“Conta-me tudo”, de Elizabeth Strout (2024)

Elizabeth Strout (Portland, EUA, 1956), criou um universo que lhe permite escrever livro atrás de livro.

Depois de ter ganho o Pulitzer com a obra Olive Kitteridge, criou outra personagem, a escritora Lucy Barton e, neste último livro, faz com estas duas personagens se encontrem.

Olive, uma ex-professora agora com 90 anos, escuta as histórias que Lucy lhe conta, mas, ao mesmo tempo, vamos conhecendo muitas outras histórias relacionadas com os amigos e os vizinhos.

Resumindo: é a vidinha em Crosby, pequena terra situada no Maine, onde life goes on.

O segredo destes livros é simples: falar do dia a dia de pessoas simples, com as suas angústias, as suas desgraças e as suas coisas boas.

No entanto, penso que depois de todos estes livros, Elizabeth Strout esgotou a mina.

“Kairos”, de Jenny Erpenbeck (2021)

Kairos era o deus grego do tempo oportuno e foi com um livro com este título que Jenny Erpenbeck, nascida em Berlim Oriental em 1967, ganhou o Booker Prize Internacional de 2024.

A acção do livro começa em julho de 1986, quando Hans, um intelectual com mais de 50 anos, casado e com um filho, se encontra, num dia de chuva, com Katherina, uma estudante de 19 anos. Nasce então uma paixão que, com os anos, se transforma numa relação sado-masoquista. Depois de uma grande fascínio mútuo – ele, pela juventude dela, e ela, pela maturidade e experiência dele –  a coisa descamba para uma relação de poder, que ele exerce sobre ela, depois de Katherina ter tido uma experiência com outro jovem.

No fundo, a relação entre Hans e Katherina é uma metáfora para o declínio de uma nação, a RDA, e o despontar de uma Alemanha unida.

A certa altura, Katherina consegue autorização para visitar a avó, que vive em Berlim Ocidental e fica espantada com o que vê no metropolitano:

Uma imagem com texto, Tipo de letra, preto e branco

Os conteúdos gerados por IA poderão estar incorretos.“Junto às escadas que descem para o metropolitano, está sentado no chão um velho de barba por fazer, a dois metros de distância, uma rapariga, não muito mais velha que Katherina, mas que magra está, tem ar de doente, ao pé dela estão sentados dois homens jovens mal vestidos. Estão todos sentados no chão nu. O velho pôs à sua frente um letreiro onde escreveu em letras tortas: TENHO FOME. Um dos jovens dormita, o outro espera juntamente com a rapariga diante de um prato com alguns trocos. Claro que Katherina sabe que, no Ocidente, há mendigos, mas é uma coisa diferente ver isso com os próprios olhos”.

Na RDA não havia mendigos, pelos vestidos, mas havia outras necessidades e, quando Katherina vai a Colónia, visitar a avó, não perde a oportunidade para comprar vestidos que não existem no seu país.

A certa altura, Hans e Katherina vão visitar Moscovo e espantam-se com a monumentalidade do metropolitano da cidade:

“Já andaram agora quatro vezes de metro, e cada estação tem um aspecto diferente (…)

Ao entrar e sair há empurrões e cotoveladas, mas lá dentro, nas carruagens, no maior dos apertos, há sempre uma série de pessoas de livro na mão numa perfeita calma. Gente simples, operários, empregados, a ler. E livros bons, não uma porcaria qualquer, diz Hans. Em nenhum outro país, diz ele, qualquer vendedor e qualquer operário das obras é capaz de dizer poemas de cor”.

O elogio do intelectual, ignorando tudo o resto, nomeadamente, a falta de liberdade que, segundo ele, só conduzirá ao capitalismo.

As páginas mais interessantes do livro, na minha opinião, acontecem depois da queda do muro de Berlim. Nessa altura, a relação entre Hans e Katherina já se degradou – aliás, nunca é feita crítica nenhuma, ao facto de Hans ser casado e ignorar a sua mulher, Ingrid e o seu filho adolescente. São coisas que acontecem…

“Quando, em contrapartida, Katharina percorre a parte ocidental, sente-se como uma cópia de má qualidade das pessoas que têm ali o seu quotidiano, sente-se como uma embusteira, em risco permanente de ser desmascarada. Com os seus olhos, que, na outra metade da cidade, são os olhos de uma estranha, vê que, nas lojas do Ocidente, há muito tempo todas as necessidades imagináveis foram respondidas por um produto, a liberdade de consumo parece-lhe uma parede de borracha que separa as pessoas dos anseios que estão além das suas necessidades pessoais.”

Em conclusão: trata-se de um livro curioso, mas não é um dos meus preferidos.

“O Lago da Criação”, de Rachel Kushner (2024)

Rachel Kushner (Oregon, EUA, 1968) é já uma romancista norte-americana consagrada.

Dela já li Telex de Cuba (2008), Os Lança-Chamas (2013) e O Quarto de Marte (2018).

Sáo todos romances actuais, com implicações políticas e este O Lago da Criação não foge à regra.

Foi finalista do International Booker Prize e trata-se de um romance de espionagem à moda antiga, com a característica específca de ser narrado por uma mulher.

Sadie Smith é uma espia contratada para se infiltrar num grupo de activistas franceses, prontos a pôr em causa o status quo.

Sadie é implacável, e tem um humor muito especial, não se importando que o seu disfarce a obrigue a algumas cenas menos, digamos, formais. Faz-se passar por namorada de um grande amigo do líder do grupo activista, com tudo o que isso a obrigada a fazer, nomeadamente sob o ponto de vista sexual:

“Baixou-me os calções e pouco depois senti-lhe o hálito quente entre as minhas pernas. Sabia o que esperar. A língua na minha vulva era um prelúdio, um serviço que era sobretudo um pedido. (…)

Não sentia a menor atracção por Lucien, mas nessa tarde, naquele quarto de hotel, fechei os olhos, concentrei-me e, fingindo que me masturbava com um aparelho, ainda que o aparelho fosse o corpo de outra pessoa, consegui vir-me, precipitando assim o orgasmo dele, como cavalheiro que era.”

Sadie é americana e aceita trabalhos na Europa, nunca revelando quem a contrata. Desta vez está em França.

“…ou trufas secas, mostardas e frascos de carne gelatinosa semelhante a comida de gato, que os franceses apelidam de «terrine» e comem como se não fosse comida de gato”.

A crítica aos franceses está presente ao longo do livro:

“«Mas vai e diverte-te», dissera a Vito. «Os meus familiares teriam feito tudo para pertencer a um clube como esse. Em vez disso, esfregavam chãos e eram confundidos com portugueses.»”

A história é muito boa e poderá dar uma excelente mini-série de televisão, se alguém pegar nela.

Os activistas que Sadie infiltra, querem impedir as autoridades francesas de constituírem as chamadas mega-bacias hidrográficas que vão alimentar a agricultura intensiva. Têm, como mentores, alguns dos antigos activistas do Maio de 68 e toda a narrativa está cheia de ironia, como se este fosse um romance policial negro.

“Acho que confundiu água com identidade. Como aquelas pessoas que vão para o ioga e se convencem de que lhes bastará respirar para resolverem todos os problemas que têm.”

São 400 páginas de puro divertimento.

“A Parede”, de Marlen Haushofer (1963)

Marlen Haushofer (1920-1970), foi uma escritora austríaca que nunca quis a notoriedade, mas que acabou por influenciar outras autoras do seu país. Escreveu três ou quatro romances e um livro de contos e morreu com 50 anos, vítima de cancro ósseo.

Este “A Parede” é o seu romance mais conhecido e parece ter sido redescoberto recentemente; como diz a badana do livro, trata-se de um “clássico ecofeminista”.

A narradora vai passar um fim de semana a um pavilhão de caça pertencente a um casal amigo, em plenos Alpes. O casal decide ir a um aldeia próxima e a narradora fica sozinha. Adormece e quando acorda, o casal não regressou. Explorando as imediações do pavilhão de caça, descobre uma parede que a isola do resto do mundo. Para lá da parede, todos os seres vivos parecem ter perecido. Terá acontecido uma qualquer catástrofe, mas a narradora não se detém muito sobre quem terá construído a parede, como ela foik parar àquela zona, nem sobre que tipo de catátrofe terá acontecido. E assim, ali está ela, aparentemente sozinha no mundo, apenas com a companhia de um cão.

Tudo isto é revelado logo nas primeiras páginas, portanto, é obra como a autora nos consegue manter interessados ao longo de quase 300 páginas, limitando-se a contar o seu dia-a-dia. Confesso que achei o livro um pouco monótono, mas, ao mesmo tempo, interessou-se esta espécie de Robinson Crusoe moderno.

A tradução é de Gilda Lopes Encarnação, numa edição Antígona.

“Atos Humanos”, de Han Kang (2014)

Han Kang (Gwangju, Coreia do Sul, 1970) foi o Prémio Novel da Literatura de 2024.

Dela, já tinha lido, A Vegetariana.

Este Atos Humanos é um pequeno livro todo ele dedicado ao período em que a Coreia do Sul viveu sob a ditadura de Park Chung-hee e dos seus seguidores. A cidade de Gwangju, onde a autora nasceu, foi uma cidade mártire, com milhares dos seus habitantes a serem barbaramente assassinados pelos militares, a mando do ditador, apenas porque se tinham rebelado contra as ordens de Seul.

As atrocidades cometidas devem ter sido horríveis e Han Kang que, na altura, teria apenas nove anos, decidiu escrever sobre isso, com o lirismo que lhe é característico.

“Retrato Huaco”, de Gabriela Wiener (2021)

Gabriela Wiener (Lima,1975) é uma jornalista, colunista e escritora peruana emigrada em Espanha.

Retrato huaco é o nome que se dá a peças de cerâmica que representam rostos indígenas e que, segundo se dizia, capturavam as suas almas.

Gabriela Wiener, mestiça, é tetraneta de Charles Wiener, explorador austríaco-francês que visitou o Peru no século 19 e de lá levou, para Paris, muitas peças de cerâmica e não só, abrindo um museu perto da Torre Eiffel.

Gabriela escreve este pequeno livro de autoficção arrojado, confessando-se adepta do poliamor, vivendo com um marido e uma namorada. Fala-nos do trisavô, colonialista, do pai, revolucionário e adúltero, da mãe e da amante do pai, bem como das suas próprias aventuras sexuais, fora do seu núcleo familiar.

É, por isso, um livro arrojado e estranho, difícil de catalogar.

Duas citações:

Página 45:

“Os meus avós paternos eram tão brancos, que eu não me sentia confortável com eles. Quando o meu avô branco morreu, a minha avó branca começou a tocar-nos um pouco mais e a peidar-se quando ia de uma divisão para a outra, saiu do armário como uma católica simpática e ensinou-me a tricotar. A minha avó chola balançava-me nas pernas e ensinava-me a rezar, enquanto falava com o meu pai como se estivesse a falar com o dono da fazenda, até que adoeceu e começou a mandar todos à merda.”

Página 110:

“Não queremos deixar de foder com brancos, o que queremos é começar a foder entre nós. Branqueámos o sexo, branqueámos o amor, racionalizámo-lo. O poliamor, por exemplo, é uma prática branca que não tem em conta como funciona a circulação do desejo e os seus limites para pessoas como nós, as feias do baile. Desconfiem dos olhos azuis e da lógica do progresso aplicada ao corpo! Deixámos de desejar e de amar corpos como os nossos, afastámo-nos das nossas próprias formas de vida amorosa e sexual, do que nos sai da cona”.

Está dito!

“A Picada da Abelha”, de Paul Murray (2023)

Calhamaço de 716 páginas, finalista do Booker de 2023, é um romance à “moda antiga”, um daqueles que poderá dar um bom filme, uma história com várias personagens, cada uma com as suas peripécias.

O livro conta a história, aparentemente banal, de uma família irlandesa, que vive numa parvónia, a duas horas de Dublin.

Maurice tem um stand e oficina de automóveis, cujos lucros lhe permitem, depois da morte da mulher, viver dos rendimentos, no Algarve. Tem dois filhos: Frank, uma estrela do futebol gaélico e Dickie, pouco dado ao desporto, mas com futuro como gestor do stand. Frank morre tragicamente e Dickie acaba por casar com a noiva de Frank, Imelda e desse casamento nascem Cassandra e JD.

Esta é a base da história. Depois, Murray desenvolve-a, dedicando uma parte do livro a cada personagem. À medida que a história se desenvolve, a trama vai-se adensando e o final é digno de um thriller.

Além disso, o autor condimenta a história com todos os ingredientes actuais: alterações climáticas, emigrantes brasileiras, abrigos anti-nucleares, dúvidas sobre a identidade de género, atenção aos pronomes correctos, crises económicas, etc.

Claro que aconselho…

“Cem Anos de Solidão”, a série

Lemos a obra de Gabriel Garcia Marquez em 1978, num daqueles pequenos Livros de Bolso das Publicações Europa-América e aquele escritor colombiano passou a ser um dos nossos preferidos. Temos todos os seus livros publicados em Portugal. O chamado realismo mágico ou fantástico da escrita de GGM era algo de novo para nós e, ao longo dos anos, “Cem Anos de Solidão” ficou sendo um dos nossos livros preferidos, embora nunca mais o tenhamos lido.

Vimos agora os oito episódios da primeira temporada da adaptação televisiva do romance e não ficámos nada desiludidos.

A Netflix, em vez de entregar a adaptação à indústria norte-americana, preferiu a Colômbia e fez muito bem.

Na minha opinião, foi tudo bem feito: a adaptação, os diálogos, a narração, a fotografia, o ritmo, a duração de cada episódio, o modo como a história vai sendo contada – tudo perfeito!

Citar os nomes da equipa técnica e dos actores não teria muita importância, porque são pessoas desconhecidas para nós. Mas aqui ficam alguns nomes. A adaptação pertence a José Rivera e Natalia Santa, entre outros; a direcção, a Alex Garcia López e Laura Mora; o narrador é Jesús Reyes; a personagem de José Arcadio Buendía quando jovem, é interpretada por Marco Antonio Gonzalez Ospina, e, quando mais velho, por Diego Vasquez; Ursula Iguarán é interpretada por Susana Morales Cañas e, depois, por Marleyda Soto; Claudio Cataño interpretada o coronel Aureliano Buendía.

Parece que Garcia Marques nunca permitiu que o livro fosse adaptado ao cinema, muito menos, à televisão. No entanto, depois da sua morte em 2014, os herdeiros acabaram por concordar com a adaptação a série de televisão, desde que os actores fossem todos colombianos e/ou espanhóis.

Toda a série foi filmada na Colômbia e merece ser vista de uma ponta à outra.

Aguardamos ansiosamente os restantes oito episódios.

“A Orgia de Praga” (1985), de Philip Roth

Este é o último livro de Roth dedicado ao seu heterónimo Nathan Zuckerman.

Após a publicação do Complexo de Portnoy, Roth foi atacado de tal modo, sobretudo pela comunidade judaica, que decidiu inventar Zuckerman, um escritor proscrito por ser judeu e criticar os hábitos judaicos.

Foram quatro livros: O Escritor Fantasma (1979), editado em Portugal em 2017, Zuckerman Libertado (1981), editado cá em 2023, A Lição de Anatomia (1983), por cá em 2015 e A Orgia de Praga (1985), aqui apenas este ano.        

Estes quatro livros de Roth não são, certamente, dos mais interessantes do grande escritor norte-americano, já que são uma espécie de vingança perante a comunidade judaica norte-americana.

Este último volume, A Orgia de Praga, talvez seja o menos interessante. No entanto, tem algumas diatribes que vale a pena assinalar:

“A Olga também é escritora. É muito conhecida na Checoslováquia pelos seus livros, pelo seu alcoolismo, e por mostrar a cona a toda a gente”.

Ou esta, ainda melhor:

“- Mas nós vivemos numa sociedade sem classes – diz ela – No socialismo. De que me serve o socialismo se ninguém me fode quando eu quero? Todas as grandes figuras nacionais vêm a Praga ver a opressão em que vivemos, mas não hã um único que me foda. O Sartre esteve cá e não quis foder-me. A Simone Beauvoir veio com ele e não quis foder-me. O Heinrich Boll, o Carlos Fuentes, o Graham Greene – e nenhum quer forder-me.”

O resto tem menos interesse…

“Bambino A Roma”, de Chico Buarque (2024)

É sempre um prazer ler um livro do Chico Buarque. Nascido em 1944, Chico Buarque viveu em Roma entre 1953-54, porque o seu pai foi dar aulas numa Universidade, sobre e3studos brasileiros.

Essa estadia em Roma, apanhou Chico nos seus 9-10 anos e, neste pequeno livro, ele aproveita meia dúzia de memórias para criar um livro curioso e, sobretudo, divertido.

Chico Buarque recorda a sua relação com os irmãos e, sobretudo, com alguns colegas do colégio que frequentou naqueles dois anos. A diferença das línguas, entre os estudantes dessa escola internacional, era um dos motivos para galhofa. Buarque conta que tinha um colega japonês e que…

“Na sala de aula o Kasuki se sentava na carteira à minha frente e costumava trocar mensagens comigo. No verso das suas folhas de caderno com ideogramas caprichados, a nanquim, eu escrevia boceta, caralho, cu da mãe, coisas que de algum modo ele compreendia, pois se virava e piscava o olho com um ar malandro que eu não conhecia em japoneses.”

Muito divertido.

E, a pouco e pouco, a obra de Chico Buarque, Prémio Camões de 2019, vai-se consolidando.

Outros livros de Chico Buarque: “Anos de Chumbo e Outros Contos” (2021); “O Irmão Alemão” (2014); “Essa Gente(2019); “Leite Derramado” (2009)