As sementes de Scott Ring

Scott Ring trouxe duas sementes.

Foi avisado pelos seus superiores da Nasa que não podia levar nada da Estação Espacial, mas Scott não resistiu.

Scott Ring foi o recordista da Estação, tendo lá ficado um total de 378 dias seguidos. Outros astronautas foram e vieram, e Scott aguentou lá em cima, em órbita, mais de um ano. Sem interrupções.

Quando regressou í  Terra, fechou-se em casa e por lá ficou.

Aliás, os chefes da Nasa também não queriam que ele andasse por aí, correndo o risco de dar entrevistas. Foi avaliado por uma equipa de psicólogos e verificou-se que estava afectado. Seria melhor que ficasse sossegado, em casa, sem falar com ninguém, nomeadamente com a comunicação social. Diria coisas inconvenientes, certamente.

Mas o próprio Scott Ring não sentia necessidade de falar com ninguém; preferia ficar fechado em casa.

E, ao contrário do que lhe foi dito com firmeza, trouxe da Estação Espacial, duas sementes de beringela.

Duas sementes que tinham sido sujeitas a diversas experiências, nomeadamente a um banho de raios cósmicos.

Scott saiu da Estação com um punhado dessas sementes e expí´-las í  radiação durante o seu passeio espacial.

Depois, as sementes foram enterradas numa mistura orgânica de composição secreta e, depois, transladadas para os laboratórios da Nasa. Excepto as duas sementes que Scott sonegou.

Quando chegou a sua casa, no Wisconsin, Scott enterrou as sementes em dois vasos. Colocou o primeiro vaso junto í  janela da cozinha, que apanhava muito sol logo pela manhã e o segundo vaso foi para o quintal da sua casa, num local sombrio

Nos dias seguintes, foi vigiando os dois vasos, sem qualquer resultado.

As sementes que trouxera do espaço pareciam não gostar dos ares do Wisconsin.

No entanto, cerca de vinte dias depois, o vaso da cozinha começou a exibir umas folhinhas verdes. O outro, nada.

Scott entusiasmou-se, mas por pouco tempo.

As folhinhas verdes depressa mirraram e desapareceram.

O ex-astronauta deprimiu-se. Por um lado, sentia-se triste devido ao abandono dos seus colegas da Nasa, que tinham deixado de lhe falar, por outro, estava esperançado que, com aquelas sementes, pudesse, novamente, voltar í  ribalta.

Na semana seguinte, a meio da noite, ouviu um ruído estranho, vindo do quintal. Foi ver. Do vaso que lá colocara, erguia-se agora uma planta vigorosa, carregada de beringelas gigantes.

No dia seguinte, logo pela manhã, Scott colheu uma das beringelas, abriu-a ao meio. Recheou-a com queijo feta e assou-a. Estava deliciosa.

Ao jantar, fez uma salada com outra das beringelas espaciais. Lambeu os beiços e adormeceu de barriga cheia.

Acordou por volta das 4 da manhã, com o quarto todo iluminado.

Esquecera-se de desligar a luz?

Não! A luz provinha dele próprio. Scott iluminava todo o quarto com uma luz fosforescente, esverdeada.

A intensidade do brilho de Scott foi aumentando í  medida que ele ia comendo as beringelas espaciais. í€ noite, já não precisava de acender as luzes: ele próprio iluminava toda a casa.

Deixou de sair de casa. O brilho esverdeado que dele imanava assustaria as pessoas, certamente. Scott era, agora, um ex-astronauta radioactivo.

Na planta do quintal restava apenas uma beringela e Scott comeu-a grelhada no jantar daquela noite fatídica.

Nessa noite, quase duas semanas depois de ter deixado de acender as luzes, Scott decidiu experimentar acender a luz da sala. Queria ver se havia alguma reactividade entre a luz eléctrica e a sua luz própria.

A explosão foi ouvida no Dakota do Sul.

“Raízes Brancas”, de Bernardine Evaristo (2008)

Gostei muito de Rapariga, Mulher, Outra, o livro com que esta escritora anglo-nigeriana venceu o Man Booker de 2019.

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Fiquei com curiosidade em conhecer outras obras de Evaristo e a Elsinore editou agora um romance de 2008 e que foi uma desilusão.

A ideia é muito boa: Bernardine Evaristo cria um mundo em que os escravos são os brancos e os senhores são os negros, mas penso que não conseguiu dar a volta í  excelente ideia que teve.

Neste livro, os negros, que são os senhores, castigam os escravos brancos, mandam-nos borda fora quando eles estão moribundos, vendem-nos em hasta pública, mas continuam a usar tangas e não me convencem como senhores do Mundo.

Evaristo acaba por construir uma história centrada numa escrava branca que, depois de algumas tentativas, consegue fugir.

Não me convenceu.

Naufrágio

Luís nada só com uma mão.

Na outra, segura o manuscrito e tenta mantê-lo acima da água.

O naufrágio apanhou todos desprevenidos e Luís só teve tempo de agarrar nas centenas de folhas já escritas, embrulhá-las num pedaço de tecido e atirar-se í  água, sempre com o braço esquerdo levantado, segurando o trabalho dos últimos meses.

Felizmente, a costa não estava longe e Luís era um bom nadador; além disso, o mar não estava muito encrespado e o naufrágio não fora provocado por mar alteroso, mas por má manobra do leme.

A poucos metros da costa, no entanto, Luís quase desfalece. A longa travessia tinha-o enfraquecido, pouco comera e a falta de legumes e frutos frescos, provocava-lhe cãibras.

Mais um esforço! ““ pensava Luís.

Mas as forças estavam no limite e, por um momento, Luís desfalece.

Uma onda cobre-o e leva-lhe o manuscrito.

Luís desperta e tenta alcançá-lo, em vão.

Por momentos, pensa que não vale a pena continuar a viver. Perdeu a obra da sua vida.

No entanto, o espírito de sobrevivência é mais forte e, num último esforço, Luís atinge a praia.

Esgotado, sentado na areia, olha para o mar durante longos minutos.

No fundo daquele mar jaz o seu maior e melhor trabalho.

É por isso que hoje, Camões é apenas conhecido pela sua Lírica.

“O Homem do Casaco Vermelho”, de Julian Barnes

O homem do casaco vermelho é o Dr. Samuel Pozi, o fundador da disciplina de ginecologia em França, homem sedutor e bem relacionado, viajado e culto, que teve uma vida cheia e que viveu entre 1846 e 1918.

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Julian Barnes tomou conhecimento de Pozi através da pintura de John Singer Sargent, representando o médico envergando uma longa capa escarlate, com o rosto a três quartos, com uma mão no peito e outra na cintura. E foi estudar a figura de Samuel Pozi. E assim nasceu este curioso livro que nos conta múltiplos episódios da chamada Belle Époque.

Ao longo do livro desfilam muitas personagens, para além de Pozi: Oscar Wilde, Guy de Maupassant, o conde de Montesquiou, Sarah Bernhard, Clemenceau, George Sand, Edmond de Goncourt, Colette, entre muitas outras.

Pozi foi um médico inovador e procurou aprender com outros, quer em Inglaterra, quer nos Estados Unidos.

A propósito dos feridos da guerra Franco-Prussiano de 1870-1871,

“…Pozi viu como havia mais probabilidades de os soldados feridos morrerem devido a infecções e septicemia do que devido í  ferida inicial: os cirurgiões operavam em condições imundas e de contaminação múltipla, sendo muitas vezes os feridos transportados da frente de batalha sobre palha cheia de merda em veículos que antes tinham sido ocupados por cavalos. Mesmo na cirurgia em tempos de paz, a higiene básica era frequentemente negligenciada. O cirurgião americano Charles Meigs (1792-1869) ficou famoso por se ter sentido ultrajado quando alguém lhe sugeriu que ele e os colegas deviam lavar as mãos antes de operar. «Os médicos são cavalheiros e as mãos dos cavalheiros estão limpas», declarou.”

O livro de Julian Barnes está repleto destes pequenos episódios de índole médica, mas também muitos outros, que nos revelam como a alta sociedade, os intelectuais e os bem-nascidos viviam na Belle Époque, como este:

“…Em 1867, Mallarmé, então com vinte e cinco anos, numa carta escrita em Besançon, queixa-se da cidade a um amigo. Descreve um vizinho que aponta para uma janela do outro lado da rua e diz: «Deus me valha! A Mme. Remaniet comeu espargos ontem!» «Como é que sabe?» «Pelo bacio que ela pí´s no peitoril».

Para além de um grande cirurgião, Pozi era um homem bem vivido; terá tido muitas amantes, incluindo Sarah Bernhard e algumas das suas doentes (dizia-se que as consultas eram os preliminares) e uma importante colecção de arte.

Percebe-se que gostei bastante da companhia deste livro. Trata-se, ainda por cima, de um livro bonito, de capa dura, com diversas ilustrações, algumas a cores, edição muito cuidada da Quetzal, com tradução de Salvato Teles de Menezes.

Outros livros de Julian Barnes: O Ruído do Tempo; O Sentido do Fim; Arthur & George; Amor & Etc;

Vacinas, Messi e Proust – a silly season em pleno!

Estamos em plena época de incêndios… sem incêndios.

Dizem que vem aí a primeira vaga de calor deste verão e, portanto, talvez comecem, finalmente, os incêndios. Os telejornais terão assunto para todas as suas edições. Poderemos voltar a discutir meios aéreos, limpeza das florestas, canadéres e cámoves.

Enquanto isso não acontece, temos que nos satisfazer com as notícias do covid.

A DGS recomendou a vacinação universal das crianças dos 12 aos 15 anos, depois de, dez dias antes, ter recomendado apenas a vacinação das crianças desse grupo etário que sofressem de comorbilidades.

A DGS esqueceu-se que temos, como presidente da República, um dos mais reputados especialistas em vacinação e pandemias, para além de ser, também, especialista em Quase Tudo. Chama-se ele Marcelo Rebelo de Sousa e calha ser Presidente da República.

Os jornalistas rejubilam com estas coisas: espetam um microfone í  frente do Presidente e ele não resiste e opina sobre tudo. Depois, pedem esclarecimentos a pediatras, virologistas, médicos de saúde pública, chefes de sindicatos, membros das Ordens e cada um dá a sua opinião. Muito provavelmente, todos estão correctos, embora sejam contraditórios.

Valerá a pensa vacinar TODAS as crianças dos 12 aos 15? Se estiverem todas vacinadas não acontecerão surtos nas escolas? O ano lectivo vai ser mais tranquilo?

Já se sabe que, mesmo vacinadas, as criancinhas vão apanhar o vírus na mesma, e vão transmiti-lo e vão ter que ficar em isolamento e algumas escolas vão mesmo fechar.

Entretanto, a FENPROF exige que os professores sejam todos testados antes de iniciar o novo ano lectivo. Se tiverem baixos níveis de anticorpos, deverão apanhar a 3ª dose da vacina.

Então e os linfócitos T, e a memória imunitária?

Bom, isso a FENPROF não sabe o que é, nem lhe interessa ““ o que quer é que os professores apanhem a 3ª dose, mesmo aqueles que se recusaram sequer a apanhar a primeira!

Tanta confusão!

Felizmente, temos algumas certezas.

Por exemplo, o Messi vai mesmo jogar no Paris Saint Germain e ganhar 25 milhões de euros por ano. A notícia é dada com esta tranquilidade, ao mesmo tempo que se diz que Ricardo Salgado quer chegar a acordo com a Justiça, pagando cerca de 11 milhões de euros que dizem que desviou do BES.

Aconselharia Salgado a entrar em contacto com o pai de Messi e pedir-lhe emprestado metade do ordenado do filho, para saldar a dívida í  Justiça.

Curioso como a comunicação social passa por cima desta obscenidade, glorificando um jogador de futebol, ao mesmo tempo que não perdoa o facto de meia dúzia de torres de vigilância das florestas não estarem ainda em funcionamento.

Mas estamos em plena silly season e os chamados questionários de Proust só o confirmam.

O Público e o Diário de Notícias aplicam esses questionários a diversas figuras públicas, todas as semanas.

O questionário de Proust trata-se de uma série de perguntas idiotas, a pedir respostas a condizer.

O do Público de hoje, é feito ao líder do governo dos Açores, José Manuel Bolieiro. Ficamos a saber, por exemplo, que o seu herói de ficção é o Super-Homem.

Com um líder destes, só a kryptonite pode destruir os Açores.

Quem fala assim…

Folheio quatro jornais ao fim de semana: Público, Diário de Notícias, Nascer do Sol e Expresso.

í€s vezes, mais.

Indolentemente, vou virando as páginas, em busca de algo que me desperte a atenção.

Como se costuma dizer, leio as gordas.

No pasquim Nascer do Sol, deparo com esta citação de André Coelho, um dos vice-presidentes do PSD:

“…Rui Rio é uma personalidade com características humanas únicas e incomuns”.

Vê-se que André Coelho admira o seu líder ou, pelo menos, quer fazer-nos crer que o admira. O que fará de Rui Rio uma personalidade única e incomum? Possui uma imensa bondade, capaz de despir a camisa para cobrir um pobre? É dono de uma inteligência rara que ofusca todos os demais? Que características humanas incomuns terá Rui Rio? Três rins? Um coração com cinco cavidades?

Como não li a entrevista que ocupava quatro ou cinco páginas, nunca saberei por que razão André Coelho assim classifica Rui Rio.

Mais í  frente, no mesmo jornal, outra entrevista, desta vez com a criminóloga Ana Guerreiro.

Destaco as gordas:

“…As mulheres não são mais que seres humanos”.

Esta deixou-me estarrecido.

E eu que pensava que as mulheres seriam uma espécie de mistura entre a humanidade e os deuses. Afinal, nada disso! Simples seres humanos, como os homens…

Mas a criminóloga diz mais:

“…As mulheres têm necessidades e vontades próprias”.

E o mito está desfeito: não só as mulheres não passam de seres humanos, como, ainda por cima, têm necessidades e vontades próprias.

Claro que, para se chegar a este tipo de conclusões definitivas, deve ter que se estudar criminologia a fundo.

Mas a melhor gorda estava guardada para o fim. Na última página do Público, João Miguel Tavares vomita todo o seu ódio por tudo o que cheire vagamente a esquerda. Três vezes por semana, se não estou em erro.

Nunca consegui acabar de ler um único texto escrito por esta criatura; acho-os banais, sem nenhuma ideia nova, sempre tendenciosos e, ainda por cima, JMT tem a mania que é engraçadinho e se há coisa que abomino são os engraçadinhos.

No topo do artigo deste sábado, a citação de JMT diz:

“…O Governo socialista é como aqueles casais sem imaginação que só conhecem duas ou três posições na cama, e as repetem incessantemente sempre que há alguma energia, ou, neste caso, muito dinheiro”.

Estão a ver?

JMT, a propósito do dinheiro que a União Europeia envia para Portugal, faz uma analogia com o sexo; pretende, portanto, ter graça.

Já o Ary dos Santos dizia, com tristeza, que, em Portugal, o humor tinha centímetros, a distância que vai do rabo ao pipi.

Mas acho curioso que o JMT ache que um casal que faça amor utilizando duas ou três posições, não tem imaginação.

Pelos vistos, JMT, além de jornalista, é muito bom na cama, imaginativo, saltando da posição de missionário para a quase-lótus, e desta para a união suspensa, saltando depois para a meia-prensa, logo seguida da giratória, e sabe-se lá que mais posições ““ coisa que o Governo socialista não é capaz.

E o mais engraçado é que, olhando para a foto de JMT que acompanha todos os seus artigos, não sou capaz de o imaginar a foder…

Marcelo – take it easy, pá!

O nosso presidente não sabe estar quieto.

Pior, não sabe estar calado.

Este fim de semana perdeu a oportunidade de estar quieto e de estar calado.

Por um lado, podia ter ficado calado, não contribuindo para aumentar a confusão criada pela DGS quanto í  vacinação das crianças dos 12 aos 15 anos.

E por outro, em vez de ir ao Brasil, podia ter ficado quietinho, no Palácio de Belém e organizar mais uma daquelas semanas dos livros. Segundo ele, a pandemia já passou a endemia e todos temos que nos habituar a conviver com o vírus. Sendo assim, por que razão não organizou a habitual Festa do Livro, em Belém?

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Controlava as entradas com o certificado digital da vacinação e escusava de ir fazer figura de parvo para o Brasil.

Foi a S. Paulo inaugurar o reconstruído Museu da Língua Portuguesa e Bolsonaro nem se dignou ir recebê-lo.

Recebeu-o, depois, no Palácio do Planalto. Sem máscara, claro.

Para o Bolsonaro, a pandemia não passou de uma gripezinha, portanto, máscara, só para o parolo do português.

Falhas de memória

Lembro-me pouco da minha infância.

Penso que tive uma infância feliz, mas não tenho a certeza. Tudo está um pouco esfumado. Lembro-me vagamente de dizer que gostaria de ser bombeiro quando fosse crescido. Ou polícia. Era o que muitos miúdos diziam nessa altura.

Claro que nunca me tornei bombeiro nem polícia. Ou será que fui uma dessas coisas e já não me lembro bem?

A verdade é que já nem me lembro do que fiz ontem ou sequer do que almocei hoje.

A memória está a esboroar-se e a esvair-se, como grãos de areia entre os dedos.

Lembro-me, no entanto, de ter sido banqueiro ““ também era melhor que não me lembrasse, já que, todos os dias, os meus familiares e o meu advogado mo recordam.

Dizem-me que fui dono de um grande Banco e, pensando bem, espremendo as meninges, consigo lembrar-me disso. Vem-me í  memória a cor verde. Por que será?…

Terei tentado ser o banqueiro do povo?

Parece que, afinal, não tive alternativa senão ajudar familiares e amigos e agora acusam-me de ter metido dinheiro ao bolso. Meto as mãos nos bolsos e estão vazios! Onde terei escondido tanto dinheiro? Na Suíça, como diz a acusação? Nem me lembro de ter lá estado alguma vez!

O meu advogado diz que tenho falhas de memória, que sofro de um défice cognitivo; se calhar é verdade.

Foi por isso que vim para a Sardenha, apanhar sol.

Sardenha, onde será isto?…

“A Morte de Jesus”, de J. M. Coetzee (2020)

Com este título, o escritor sul-africano, prémio Nobel em 2003, termina a trilogia que tem o jovem David como protagonista.

Quando, em 2013, li “…A Infância de Jesus“, fiquei entusiasmado. Coetzee contava-nos uma história singular: um miúdo, David, e um homem, Simon, que não é seu pai, chegam a Novilla, uma cidade onde toda a gente deixa o passado para trás. Nesse primeiro volume da trilogia, Simon vai conhecer Iní¨s e vai decidir que ela passará a ser a mãe de David que, vamos descobrindo a pouco e pouco, é um miúdo especial.

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Por alguma razão Coetzee decide colocar o nome de Jesus nos títulos dos três volumes e, mesmo que não quiséssemos, acabamos por identificar David com Jesus e os restantes personagens da história com outras tantas figuras bíblicas.

O segundo volume, “…Jesus na Escola“, no entanto, decepcionou-me. Li-o em 2018 e achei que o autor se deixou encantar pelo “…mundo novo” que criou e decidiu tornar a história cada vez mais absurda ““ ou então, todas as peripécias narradas são alegorias, como, por exemplo, o facto de David se transformar num bailarino extraordinário, capaz de dançar os números.

Este terceiro volume continua na senda do anterior. David começa por se rebelar contra os pais adoptivos e decide ir viver para um orfanato, onde se quer tornar um grande jogador de futebol. No entanto, adoece subitamente com uma maleita que nunca vamos saber qual é, vai definhando e acaba por morrer. Depois da morte de David, o livro ainda se arrasta mais, com Simon í  procura da mensagem que David deveria ter transmitido, mas ninguém sabe qual é ““ penso que nem o autor.

Coetzee é um dos meus autores contemporâneos preferidos, mas estes dois volumes da trilogia, desiludiram-se.

Nota: a capa da edição portuguesa não deixa de ser irónica para quem é adepto do Benfica…

O í“scar dos discursos

Era conhecido como o í“scar dos discursos.

Desde o tempo da instrução primária que se distinguia pela suas redacções. Escrevia bem, sem erros ortográficos e com frases curtas e elegantes. Todos pensaram que seria escritor. E, de certa maneira, tornou-se escritor, mas não de romances.

Por volta dos 15 anos, í“scar passou-se. As más companhias, dizia a mãe. Farras todas as noites, muito álcool e fuminhos. Com dificuldade, muita dificuldade, terminou o 12º ano quase com 20 anos e entregou-se ao desemprego.

Foi Silvestre, o seu amigo de infância que lhe deu a mão.

Silvestre era candidato a presidente da Câmara e não tinha jeito nenhum para discursos; engasgava-se, repetia-se, corava e acabava por dizer meia dúzia de patacoadas sem sentido. Ora, para ser eleito presidente precisava de convencer os seus eleitores, até porque tinha como principal oponente, Luís Onofre, que era conhecido por ter o dom da palavra.

Silvestre lembrou-se então de í“scar e contratou-o para lhe escrever os discursos.

í“scar agarrou a oportunidade com ambas as mãos. Pí´s de lado o álcool e os fuminhos e começou a escrever os melhores discursos que a cidade alguma vez tinha ouvido.

Silvestre ganhou a eleição com facilidade e levou í“scar para a Câmara.

Entretanto, a fama de í“scar ultrapassou os limites da cidade e em breve recebeu convites para escrever outros discursos: do presidente do Lion”™s Club local, de noivos envergonhados, de dirigentes desportivos, de responsáveis da Misericórdia, bem como elogios fúnebres e outros de circunstância.

í“scar não recusava nada e foi amealhando prestígio e uma conta bancária que lhe permitiu trocar a cerveja pelo whisky japonês. Estacionou no Suntory Hibiki de 17 anos, a 800 euros cada garrafa.

Todos sabemos como o acto de escrever é solitário e í“scar combatia essa solidão com dois dedos de Suntory, aliás, quatro dedos. Puro, sempre sem gelo.

A pouco e pouco, o consumo de Suntory foi subindo e, por vezes, í“scar sentia alguma dificuldade em terminar certos discursos, mas o trabalho não rareava, antes pelo contrário ““ cada vez tinha mais discursos para escrever. Em cima da sua secretária, misturavam-se discursos de casamento e de funeral, com peças oratórias mais sérias, para serem lidas na Assembleia e em outros cenários políticos.

Foi naquela tarde de domingo que tudo se desmoronou.

O presidente que, entretanto, também recorrera aos seus serviços, subiu ao palanque no Dia Nacional das Forças Armadas e, virando-se para o Chefe do Estádio Maior, disse:

– Margarida, meu amor…