“Estilhaços”, de Bret Easton Ellis (2023)

Nunca tinha lido nada deste beste-seller norte-americano, sobretudo conhecido pelo seu romance “Psicopata Americano” e confesso que fiquei cansado, depois destas 621 páginas de letra pequenina.

Numa introdução, Ellis faz-nos crer que vai contar acontecimentos que viveu aos 17 anos, quando era finalista de Buckley, um liceu na área de Los Angeles. Esses acontecimentos são marcados pela existência de um serial killer que, em 1980-81, foi responsável por alguns crimes horrendos. Claro que a memória de Ellis é prodigiosa, uma vez que se recorda das músicas que estavam a tocar em determinados locais, da roupa que ele e os colegas do liceu usavam em determinados dias, da decoração das diversas casas onde decorriam as festas. A certa altura, parecia estar a ler um dos livros de Knausgard, aquilo a que chamam autoficção.

o jovem Ellis e os seus colegas movimentam-se num ambiente de gente rica; todos conduzem grandes máquinas, saltitam de festas em festa, têm pais que lhes dão toda a liberdade, a maior parte deles divorciados, vivem em grandes mansões com piscina e todos se drogam, sobretudo com coca, erva, Valium e Qualuudes.

Ellis é homossexual e tem relações com um colega e não só, mas esconde esse facto e, oficialmente, tem uma namorada.

As descrições dos grandes carros e dos seus percursos, chega a ser enfadonha:

“A seguir endireitei-me e liguei o carro e segui o Porsche para Valley Vista. Nessa tarde se gunda-feira o Robert virou à esquerda para Beverly Glen, em lugar de continuar por Valley Vista até à 405, o que significava que ia passar pela casa em Benedict Canyon. (…)

Esperei que passasse outro carro e segui o Robert até ele parar no semáforo em Sunset Boulevard e virar em direcção a Beverly Hills, onde Benedict Canyon entrava em North Canon Drive, e percebi que ele ia passar pela casa da Susan Reynolds…”

Quanto às roupas e acessórios, o autor faz questão de nos descrever tudo ao pormenor, incluindo as marcas.

“Ele tomara banho e tinha o cabelo penteado para trás e vestia calças de ganga e uma Lacoste azul a combinar com os olhos e um casaco Members Only, e sorriu-me de novo enquanto entrávamos no átrio…”

Mas Ellis também descreve, em pormenor, alguns encontros amorosos, de um modo muito gráfico:

“… o filme era bom, mas não achei nenhum dos rapazes britânicos atraentes, apesar de serem jovens atletas universitários, porque, suponho, estar ali sentado tão perto do Ryan me distraía, e estava muito consciente de todos os meus movimentos. Queria tocar-lhe, passar os dedos pelo fecho das calças dele, puxar-lhe o caralho para fora e masturbá-lo, só para poder ver a cara dele durante o orgasmo e cheirar-lhe o sémen, e fiquei instantaneamente teso ao pensar nisso.”

Em resumo, a história que Bret Easton Ellis conta podia ser resumida em metade das páginas, mas penso que o autor quis mesmo que o livro fosse assim, cheio de descrições de roupas, e de festas, e de drogas e de orgias, para dar a chamada cor local dos anos 80 na Los Angeles dos muito ricos.

Não me impressionou…

“Seios e Óvulos”, de Mieko Kawakami (2019)

Kawakami nasceu em Osaka (1976) e é conhecida como cantora, escritora e autora de um blog, aparentemente com muito sucesso.

O livro “Seios e Óvulos” parece ter agitado muito aa águas editoriais japonesas, que devem ser dominadas por homens, aparentemente como toda a sociedade. Murakami, outro autor japonês com muito sucesso, diz que “nunca poderei esquecer a sensação de puro deslumbramento que senti quando li pela primeira vez (este livro)”.

É a opinião dele, claro.

Este calhamaço de quase 500 páginas está dividido em dois livros.

No Livro Um, a narradora, Natsuko, recebe na sua casa de Tóquio a irmã, Makiko e a filha desta, adolescente Midoriko. Natsuko está a tentar tornar-se escritora. Makiko é anfitriã num bar manhoso em Osaka, onde todas viviam inicialmente. Midoriko está zangada com a mãe e não lhe fala e responde às suas perguntas escrevendo num caderno. As duas irmãs vêem televisão e bebem cerveja até cair para o lado. Makiko quer operar as mamas, está obcecada com isso. As duas irmãs viveram com a mãe e com a avó, que já faleceram. O pai era um calão alcoólico, que abandonou o lar.

No Livro Dois, Natsuko já publicou um livro, que teve um sucesso relativo, mas está encalhada na escrita do segundo romance, mas, a partir de certa altura, nunca mais se fala nisso porque a sua obsessão é ter um filho a apetir de um dador mais ou menos anónimo. Em tempos, teve uma relação com um homem, mas nunca gostou de ter relações sexuais; doía-lhe e não tinha prazer. Nunca mais quer experimentar – daí, ter de recorrer a um dador para ter um filho. Pelos vistos, no Japão, é possível conhecer um dador num qualquer blogue, encontrar-se com ele num café e ficar com o seu esperma, que ele vai obter na casa de banho do café – ou é assim, ou há algum lost in translation…

Também neste segundo livro, os homens estão praticamente ausentes e as mulheres embebedam-se com frequência.

Na página 363, Rika, uma amiga de Natsuko, diz:

“Quer dizer, um homem nunca pode perceber o que realmente importa para uma mulher. nunca. Quando se diz este tipo de coisas, as pessoas dizem logo que somos tacanhas ou que nunca conhecemos o verdadeiro amor ou qualquer coisa desse género. Dizem que não se podem enfiar todos os homens no mesmo saco assim, mas, infelizmente, é a verdade. Nenhum homem alguma vez compreenderá as coisas que são realmente importantes para uma mulher.

(…)

Estão num pedestal a partir do momento em que nascem. Só que não percebem isso. Sempre que precisam de alguma coisa, as mães vêm a correr. São ensinados a acreditar que os seus pénis os tornam superiores e que as mulheres só existem para eles as usarem como bem entenderem. Depois, saem para o mundo, onde tudo se centra neles e nas suas pilas. E são as mulheres que têm de arranjar forma de as coisas funcionarem. Afinal, de onde vem esta dor que os homens sentem? Na opinião deles: vem de nós. A culpa é toda nossa… por serem impopulares, estarem falidos, desempregados. Seja o que for, culpam as mulheres por todos os seus fracassos, por todos os seus problemas. Agora pensa nas mulheres. Independentemente da forma como vires as coisas, quem é realmente responsável pela maior parte da dor que as mulheres sentem? Se pensarmos nisso dessa forma, como é que um homem e uma mulher se podem entender? É estruturalmente impossível”

E esta não é apenas a opinião desta amiga na narradora – é o tom geral do livro. Há dois mundos totalmente separados: o dos homens e o das mulheres e é impossível, aparentemente, haver ligação entre eles.

Para além desta dicotomia, o livro relata alguns fenómenos que desconhecia existirem na sociedade japonesa, propagandeada como tão certinha e direitinha: os sem-abrigo, os bares das anfitriãs em todas as ruas, os banhos comunitários, etc.

Um livro curioso, proveniente de uma sociedade que talvez venha a conhecer melhor em breve.

“O Historiador”, de Elizabeth Kostova (2005)

Tinha este livro na estante desde 2005. Penso que lhe peguei, em tempos, que o comecei a ler, mas desisti, talvez porque o tema não me interessou e porque era demasiado volumoso para a minha vontade de o ler.

Com efeito, é um calhamaço de 598 páginas, em letra miudinha e o tema do livro não me entusiasma muito – vampiros, mais precisamente, Vlad III Tepes, o Impalador, também conhecido por Drácula.

Elizabeth Kostova (New London, Connecticut, EUA, 1964) escreveu este romance ao longo de dez anos, tendo como inspiração o seu próprio pai, que era professor, e que lhe contava histórias sobre vampiros. Nessa altura, a família vivia na Eslovénia, mas viajava pela Europa, tal como o pai da protagonista do livro.

Histórias de vampiros, mortos-vivos e ofícios correlativos, não são da minha preferência e tive de fazer um esforço para ler este tijolo até ao fim, mas como o li em voz alta, e a minha audiência foi muito compreensiva, consegui ir até ao fim.

Por alguma razão os direitos do livro foram adquiridos pela Sony, por quase 2 milhões de dólares e o filme ainda não chegou sequer à produção. E por alguma razão estava intocável na minha estante há 18 anos!

No fundo, o livro poderia ter um terço do tamanho se Kostova soubesse, ou quisesse, ser mais sintética. Repleto de referências históricas, o livro resume-se à busca pela tumba do Drácula que, afinal, parece que fica em França – ou será que é em Istambul, Bulgária, Roménia, ou até Filadélfia?

Não aconselho.

“Empúsio”, de Olga Tokarczuck (2022)

O excelente livro “Viagens” deu-me a conhecer esta escritora polaca ((Sulechow, 1962). Li-o em 2019, que foi o ano em que Tokarczuck recebeu o Nobel.

Depois desse livro, li todos os que foram publicados em Portugal: “Conduz o Teu Arado Sobre os Corpos dos Mortos”, “Outrora e Outros Tempos”, “Casa de Dia, Casa de Noite” e “Histórias Bizarras”.

Todas essas leituras fizeram com que Olga Tokarczuck se tornasse uma das minhas escritoras preferidas.

E surgiu, agora, este “Empúsio” – neologismo que é uma amálgama linguística de Empusa, figura mitológica grega e Simpósio.

A acção decorre em 1913 na cidade termal de Gorbersdorf, na Baixa Silésia. É lá que existe um famoso sanatório que permite a cura da tuberculose, graças a um conjunto de tratamentos que consistem, fundamentalmente, em repouso, boa alimentação, caminhadas, duches e massagens. Embora o bacilo de Koch já fosse conhecido, ainda não existiam os anti-tuberculostáticos, nem a BCG.

A principal personagem é um jovem engenheiro hidráulico, de Lviv, chamado Mieczyslaw. Está alojado na Hospedaria para Cavalheiros, onde vai conviver com mais quatro ou cinco personagens, todos homens, claro. Aproveitam as caminhadas e as refeições para, depois de beberem boas quantidades de uma tintura alcoólica, discutirem assuntos importantes como a morte, a religião, a arte, a democracia ou, acima de tudo, as mulheres, que eles menosprezam.

Diz Lukas (pág. 52):

“- As mulheres são por natureza mais delicadas e mais sensíveis e, por isso, tendem com facilidade a agir impensadamente”

Diz outro (pág. 54):

“- Nos homens, a força de vontade ajuda a combater alguma das tentações da loucura, mas as mulheres, que praticamente são desprovidas dela, não têm armas para lutar”

Diz o médico, o Dr. SemperweiB (pág. 173)

“- Cozinheira… Sabe que a culpa dos nossos fracassos é das nossas mães. São elas que moldam a nossa atitude para com o mundo e os nossos corpos. São estas as mais recentes descobertas de uma ciência chamada psicanálise. (…)

São as mães – prosseguiu – que contagiam os filhos com uma emotividade excessiva, o que faz com que fiquem vulneráveis a muitas doenças e fraquezas do espírito e, principalmente, a efeminação interior. A mulher, mutável e sempre instável, não é capaz de incutir no filho a consciência de que o mundo é o nosso desafio, que as suas leis são duras e a sua ordem exige de nós uma atitude sólida, com os pés bem assentes na terra, em vez de sucumbir a ilusões.”

Sobre a democracia e ideologias (pág. 120):

“- Bom senso e racionalismo. Tudo o que é mau advém de invenções e ideologias. Não há necessidade de acrescentar o que quer que seja ao mundo; o mundo é como vemos. É como é. Há leis que podem ser descritas. O seu número é finito. Algumas delas, ainda não as conhecemos. Deus existe e criou o mundo. Os seres humanos são, por natureza, canalhas; logo, precisam de ser controlados e de aprender constantemente. Os ricos são ricos porque são talentosos e têm bons contactos. Foi sempre assim e assim será sempre. A liberdade e a democracia podem existir, mas sem exageros. Os dez mandamentos são a matriz de todo o europeu, seja ele alemão, italiano ou romeno. Tem de haver algum tipo de ordem.”

Olga Tokarczuck escreve isto livro num tom irónico – aliás, o subtítulo demonstra essa ironia: “romance de terror naturopático”.

Ao que parece, todos os anos, aparece, na montanha que rodeia a aldeia onde fica o sanatório, o corpo de um homem jovem, todo esfrangalhado. Existem uns seres sobrenaturais – Tuntschi. Serão mulheres que emergem da Natureza?

O final é duplamente surpreendente: descobrimos quem está a narrar toda esta história e o protagonista sofre algo de inesperado.

Mas antes, não resisto a transcrever este excelente pedaço de prosa (pág. 243):

“Para já, sentimos os odores dos seus corpos que, saindo das camisolas, se elevam e ligam uns com os outros; são todos diferentes. Fommer cheira a pó, levemente almiscarado, um cheiro a papel seco, como se farfalhasse – o cheiro de uma pele velha, ressequida, de um porta-moedas desgastado. Lukas tem um cheiro forte – é um odor a medo e prontidão para a luta, a auréola invisível de um guerreiro insatisfeito que, tendo perdido a força física, participa numa guerra à distância, gritando ordens e comentando as jogadas dos estrategas. O cheio de August era completamente diferente – espalha vapores orgânicos de matéria podre, em breve consumidos por processo de putrefação e de decomposição das partículas do corpo; está rodeado de um cheiro a leite azedo, de despensa onde ficaram esquecidas reservas de comida, um cheiro já incontrolável mas ainda susceptível de se camuflar com água-de-colónia e um requintado sabonete para barbear. Por seu lado, Opitz está envolto numa nuvem de carboneto – um cheiro que faz ranger os dentes e salivar. Não há odor que possa ultrapassá-lo. Em contrapartida, Wojnicz espalha amplamente o seu cheiro, sem o saber. Enxota todos os outros cheiros, relegando-os para segundo plano, e domina-os; apesar de exalar esse odor, sente-se perdido e inseguro. É como se as suas feromonas estivessem carregadas de electricidade, avassaladoras, semelhantes ao cheio do pêlo de uma raposa ou de um cabrito que foge do caçador.”

Mais um grande livro de Olga Tokarczuck, traduzido do polaco, como sempre, por Teresa Fernandes Swiatkiewicz.

“As Sete Luas de Maali Almeida”, de S. Karunatilaka (2022)

Karunatilaka nasceu em Colombo, Sri Lanka, em 1975 e com este livro ganhou o Booker Prize.

É um livro estranho e tive alguma dificuldade em seguir esta narrativa por várias razões; por um lado, o ponto de partida não me é muito agradável: um fotógrafo, Maali Almeida, está morto e vagueia pelos meandros da capital do Sri Lanka, em busca de quem o matou e porquê. Almeida, um homossexual não assumido e jogador inveterado, escondeu algures umas caixas com fotografias comprometedoras para alguns dos notáveis do seu país.

O autor mistura a realidade do seu país com a mitologia do Sri Lanka. Na minha opinião, há espíritos, demónios e fantasmas a mais e, muitas vezes, perdi-me na narrativa.

Para quem tencione ler, aconselho a aprender, primeiro, um pouco sobre a mitologia do Sri Lanka.

“Baumgartner”, de Paul Auster (2023)

Auster é outro dos meus autores contemporâneos preferidos, a par de Philip Roth, mas este livro não merece ombrear com muitos outros que já li. Aliás, penso que li todos os livros de Auster publicados em Portugal, excepto o penúltimo A Vida Interior de Martin Frost.

Paul Auster está a envelhecer (tem 76 anos) e este Baumgartner tem o envelhecimento como tema central.

Baumgartner é um professor universitário e escritor de setenta e poucos anos, que perdeu a mulher há dez anos, mas que continua a viver com ela no seu pensamento. Chamava-se Anna e também era professora e poeta e tradutora. Curiosamente, traduzia poemas de Fernando Pessoa (página 63):

“(…) o Prémio Pen de Tradução atribuído em 1997 a Anna pelos seus Selected Poems of Fernando Pessoa…”

Todo o livro gira à volta do dia-a-dia de Baumgartner que, a propósito disto e daquilo vai recordando episódios da sua vida, o que torna o livro um pouco repetitivo e maçador.

Às tantas, Baumgartner inicia um curto relacionamento com outra professora (o livro é só professores universitários, cientistas e outros que tais) e aqui, salvo melhor opinião, Paul Auster mete o pé na argola.

Na página 86 diz:

“Com Anna, a diferença de idades fora apenas de dois anos e meio. Com Judith é de dezasseis, e aos quarenta e quatro anos ela ainda corre a toda a velocidade, ao passo que ele já não corre, arrasta os pés (nos seus melhores dias) e chega mesmo a rastejar (nos piores).”

Ora, fazendo as contas, se Judith tem 44 anos e Baumgartner tem mais 16, terá 60 anos. e, pelos vistos, aos 60 anos, já não pode com uma gata pelo rabo.

O problema é que, na página seguinte, Auster diz o seguinte:

“E quando pensar (a Judith) em como a vida se lhe apresentará daqui a dez ou vinte anos, a perspectiva de dormir ao lado de um homem de oitenta ou noventa anos pode levá-la a fugir a sete pés”.

Se Baumgartner, na página anterior, tinha 60 anos, como é que aqui aparece com 80 ou 90?

Parece-me que Auster é que já não pode com uma gata pelo rabo…

Aconselho apenas aos fãs.

Outros livros de Paul Auster: 4 3 2 1; Relatório do Interior; Diário de Inverno; Palácio da Lua; Sunset Park; Invisível; Homem na Escuridão; Mr. Vertigo; Viagens no Scriptorium; As Loucuras de Brooklyn; O Livro das Ilusões; Experiências com a Verdade; Timbuktu

“Zuckerman Libertado”, de Philip Roth (1981)

Roth escreveu quatro livros em que Nathan Zuckerman (seu alter ego) é protagonista: O Escritor Fantasma (1979), publicado por cá em 2017, este Zuckerman Libertado, A Lição de Anatomia (1983), publicado cá em 2015 e A Orgia de Praga (1985), que penso nunca ter sido publicado em Portugal.

Sendo uma parte importante da obra de Philip Roth, não percebo por que razão os quatro livros da série Zuckerman não foram editados em Portugal pela ordem cronológica, o que faria todo o sentido.

Tudo começou com o excelente O Complexo de Portnoy, que Roth publicou em 1969 (editado por cá em 2010), um livro que expunha as idiossincrasias dos judeus, sobretudo no que respeita ao sexo, mas não só. Sendo Roth judeu, o livro foi muito mal recebido pelos seus congéneres, embora tenha tido êxito assinalável noutras latitudes.

Roth decidiu então criar um alter ego, Nathan Zuckerman, autor de um livro chamado Carnovsky, onde as idiossincrasias dos judeus são dissecadas. Zuckerman vai sofrer as consequências do que escreveu e é disso que estes quatro livros tratam.

Este Zuckerman Libertado é o segundo dessa série e conta-nos as paranóias que assaltam o escritor, que pensa que está a ser perseguido e que querem vingar-se do livro que escreveu, raptando a sua mãe.

Roth é divertido e, como diz uma citação que consta da contracapa “desde Henry Miller ninguém como ele aprendeu a ser tão divertido, compassivo, brutal e lamentoso no espaço de um parágrafo”.

Um exemplo (página 165):

“- Newark! (…) Que sabes tu de Newark, menino da mamã? Eu li a porra do livro. Para ti é chop suey aos domingos no chinês do centro da cidade! Para ti é fazer de índio leni-lenape na récita do liceu. Para ti é o tio Max em camisola interior, a regar os rábanos à noite! E o Nick Etten na primeira base pelos Bears! Nick Etten! Atrasado mental! Atrasado mental! Newark é um negro com uma navalha! Newark é uma puta com sífilis! Newark é drogados a cagar no portal da tua casa e a pegar fogo a tudo! Newark é vigilantes hispânicos à caça de escarumbas armados de chaves de rodas! Newark é a bancarrota! Newark é cinzas! Newark é entulho e sujidade! Se fores dono de um carro em Newark ficarás a saber tudo sobre Newark! Então poderás escrever dez livros sobre Newark! Cortam-te a garganta por uns pneus radiais! Cortam-te os tomates por um relógio Bulova! E a pichota para se divertirem, se fores branco!”

Foi o 22º livro de Philip Roth que li e espero mesmo que editem o quarto livro desta série.

Outros livros de Roth: O Professor do Desejo; Operação Shylock; Quando Ela Era Boa; Os Factos; Engano; Goodbye Columbus; Nemésis; A Humilhação; Indignação; O Fantasma Sai de Cena; O Animal Moribundo; Património; Todo-o-Mundo; Pastoral Americana; A Conspiração Contra a América; Casei Com Um Comunista

“Sobre o Céu”, de Richard Powers (2018)

Em 2009 li um outro livro deste autor norte-americano (Illinois, 1957), chamado “O Eco da Memória”. Nesse livro, Powers falava de Grous, neste outro, fala de árvores. De muitas árvores!

“The Overstory” é o título original. Difícil de traduzir. Poderíamos dizer que overstory se refere à copa das árvores quando, numa floresta, por exemplo, formam uma espécie de capa.

Nuno Quintas traduziu este livro e merecia que o seu nome figurasse na capa, tal a dificuldade que deve ter encontrado no seu trabalho. Ele próprio, numa nota, no final do livro, refere essa dificuldade, uma vez que uma boa parte do livro fala das inúmeras espécies de árvores dos Estados Unidos que, muitas vezes, não se encontram no continente europeu, muito menos em Portugal. Pelo contrário, o velho castanheiro que, abnegadamente, nos oferece as deliciosas castanhas nesta época do ano, parece que está extinto nos Estados Unidos, devido a alguma espécie de praga, pelo menos, a julgar pelo livro de Powers.

Vencedor do Pulitzer, achei este romance demasiado confuso. Por um lado, junta diversos protagonistas, diria mesmo protagonistas a mais, mas, no entanto, os verdadeiros protagonistas são as árvores. O livro está dividido em 4 partes: raízes, tronco, copa e sementes.

Nas raízes, ficamos a conhecer as histórias das diversas personagens e é a parte mais interessante do livre, na minha opinião. Depois, a coisa complica-se. Alguns destes personagens unem-se para se tornarem activistas contra o abate de árvores, a coisa complica-se, eles radicalizam-se e, às tantas, confesso que me perdi no enredo!

Mas o texto é confuso, com referência constante às diversas árvores (coitado do tradutor, o que ele deve ter sofrido!)

Eis um exemplo:

“Passado um tempo, consolidam-se: simples, e depois ganham grão. Como na primavera o ácer fica todo corado de cima a baixo. O aplauso educado dos choupos. O teixo a esticar-se, qual progenitor a pegar na mão da prole. O odor das nozes da nogueira-americana quando picadas. Os diques abrem-se e inundam-no de recordações, como os milhões de fechos de luz que atravessam as palmas de um castanheiro-da-índia. O ângulo entre as acácias. A turbulência num pedaço de madeira de oliveira. Os cachos da folhagem da mimosa, feitos caudas de aves tropicais. A escrita secreta, palavras turvas e crípticas, no avesso da casca da bétula. Caminhar debaixo de choupos-negros em que a calam pesa tanto que até inspirar era uma transgressão. Roçar um cipreste e pensar: «deve ser este o cheiro da vida do além»”

Difícil acabar de ler este calhamaço de mais de 400 páginas e ficar a pensar que está um pouco sobrevalorizado.

“Olho de Gato”, de Margaret Atwood (1988)

Gostei muito deste livro que já tem algumas décadas de edição no Canadá, mas que saiu agora, na Bertrand, com tradução de Rita Canas Mendes.

Atwood é uma escritora prolífica e dela já li muitas coisas, incluindo o Booker Prize de 2000, O Assassino Cego, e outros, como A História de uma Serva, Grace, O Coração é o Último a Morrer”, Ressurgir, Os Testamentos, Coração de Pedra.

Neste Cat’s Eye, Margaret Atwood conta-nos a história da pintora Elaine Risley, desde os tempos em que ela, os seus pais e o seu irmão, deambulavam pelas florestas canadianas, pouco depois do fim da Grande Guerra. O pai estudava insectos e a família ia atrás. Mais tarde, radicaram-se numa Toronto ainda por construir e por desenvolver. Elaine encontrou amigas, sobretudo uma, chamada Cordelia, que haveria de ensombrar o seu futuro. Vamos acompanhando a vida de Elaine, com muitas visitas ao passado, as suas paixões, a sua atitude cínica perante a vida.

Apesar da diferença entre a vida no Canadá no post-guerra e a vida num país como Portugal nessa época, encontramos alguns pontos de contacto.

Como este pedaço da infância de Elaine:

“Dois dias depois, a Carol conta-nos que o pai lhe deu uma valente sova de cinto, com o lado da fivela, diretamente no rabo. Diz que mal consegue sentar-se. Parece orgulhosa disto. Depois das aulas, no seu quarto, mostra-nos: levanta a saia, baixa as cuecas, e lá estão as marcas, parecidas com arranhões, não muito vermelhas, mas efectivamente lá.”

Elaine torna-se uma pintora, digamos, feminista, mas sem acreditar muito nisso. Depois de um primeiro casamento falhado, conhece Ben, um homem tradicional. Acaba por gostar disso:

“Anos antes, tê-lo-ia considerado demasiado óbvio, demasiado tolo, praticamente um simplório. E, durante anos depois disso, um chauvinista da espécie mais amistosa. Ele é todas essas coisas; mas também é como uma maçã, depois de um banquete desenfreado.

Vem a minha casa e repara o alpendre traseiro com os seus próprios serrote e martelo, como nas revistas femininas de antigamente, e depois bebe uma cerveja, no relvado, como nos anúncios.  Conta-me anedotas que eu não ouvia desde os tempos do liceu. A minha gratidão por estes prazeres triviais surpreende-me. Mas não preciso dele, ele não é nenhuma transfusão. Ele agrada-me, só. É uma felicidade sentir-me agradada com algo tão simples”.

“Olho de Gato” é um dos melhores livros que li nos últimos tempos.

“Correcções”, de Jonathan Franzen (2001)

Jonathan Franzen (Nova Iorque, 1959) é considerado, pela Time, o “grande romancista americano”. Especialista em escrever grandes calhamaços, já tinha lido dele “Liberdade” (2010, 682 páginas), “Purity” (2015, 694 páginas) e “Encruzilhadas” (2021, 677 páginas). Faltava-se este “Correcções” (2001, 512 páginas), vencedor do National Book Award.

Conta-nos a história da família Lambert, no final dos anos 90, nos EUA. Alfred é o pai, antigo engenheiro dos caminhos de ferro, abraços com a doença de Parkinson e a demência, Enid, a sua mulher, obcecada por um último Natal em família; e ainda os três filhos: Gary, um banqueiro snob com um casamento complicado, Chip, um desempregado crónico que se envolve em negócios escuros na Lituânia e Denise, uma cozinheira que se envolve com o patrão e, sobretudo, com a mulher dele.

Como os restantes calhamaços, também este é um romance essencialmente americano. As suas personagens não poderiam ser, por exemplo, francesas, ou italianas, muito menos portuguesas. São americanos típicos.

Franzen escreve que se desunha, fabricando enormes parágrafos, como este, sobre o casamento de Gary e a sua incapacidade em se envolver com outras pessoas:

“Gary lembrou-se de que outro motivo por que permanecera fiel a Caroline ao longo de vinte anos de casamento fora a sua constante e crescente aversão ao contacto físico com outros seres humanos. Estava, com certeza, apaixonado pela fidelidade, com certeza de perfilhar esse princípio lhe causava um frémito erótico, mas algures entre o seu cérebro e os seus testículos também havia, porventura, um fio a soltar-se, pois o seu principal pensamento, enquanto despia e violava mentalmente aquela rapariguinha de cabelos vermelhos, era como acharia abafado e infecto o lugar da sua infidelidade – um armário com uma provisão bacterial coliforme, um hotel Courtyard da cadeia Marriott com sémen seco nas paredes e nas colchas, o estafado e febril banco de trás do adorável Volkswagen ou do Plymouth que ela sem dúvida conduzia, a alcatifa infestada de esporos do seu exíguo apartamento em Montgomeryville ou Conshohocken, todos eles lugares sobreaquecidos, subventilados e sugestivos de condilomas genitais e clamidíase à sua própria e desagradável maneira – e como seria difícil respirar, como a carne dela seria sufocante, como seriam sórdidos e de antemão condenados os esforços dele para não condescender…”

Ufa! Gostei.