Reconciliação”. Este amor que a organização fala não tem nada a ver com apalpões e exploração de órgãos genitais. É apenas amor celestial.

E que sacerdotes estarão ali, no Parque do Perdão, preparados para receber os jovens, mostrando-lhes o amor a Deus?

Haverá inscrições.

Diz a organização que “…os presbíteros deverão preencher o formulário indicando os idiomas falados e o dia da sua disponibilidade”. Depois, é só comparecerem “…no local no horário que lhes for atribuído, trazendo a respectiva alva e estola”.

Fiquei estarrecido com esta iniciativa!

Com um milhão de jovens que devem vir assistir a estas Jornadas, de certeza que haverá muitos a pecar í  fartazana na zona ocidental de Lisboa e arredores. Assim, graças a este Parque do Perdão, poderão confessar-se e serem absolvidos.

Depois, é só voltarem a pecar até í  próxima confissão.

Os padres envolvidos em abusos sexuais poderão, até, aproveitar este Parque do Perdão para serem absolvidos perante Deus pelos seus colegas de profissão.

Dá sempre jeito ter amigos no lado certo…

Um altar pobrezinho

Que altar mais pindérico está projectado para receber o Papa na Jornada Mundial da Juventude!

O presidente da Câmara, Carlos Moedas, revelou que consultou sete empresas e que os orçamentos começavam nos 8 milhões.

E foi escolher aquela coisa reles, que só vai custar uns míseros 4,2 milhões de euros!

Como disse o Grande Líder Nuno Melo, quase que se confunde com a indemnização da Senhora Dona Alexandra Reis.

Dizem os organizadores, que Lisboa poderá receber cerca de um milhão de visitantes para participar na JMJ. Ora, o tal palco só consegue albergar duas mil pessoas. Onde vão enfiar as restantes? Não seria melhor construir meia-dúzia de palcos semelhantes, colocados em círculo, com uma rampa a uni-los, de modo a que o Papa se pudesse movimentar ente eles, usando uma cadeira de rodas eléctrica?

O bispo auxiliar de Lisboa disse que ficou magoado com o custo do altar-palco. Magoa-se com pouco, o bispo. Se calhar, é por isso que é auxiliar…

Quanto ao nosso Presidente, parece que já sabia do preço do altar-palco, mas fez de conta que não sabia. Ouvi-o dizer que aquilo era muito bonito. É próprio de uma pessoa que viaja pouco. Está sempre metido no Palácio de Belém e conhece pouco mundo, caso contrário perceberia que o altar-palco é um verdadeiro mamarracho, mas parecido com um daqueles parques para praticar skate.

Quando soube do preço, Marcelo terá dito para reverem o projecto.

Estou de acordo!

Façam uma coisa como deve ser, uma coisa que torne Moedas imortal. Ele já disse que dava o corpo í s balas!

Toca a disparar!

Aforismos do Pão com Manteiga: Jogos (maio 1981)

* Não faça jogo sujo; antes do poker, lave as mãos

* É óptimo jogar aos bilas nos cemitérios; as covinhas já estão feitas

* Nas cartas, como no resto, uma dama nunca se balda

* Quem não gosta do jogo do galo, muitas vezes, é a galinha

* Nunca jogue í  barra do lenço com ranhosos

* Até no xadrez os bispos andam em diagonal

* O jogo do chinquilho é o diminutivo do chamado jogo dos chinco que, como xe xabe, é jogado por chinco jogadores.

“Como Fazer Amor com um Negro sem se Cansar”, de Dany Laferrií¨re (1985)

Dany Laferrií¨re nasceu no Haiti em 1953, emigrou para o Canadá e fixou.se em Montreal em 1976. Trabalhou em fábricas dos subúrbios e foi lendo os seus autores preferidos, entre os quais se destaca Henry Miller.

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Este pequeno livrinho com um título bem provocatório faz lembrar, de vez em quando, a escrita torrencial do Miller ““ mas só de vez em quando.

Tudo se passa í  volta de um negro que está a escrever um romance, do seu companheiro de quarto, uma espécie de guru muçulmano que passa a vida a dormir e de muitas raparigas brancas ““ raparigas universitárias que, pelos vistos, adoram foder com pretos. Segundo a personagem principal do livro, Cota, parece que as universitárias brancas de Montreal têm uma obsessão pelos negros e querem ir com eles para a cama. O resto, são congeminações sobre literatura, poesia, versículos do Corão, muito vinho e cerveja.

Um pequeno livro curioso.

“Lições”, de Ian McEwan

Lições foi o melhor livro que li neste último ano. Ian McEwan é um dos meus autores preferidos e este calhamaço de 650 páginas excede as expectativas

O livro conta-nos a história de Roland Baines, desde que, aos 11 anos, é seduzido pela sua professora de piano, Miss Miriam Cornell, até í  sua velhice, depois de passar por muitos episódios marcantes, ao mesmo tempo que se assinalam os diversos acontecimentos da actualidade: a crise dos mísseis de Cuba, a queda muro de Berlim, Chernobyl, Margareth Tatcher, Angela Merkel e, finalmente, a pandemia do covid 19.

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A sua relação com a professora de piano vai ser marcante para a sua vida. Entre os 14 e os 16 anos, Miriam Cornell toma Roland como seu escravo sexual. Ele consegue libertar-se, mas essa memória vai perdurar por toda a vida. Mais tarde, outro episódio também deixa marcas: a sua mulher abandona-o, a si e a um filho de meses, porque se quer tornar uma grande escritora. E já quase no fim da vida, enfrenta a morte inesperada de uma última companheira.

O livro tem passagens que merecem ser citadas e aponto aqui apenas algumas, caso contrário, teria que transcrever quase todo o livro.

Na página 32, Roland fala do cocó do filho Lawrence:

“…Sem fazer barulho, Lawrence fez cocó enquanto dormia. O cheiro não era assim tão mau. Uma das descobertas da meia-idade ““ o quão depressa começamos a tolerar a merda da pessoa que amamos. É uma regra geral.”

Eu acrescentaria: é dos livros!

í€cerca da relação entre pais e filhos, nos anos 1950:

“…Nos anos cinquenta, muitos pais não eram muito próximos dos filhos, especialmente das filhas. Abraços, expressões de amor, eram considerados demasiado vistosos, demasiado embaraçosos. A sua própria infância foi típica. Palmadas nas pernas, no rabo, eram comuns. As crianças, por muito amadas que fossem, tinham de ser educadas e não ouvidas.”

Sobre a relação especial de Roland com uma das suas netas:

“…Ficava comovido pela forma como ela o procurava para lhe apresentar as suas reflexões solenes ou as suas perguntas ponderadas, ou para insistir que ele se sentasse ao lado dela nas refeições. Queria saber coisas do seu passado. Ficava fascinada pelas evidências claras da pujante vida interior de uma criança de seis anos. (…) Achava que Stefanie o considerava um bem antigo e extremamente precioso, cuja existência frágil tinha o dever de conservar. Sentia-se lisonjeado sempre que ela lhe dava a mão.”

Finalmente, quando Roland enfrenta a lenta e dolorosa agonia da pessoa que ama, fala sobre a eutanásia.

“…Tinham passado dois séculos antes de o establishement ter achado que valia a pena olhar por um microscópio para examinar os microrganismos que Antoine van Leeuwenhoek tinha descrito em 1673. Estava contra a higiene porque era um insulto í  profissão, contra a anestesia porque a dor era um elemento de doença dado por Deus, contra a teoria germinal da doença porque Aristóteles e Galeno pensavam o contrário, contra a medicina baseada na evidência porque não era assim que as coisas eram feitas. Agarraram-se í s sanguessugas e í s sangrias durante o máximo tempo possível. Em meados do século XX, defenderam a amigdalectomia maciça das crianças, apesar das provas. Um dia, eles chegariam ao direito de uma pessoa racional escolher a morte em vez de uma dor insuportável e impossível de amenizar.”

Livro que deve ser lido já!

Outros livros de McEwan: A Barata; Máquinas Como Eu; Numa Casca de Noz; A Balada de Adam Henry; Mel; Na Praia de Chesil; Cães Pretos; Entre os Lençóis; O Jardim de Cimento; Solar