Faleceu o escritor Horace Scott (? – 2020)

Autor de diversos romances, poesia e teatro, desconhece-se a sua verdadeira idade, bem como a causa da morte.

Horace começou muito novo como autor de pequenos textos que publicava no jornal local de Louisville, onde residia com os tios paternos. Eram textos muito toscos, próprios de um adolescente que pouco sabia da vida, embora estivesse convencido de que era dono da verdade.

Nessa altura, Scott afirmava ter 17 anos, mas havia quem dissesse que ele não tinha mais de 13. Os pais haviam morrido num acidente de viação e os tios, que assumiram a sua educação, não gostavam do convívio social e nunca esclareceram esta questão.

Terá sido por volta dos 20-22 anos, que Horace Scott se juntou a uma comunidade hippie. Estávamos em pelos anos 60 do século 20, e, enquanto viveu nessa comunidade, Scott escreveu três romances, todos eles com conteúdo fortemente psicadélico, pelo que é lícito pensar que consumiu drogas, nomeadamente, LSD.

Uma vez, foi visto a urinar para um lago, perto de Woodstock e presume-se que tenha tido relações sexuais com homens e mulheres e até com uma ovelha, a Dolly, principal personagem de um desses três romances.

Farto de cenas psicadélicas, abandonou a comunidade hippy e estabeleceu-se numa pequena vila perto de Santa Mónica, com uma loja de venda e reparação de skates. Enquanto foi gerente dessa loja, teve uma relação muito séria com uma pessoa que nunca foi identificada, mas, segundo dizem, seria um bombeiro transgénero.

Apesar de ter muitos clientes, conseguiu tempo livre para escrever o famoso “Lonely Winter”, que distribuiu em stencil por clientes e amigos.

Trespassou a loja de skate quando começaram a surgir os primeiros cabelos brancos e partiu para uma viagem à volta do mundo, sempre à boleia.

Consigo levou a sua nova companheira, uma bailarina reformada por ter fracturado a tíbia direita no Lago dos Cisnes.

Percorreu todos os continentes, nunca utilizando o avião e parando aqui e ali; em todos os locais que parava, Scott tentava arranjar um emprego temporário, tendo feito quase tudo, desde lavar pratos a vigiar a entrada em discotecas.

A sua volta ao mundo durou sete anos, durante os quais escreveu mais três romances, destacando-se “Quiet Times”.

Depois de regressar a Santa Mónica, terá ganho uma grande quantia num raspadinha, o que lhe permitiu comprar a sua última moradia, onde acabou por falecer, depois de escorregar na borda da piscina e cair lá dentro.

Não sabia nadar.

Foi encontrado pela actual namorada, uma vendedora de hot dogs com psicose afectiva.

Horace Scott nunca chegou a publicar nenhuma das suas obras.

Invenção perdida

Em 1552, da parte da tarde, Ludwig VonStrauss tinha o problema resolvido.

Pensava ele…

Ludwig podia ser conhecido como engenhocas se, no século 16, esse termo fosse utilizado. Ainda não havia engenheiros, quanto mais engenhocas…

Todos conheciam o seu engenho.

Já fora ele que inventara o pano para secar a loiça.

Nesses tempos, a loiça, depois de lavada (quando era lavada), ficava a secar ao ar. Foi Ludwig que inventou o pano para secar a loiça.

Mas VonStrauss inventou mais coisas: o tapete para limpar o calçado, antes de entrar em casa e até os pequenos panos para limpar os óculos.

Limpeza era com ele.

Naquele dia, no entanto, não era a limpeza que o preocupava, mas como tirar as ervilhas de dentro das vagens.

Ervilhas com ovos, eis o prato favorito de Ludwig e da sua família, mulher e sete filhos.

No quintal da família, o terreno era fértil e as ervilhas cresciam.

Ludwig e a esposa passavam tardes a descascar ervilhas, com dores nas costas garantidas, ao fim de horas de descascanço.

Naquele fim de tarde, enquanto caminhava ao longo das margens do Reno, Ludwig teve uma ideia luminosa, a ideia para uma máquina para descascar ervilhas.

Assim que chegasse a casa, iria tentar construir essa máquina que pouparia, à sua mulher e a ele próprio, horas de trabalho.

Infelizmente, nada ficou escrito e não sobreviveram testemunhas, capazes de transmitir aos herdeiros, os segredos de tal máquina – se é que ela alguma vez existiu.

É por isso que, actualmente, temos de continuar a descascar ervilhas à mão…

Relatório interestelar

Alimentam-se de modo muito estranho.

Têm uma abertura transversal na parte de cima do corpo, rodeada por duas zonas esponjosas, verdadeiramente nojentas.

Essa abertura dá passagem a uma câmara com duas filas de peças brancas, de consistência dura e uma outra peça esponjosa, igualmente nojenta.

Eles colocam os alimentos nessa abertura e depois imprimem movimentos de cima para baixo, com aquelas peças mais duras, triturando os alimentos e misturando-os com aquilo a que chamam saliva, graças àquela peça esponjosa.

Mas nem todos se alimentam desta maneira.

Verificámos que os elementos mais novos da espécie se alimentam directamente dos mais velhos. Observámos indivíduos muito pequenos a sugarem algo que sai de uma excrescência que alguns indivíduos maiores possuem na zona intermédia dos seus corpos.

Comprovámos, assim, que eles se alimentam de sólidos, mas também de líquidos, sem que isso danifique os seus sistemas, ao contrário do que acontece com a nossa espécie.

Um dos nossos voluntários experimentou um dos alimentos que eles usam e a que chamam vinho e ficou inoperacional.

Já o enviámos para reordenamento.

Outro hábito estranho que presenciámos reside no facto de esta espécie se reunir em determinadas instalações para se alimentar.

Visitámos, dissimulados, locais onde muitos elementos da espécie introduzem alimentos sólidos e líquidos na tal abertura transversal, todos perto uns dos outros, em grandes grupos; quase conseguimos ouvir os ruídos das peças duras a triturar os alimentos.

Chamam restaurantes a esses locais.

Pensamos que este planeta não nos interessa e teremos de encontrar outro para colonizar…

Pombos

A nossa organização social é muito complexa.

Quem nos veja na rua, nos parques, junto aos monumentos, nas grandes praças da cidade ou nas esplanadas, pode pensar que somos desorganizados, caóticos, anárquicos. Nada de mais errado.

Eu sei que, por vezes, parece que não temos nenhum tipo de organização, sobretudo quando se vêem alguns de nós a saltar para cima das mesas dos McDonalds a debicar as batatas fritas e os restos dos Big Mac, que os clientes deixam abandonados.

Nesse caso, não se pode tomar a nuvem por Juno – são jovens, e todos sabemos como funcionam os jovens, ou melhor, como não funcionam, quebrando todas as regras.

Se reparem bem, esses são pombos jovens, ainda sem a maturação sexual que lhes permita procriar e, portanto, canalizam toda a sua energia para disparates, como devorar fast food que só lhes faz mal.

Aproveito para me apresentar. Chamo-me Pim e sou um pombo de segunda categoria. É verdade, estamos divididos por categorias, ou castas, a saber: a primeira categoria congrega os seniores, aqueles que já cumpriram a sua tarefa reprodutora e que aguardam, tranquilamente, a transferência para a vida eterna dos pombos, na qual quase todos acreditamos. Há uma pequena percentagem que diz que tudo acaba com a morte, mas a maioria acredita na passagem para uma vida melhor, onde só há estátuas e relvados e não há carros para nos esmagar nem funcionários camarários para nos esterilizar.

A segunda categoria é a mais representada e congrega todos os pombos em idade para reproduzir. É o meu caso. Nós só pensamos em comer e foder. Voamos do topo dos candeeiros para os muros, do alto das estátuas para a calçada, sempre em busca de migalhas ou da pomba mais próxima, que esteja disponível para receber o nosso adn.

A terceira categoria pertence aos jovens, aos tais que atacam as esplanadas e que cagam em qualquer lado, sem olhar a heróis do Estado ou a figuras altamente recomendáveis. Eu, por exemplo, nunca caguei em estátuas, preferindo sempre os símbolos do capitalismo, como BMW ou Mercedes. Durante alguns anos, vivi junto à estátua do D. José, ali no Terreiro do Paço, e um dos meus desportos favoritos era cagar nos carros dos ministérios. Sempre aquele meu fundo anarquista…

Finalmente, a quarta categoria de pombos refere-se aos borrachos, que ainda só têm penugem em vez de penas e que mal se têm em cima das patas.

Portanto, atenção: da próxima vez que vejam um dos nossos bandos, esvoaçar do alto de uma estátua para o passeio, em busca de migalhas, não nos olhem com desprezo.

Pertencemos a uma comunidade altamente organizada e que continuará por aqui, muito tempo depois do vosso desaparecimento…

O galo

Era um insone de longa data.

Durante anos, tomou comprimidos para dormir. Se não os tomasse, ficava horas a contemplar o tecto, na semiobscuridade do quarto.

Experimentou todas as técnicas, desde a respiração sincopada à contagem de carneiros. Nada resultava, a não ser o comprimido mágico, tomado uma hora antes de ir para a cama.

Muitos mais anos depois, conseguiu deixar os comprimidos e o seu padrão de sono modificou-se radicalmente: adormecia facilmente, mas tinha acordares precoces.

Bastava encostar a cabeça à almofada para que os seus olhos se fechassem e o sono se abatesse sobre ele. No entanto, se um golpe de vento fazia bater uma janela, se o camião do lixo fazia um pouco mais de barulho ou se uma ambulância passava com a sirene ligada, era certo e sabido que acordava. Depois, para voltar a adormecer era o cabo dos trabalhos.

As coisas pioraram com o aparecimento do galo.

A partir de certa altura, por volta das 5 da madrugada, um galo cantava.

E ele acordava.

E o galo repetia o seu canto três ou quatro vezes e ele já não conseguia voltar a adormecer.

Um galo em plena cidade!

Quem teria tido a ideia?

Ainda pensou em voltar aos comprimidos, mas decidiu-se por algo de mais radical.

Na madrugada seguinte, assim que o galo começou a cantar, saiu de casa, empunhando a faca mais bem afiada que possuía.

Seguindo o som, encontrou-se, cara a cara, com o galo, num quintal vizinho.

Para que é a faca? – perguntou o galo.

Mas tu falas?! – espantou-se o homem.

Claro que falo! Para que é a faca?! – insistiu o galo.

O homem estava perplexo e hesitou um pouco.

Estás espantado com quê? – questionou o galo – Todos os animais falam! Desde sempre! Mas raramente o fazemos à frente de vocês, humanos. Para que é a faca?! Querias cortar-me o pescoço?

O homem fez que sim com a cabeça.

Porquê?! – perguntou o galo.

Por causa do barulho, – respondeu o homem – Assim que começas a cantar, acordo e não consigo voltar a adormecer.

Desculpa, – disse o galo – está na minha natureza cantar de madrugada. Vou tentar cantar mais baixinho.

E assim foi.

O galo passou a cantar mais baixo e o homem nunca mais acordou de madrugada.

Tudo se consegue com o diálogo.

As sementes de Scott Ring

Scott Ring trouxe duas sementes.

Foi avisado pelos seus superiores da Nasa que não podia levar nada da Estação Espacial, mas Scott não resistiu.

Scott Ring foi o recordista da Estação, tendo lá ficado um total de 378 dias seguidos. Outros astronautas foram e vieram, e Scott aguentou lá em cima, em órbita, mais de um ano. Sem interrupções.

Quando regressou à Terra, fechou-se em casa e por lá ficou.

Aliás, os chefes da Nasa também não queriam que ele andasse por aí, correndo o risco de dar entrevistas. Foi avaliado por uma equipa de psicólogos e verificou-se que estava afectado. Seria melhor que ficasse sossegado, em casa, sem falar com ninguém, nomeadamente com a comunicação social. Diria coisas inconvenientes, certamente.

Mas o próprio Scott Ring não sentia necessidade de falar com ninguém; preferia ficar fechado em casa.

E, ao contrário do que lhe foi dito com firmeza, trouxe da Estação Espacial, duas sementes de beringela.

Duas sementes que tinham sido sujeitas a diversas experiências, nomeadamente a um banho de raios cósmicos.

Scott saiu da Estação com um punhado dessas sementes e expô-las à radiação durante o seu passeio espacial.

Depois, as sementes foram enterradas numa mistura orgânica de composição secreta e, depois, transladadas para os laboratórios da Nasa. Excepto as duas sementes que Scott sonegou.

Quando chegou a sua casa, no Wisconsin, Scott enterrou as sementes em dois vasos. Colocou o primeiro vaso junto à janela da cozinha, que apanhava muito sol logo pela manhã e o segundo vaso foi para o quintal da sua casa, num local sombrio

Nos dias seguintes, foi vigiando os dois vasos, sem qualquer resultado.

As sementes que trouxera do espaço pareciam não gostar dos ares do Wisconsin.

No entanto, cerca de vinte dias depois, o vaso da cozinha começou a exibir umas folhinhas verdes. O outro, nada.

Scott entusiasmou-se, mas por pouco tempo.

As folhinhas verdes depressa mirraram e desapareceram.

O ex-astronauta deprimiu-se. Por um lado, sentia-se triste devido ao abandono dos seus colegas da Nasa, que tinham deixado de lhe falar, por outro, estava esperançado que, com aquelas sementes, pudesse, novamente, voltar à ribalta.

Na semana seguinte, a meio da noite, ouviu um ruído estranho, vindo do quintal. Foi ver. Do vaso que lá colocara, erguia-se agora uma planta vigorosa, carregada de beringelas gigantes.

No dia seguinte, logo pela manhã, Scott colheu uma das beringelas, abriu-a ao meio. Recheou-a com queijo feta e assou-a. Estava deliciosa.

Ao jantar, fez uma salada com outra das beringelas espaciais. Lambeu os beiços e adormeceu de barriga cheia.

Acordou por volta das 4 da manhã, com o quarto todo iluminado.

Esquecera-se de desligar a luz?

Não! A luz provinha dele próprio. Scott iluminava todo o quarto com uma luz fosforescente, esverdeada.

A intensidade do brilho de Scott foi aumentando à medida que ele ia comendo as beringelas espaciais. À noite, já não precisava de acender as luzes: ele próprio iluminava toda a casa.

Deixou de sair de casa. O brilho esverdeado que dele imanava assustaria as pessoas, certamente. Scott era, agora, um ex-astronauta radioactivo.

Na planta do quintal restava apenas uma beringela e Scott comeu-a grelhada no jantar daquela noite fatídica.

Nessa noite, quase duas semanas depois de ter deixado de acender as luzes, Scott decidiu experimentar acender a luz da sala. Queria ver se havia alguma reactividade entre a luz eléctrica e a sua luz própria.

A explosão foi ouvida no Dakota do Sul.

Naufrágio

Luís nada só com uma mão.

Na outra, segura o manuscrito e tenta mantê-lo acima da água.

O naufrágio apanhou todos desprevenidos e Luís só teve tempo de agarrar nas centenas de folhas já escritas, embrulhá-las num pedaço de tecido e atirar-se à água, sempre com o braço esquerdo levantado, segurando o trabalho dos últimos meses.

Felizmente, a costa não estava longe e Luís era um bom nadador; além disso, o mar não estava muito encrespado e o naufrágio não fora provocado por mar alteroso, mas por má manobra do leme.

A poucos metros da costa, no entanto, Luís quase desfalece. A longa travessia tinha-o enfraquecido, pouco comera e a falta de legumes e frutos frescos, provocava-lhe cãibras.

Mais um esforço! – pensava Luís.

Mas as forças estavam no limite e, por um momento, Luís desfalece.

Uma onda cobre-o e leva-lhe o manuscrito.

Luís desperta e tenta alcançá-lo, em vão.

Por momentos, pensa que não vale a pena continuar a viver. Perdeu a obra da sua vida.

No entanto, o espírito de sobrevivência é mais forte e, num último esforço, Luís atinge a praia.

Esgotado, sentado na areia, olha para o mar durante longos minutos.

No fundo daquele mar jaz o seu maior e melhor trabalho.

É por isso que hoje, Camões é apenas conhecido pela sua Lírica.

Falhas de memória

Lembro-me pouco da minha infância.

Penso que tive uma infância feliz, mas não tenho a certeza. Tudo está um pouco esfumado. Lembro-me vagamente de dizer que gostaria de ser bombeiro quando fosse crescido. Ou polícia. Era o que muitos miúdos diziam nessa altura.

Claro que nunca me tornei bombeiro nem polícia. Ou será que fui uma dessas coisas e já não me lembro bem?

A verdade é que já nem me lembro do que fiz ontem ou sequer do que almocei hoje.

A memória está a esboroar-se e a esvair-se, como grãos de areia entre os dedos.

Lembro-me, no entanto, de ter sido banqueiro – também era melhor que não me lembrasse, já que, todos os dias, os meus familiares e o meu advogado mo recordam.

Dizem-me que fui dono de um grande Banco e, pensando bem, espremendo as meninges, consigo lembrar-me disso. Vem-me à memória a cor verde. Por que será?…

Terei tentado ser o banqueiro do povo?

Parece que, afinal, não tive alternativa senão ajudar familiares e amigos e agora acusam-me de ter metido dinheiro ao bolso. Meto as mãos nos bolsos e estão vazios! Onde terei escondido tanto dinheiro? Na Suíça, como diz a acusação? Nem me lembro de ter lá estado alguma vez!

O meu advogado diz que tenho falhas de memória, que sofro de um défice cognitivo; se calhar é verdade.

Foi por isso que vim para a Sardenha, apanhar sol.

Sardenha, onde será isto?…

O Óscar dos discursos

Era conhecido como o Óscar dos discursos.

Desde o tempo da instrução primária que se distinguia pela suas redacções. Escrevia bem, sem erros ortográficos e com frases curtas e elegantes. Todos pensaram que seria escritor. E, de certa maneira, tornou-se escritor, mas não de romances.

Por volta dos 15 anos, Óscar passou-se. As más companhias, dizia a mãe. Farras todas as noites, muito álcool e fuminhos. Com dificuldade, muita dificuldade, terminou o 12º ano quase com 20 anos e entregou-se ao desemprego.

Foi Silvestre, o seu amigo de infância que lhe deu a mão.

Silvestre era candidato a presidente da Câmara e não tinha jeito nenhum para discursos; engasgava-se, repetia-se, corava e acabava por dizer meia dúzia de patacoadas sem sentido. Ora, para ser eleito presidente precisava de convencer os seus eleitores, até porque tinha como principal oponente, Luís Onofre, que era conhecido por ter o dom da palavra.

Silvestre lembrou-se então de Óscar e contratou-o para lhe escrever os discursos.

Óscar agarrou a oportunidade com ambas as mãos. Pôs de lado o álcool e os fuminhos e começou a escrever os melhores discursos que a cidade alguma vez tinha ouvido.

Silvestre ganhou a eleição com facilidade e levou Óscar para a Câmara.

Entretanto, a fama de Óscar ultrapassou os limites da cidade e em breve recebeu convites para escrever outros discursos: do presidente do Lion’s Club local, de noivos envergonhados, de dirigentes desportivos, de responsáveis da Misericórdia, bem como elogios fúnebres e outros de circunstância.

Óscar não recusava nada e foi amealhando prestígio e uma conta bancária que lhe permitiu trocar a cerveja pelo whisky japonês. Estacionou no Suntory Hibiki de 17 anos, a 800 euros cada garrafa.

Todos sabemos como o acto de escrever é solitário e Óscar combatia essa solidão com dois dedos de Suntory, aliás, quatro dedos. Puro, sempre sem gelo.

A pouco e pouco, o consumo de Suntory foi subindo e, por vezes, Óscar sentia alguma dificuldade em terminar certos discursos, mas o trabalho não rareava, antes pelo contrário – cada vez tinha mais discursos para escrever. Em cima da sua secretária, misturavam-se discursos de casamento e de funeral, com peças oratórias mais sérias, para serem lidas na Assembleia e em outros cenários políticos.

Foi naquela tarde de domingo que tudo se desmoronou.

O presidente que, entretanto, também recorrera aos seus serviços, subiu ao palanque no Dia Nacional das Forças Armadas e, virando-se para o Chefe do Estádio Maior, disse:

– Margarida, meu amor…

Indecisão autárquica

Jaime Rodrigues aceitou concorrer à autarquia.

Ficou espantado pelo convite, feito por um partido de Direita, uma vez que era conhecido no concelho por ser um tipo desde sempre ligado à Esquerda. Mas ficou, também, lisonjeado. Finalmente, havia alguém que lhe dava o devido valor como economista com trabalhos publicados.

Durante anos de militância na Esquerda, o seu valor tinha sido ignorado e agora, um partido de Direita convidava-o – que havia de fazer senão aceitar?

Assim que se soube que Rodrigues aceitara o convite para ser candidato em lugar elegível pelo partido de Direita, começaram a chover as críticas.

Companheiros que, antes, nunca tinham ligado ao trabalho de Rodrigues, consideravam, agora, que era uma traição o facto de ele ter aceitado aquele convite. Muitos disseram que alguns partidos de Esquerda estavam a pensar convidá-lo para candidato – mas assim, nem pensar!

Rodrigues começou a sentir-se dividido. No fundo, sempre se considerara uma pessoa de Esquerda, mas a sua vaidade levara-o a aceitar o convite da Direita.

Deveria voltar atrás e rejeitar o convite e esperar que algum partido da Esquerda o convidasse, ou devia fazer orelhas moucas às críticas e manter a sua decisão?

Esta dúvida terrível começou a interferir com o sono de Jaime Rodrigues.

À noite, demorava horas até conseguir conciliar o sono e, quando ele chegava, era um sono inquieto, repleto de pesadelos.

Certa vez, acordou a meio da noite com a nítida sensação de que a cómoda, que estava ao lado da cama, se transformava num monstro horrível. Suado e com o coração a mil, sentou-se na cama e olhou para a cómoda. Não estava lá monstro nenhum, apenas um móvel antigo, que tinha comprado num antiquário há uns dez anos.

Mas a cena repetiu-se algumas noites mais tarde e Rodrigues iria jurar que a cómoda transformada em monstro, abrira uma bocarra imensa, pronta para o engolir.

Cada vez mais assustado, decidiu consultar um entendido nessas coisas.

Contou-lhe da cómoda que se transformava em monstro a meio da noite. O entendido sossegou-o: não andaria sob grande stress? Rodrigues disse que sim e falou na sua indecisão autárquica. O entendido sorriu e disse que era essa dúvida existencial que estava a criar monstros na mente de Rodrigues. Claro que era impossível uma cómoda transformar-se em monstro!…

Não era.

Na noite seguinte, a cómoda engoliu Jaime Rodrigues, de um só golpe.

Os entendidos, nem sempre entendem tudo…