O Coiso há 22 anos na net

Foi no dia 1 de novembro de 1999 que O Coiso penetrou na net.

Nessa altura, era uma página praticamente feita í  mão, que pode ser consultada no Velho Coiso.

Com mais de 2400 posts, O Coiso vai resistindo, embora com menos vigor.

Noutra altura, aproveitaria a actual crise política para escrever textos a propósito, mas, sinceramente, falta-me a paciência.

Que dizer, por exemplo, da agonia do CDS?

Quando era jornalista, fui destacado para a conferência de imprensa em que foi feito o anúncio da fundação desse partido centrista, com a presença de Freitas do Amaral. Foi em julho de 1974 e, nessa altura, ninguém era de direita.

Depois, a pouco e pouco, o Centro Democrático Social, foi resvalando para a direita, se é que alguma vez foi do centro.

Já lhe chamaram o partido do táxi, porque todos os seus deputados cabiam num. Qualquer dia, passará a ser o partido da trotinete, com o Chiquinho ao volante.

E que dizer do professor Marcelo que, de tanto querer que o Orçamento fosse aprovado, começou logo a empurrar todos para eleições antecipadas?

Com estupefacção, vimos o presidente sair do Palácio de Belém e dirigir-se a uma caixa multibanco para pagar uma conta, com os jornalistas a correrem atrás dele.

Será que o homem desconhece a página online do seu Banco?

E que dizer do PSD, o habitual saco de gatos que nunca consegue uma liderança estável?

Procurem na net: são 18 presidentes em 47 anos, o que dá uma média de 2,6 anos para cada presidente. Ora, sabendo que Rui Rio é presidente desde fevereiro de 2018, podemos declarar que o homem já ultrapassou a barreira do som, com 3 anos e 9 meses í  frente do PSD.

Mas o PSD range por todos os lados, a começar pelo lado do Rangel, que poderá vir a ser o 19º presidente e teremos que levar com a sua voz metálica e absolutamente irritante durante, pelos menos, mais 2 anos e 6 meses, até que apareça outro presidente.

E que dizer dos partidos de esquerda?

Desses ainda me apetece falar menos.

O PS ora é considerado um partido de esquerda, ora é o principal alvo do PCP e do Bloco.

O PCP decidiu voltar í s origens.

O Bloco talvez esperasse que o PC se abstivesse.

De qualquer maneira, não se entenderam e, agora, culpam-se uns aos outros, mas, o que é certo, é que a porta ficou escancarada para a direita.

Esperemos que a direita não dê com a porta…

Nota – O Coiso foi um jornal completamente desmiolado que se publicou durante 12 semanas, em 1975; era impresso no velho jornal República e tinha, entre os seus criadores e colaboradores, eu próprio, o ílvaro Belo Marques, o Ruy Lemus, o José António Pinheiro, o Carlos Barradas e o velho Mário-Henrique Leiria.

“í€ Espera dos Bárbaros”, de J. M. Coetzee (1980)

Gostei muito deste romance de Coetzee, agora reeditado pela D. Quixote.

A acção passa-se algures no tempo e no espaço. De facto, nunca ficamos a saber em que local é aquele e em que época estamos.

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O narrador é o magistrado daquela cidade muralhada, situada perto de um lago e de um pântano, com o deserto no horizonte. Para lá desse horizonte, algures, estão os bárbaros, que talvez ataquem a cidade, ou talvez não.

O Império estende os seus braços até í  cidade, que fica na fronteira e para lá envia soldados para combater os bárbaros.

Entretanto, o magistrado está velho e procura conforto junto de uma prisioneira que foi torturada. Passado algum tempo, decide levá-la de volta ao seu povo e, com esse seu gesto, cai em desgraça e é, ele próprio, preso e torturado.

Mas a vida dá muitas voltas e o magistrado ainda há de voltar a ter lugar de destaque na cidade.

Coetzee escreve bem, como se sabe, e as suas descrições da cidade, do lago, dos pescadores, do deserto, da sucessão das estações, fazem com que visualizemos o que ele descreve.

Muito bom.

Outros livros de Coetzee: A Infância de Jesus; A Vida e o Tempo de Michael K.; Diário de Um Ano Mau; O Homem Lento; No Coração Desta Terra; Verão; Jesus Na Escola; A Morte de Jesus

“Canção Doce”, de Leila Slimani (2016)

Há quem diga que os escritores escrevem sempre o mesmo livro.

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De certo modo é o que se passa com esta excelente escritora franco-marroquina.

Em “…O País dos Outros“, a história gira em torno de Mathilde, uma jovem francesa que se casa com um marroquino e que vai viver para o país do marido, sofrendo, depois, todas as desventuras que daí advêm; em “…No Jardim do Ogre“, é Adéle, uma jornalista casada com um pediatra e obcecada por aventuras sexuais, que vai caindo numa espiral de desgraças; neste “…Canção Doce”, é Louise, uma ama obsessiva-compulsiva que domina a história.

Dos três livros, este foi o que mais me impressionou pelo tema. Logo no primeiro capítulo, ficamos a saber que a ama assassina as duas crianças e ficamos logo incomodados.

Depois, Slimani vai contando a história que leva Louise ao precipício e o método que usa é semelhante ao que usou em “…No Jardim do Ogre”, com a história de Adéle.

E porque o tema central do livro me incomodou, quando acabei o livro, senti um certo alívio…

A realidade nas capas das revistas

Andam todos preocupados com a aprovação do Orçamento e outras minudências, mas as verdadeiras notícias estão nas capas das revistas.

Foi graças í  capa da Nova Gente que fiquei a saber que “…Marcelo vai ser operado”. Trata-se de um exclusivo da revista, o que quer dizer que até o próprio médico do Presidente não devia saber disto. E a Nova Gente é radical, ao acrescentar, como subtítulo: “…O Presidente da República não escapa í  cirurgia”.

Mas a capa da Nova Gente tem ainda outro exclusivo: “…Jorge Jesus foi almoçar a um dos seus restaurantes favoritos”. Que grande cacha! E a revista convida-nos: “…veja toda a reportagem”. Não vi, mas imagino o treinador do Benfica a mastigar o rosbife como mastiga a pastilha elástica durante os jogos.

A capa da TV Mais, por seu turno, informa-nos que “…Alexandra Lencastre leva novo namorado aos Globos” e, além da foto da dita cuja, a sorrir, vemos uma pequena foto do namorado, com olhos de carneiro mal morto, fitando-nos por cima dos óculos de ver ao perto.

Ficamos ainda a saber que Débora tem uma “…vida marcada pelo sofrimento: drogas, traição e aborto”, que, convenhamos, é um trio do camandro!

Ao fundo da capa, í  direita, finalmente, uma boa notícia: “…João Mota e Mariana Monteiro: reconciliação í  vista”.

Passando para a TV 7 Dias, temos muitas revelações, das quais vou apenas destacar duas. A primeira é sobre Catarina Manique, “…que se lesionou a sério durante as gravações, encantou-se por um segurança de í“bidos”. A segunda é sobre Francisco Martins, que se perdeu “…por uma veterinária da margem sul”. Penso que isto serão mensagens cifradas com um alcance que não consigo lobrigar…

Passando por cima da informação de que “…mãe de Rafael arrasa Goucha e Ana Garcia Martins”, a revista informa que “…Ronaldo falha funeral de grande amiga”. Afinal, o craque não falha só penaltis…

O exclusivo da revista Top! é diferente, revelando que Lapo Elkan e Joana Lemos casaram “…em segredo na propriedade do casal em Tavira, no valor de 7 milhões”. Fico sem saber quem vale 7 milhões: a propriedade ou o casal?

Já a TV Guia debruça-se sobre Gouveia e Melo, com o título “…O pesadelo do vice-almirante”. Não vale a pena ficarem em suspenso, porque a revista esclarece logo a seguir que ele é “…vítima de conspiração em momento de glória”. O que vale é que “…o povo quer vê-lo a mandar no país”. Mas, como não há bela sem senão, ficamos a saber que o vice-almirante “…vive com a ajuda de um pacemarker e tem o desejo de ter netos e de morrer no mar”. isto, no caso do pacemaker dar o berro, claro.

A revista Maria anuncia que “…Sandra Costa revela: a cirurgia mudou a minha vida sexual”, mas o destaque vai para a Carolina que “…troca a filha por fortuna”.

Na Lux, ficamos a saber que “…José Carlos Malato foi sexualmente abusado em criança” e, finalmente, na Mariana, “…Lourenço confessa: «O meu pai não sabe quem sou».

Depois de tanta informação, quem quer saber do Orçamento?

“No Jardim do Ogre”, de Leila Slimani (2014)

Depois de ter lido o excelente No País dos Outros, fiquei com curiosidade em ler os restantes romances desta autora franco-marroquina (Rabat, 1981).

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Este No Jardim do Ogre não fica atrás. Lê-se de um fí´lego e é difícil parar de ler.

Slimani conta-nos a história de Adéle, uma jovem atraente, que trabalha como jornalista e que é casada com um médico. Apesar de ter uma vida boa, Adéle sente-se insatisfeita e procura a felicidade nas suas aventuras sexuais, arranjando sempre mentiras cada vez mais inverosímeis para enganar o marido que, pelos vistos, não se interessa muito por sexo.

Adélia provém de uma família modesta e tem uma relação conflituosa com a mãe, e indiferente com o pai. Tem vergonha da família.

Richard, o marido, vem de uma família abastada, mas Adéle considera os sogros e os cunhados aborrecidos, enfadonhos. É um suplício passar o Natal em casa deles, mas pior é passar o Ano Novo em casa dos pais.

Vinga-se bebendo muito e fodendo ainda mais, com colegas do jornal, colegas do marido, desconhecidos.

Adéle é possuída pelas suas pulsões sexuais e troca tudo por uma nova aventura, incluindo deixar o seu filho de dois anos, dias seguidos, í  guarda de amas.

As situações vão-se complicando ao longo do livro e o desfecho não pode ser bom.

Gostei muito.

“A Anomalia”, de Hervé Le Tellier (2020)

Le Tellier (1957) formou-se em Matemática, depois em Jornalismo, é linguista e autor de diversos romances, contos, etc.

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Com este “…A Anomalia”, ganhou o Goncourt do ano passado. A Presença editou-o agora, com tradução de Tânia Gadanho e capa de Catarina Sequeira Gaeiras.

Li-o em duas penadas e é difícil parar de o ler. Le Tellier conseguiu, como disse Le Figaro, escrever o romance impossível porque para além de ser bem escrito é, simultaneamente, um thriller e um romance fantástico.

A ideia central de A Anomalia, é uma grande ideia: um avião da Air France aterra em Nova Iorque em março e, três meses depois, esse mesmo avião, com os mesmos passageiros e a mesma tripulação, aterra novamente.

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Como disse o autor, numa entrevista ao Expresso, todos nós gostaríamos de nos confrontarmos connosco próprios, em carne e osso, de podermos ver e falar com um nosso duplo, mas que não fosse uma imagem num espelho ou um clone: fí´ssemos exactamente nós mesmos.

Os conflitos que este “…simples” acontecimento desencadeia são a substância deste livro, que foi um dos melhores que li nos últimos tempos.

“A Boa Sorte”, de Rosa Montero (2020)

Desta escritora espanhola, já tinha lido Instruções para Salvar o Mundo (2008) e A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te (2013), dois livros que me agradaram, sobretudo o segundo.

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Este A Boa Sorte é uma história bem contada, embora não tenha nada de especial e de muito original.

Montero conta-nos a história de um arquitecto famoso e bem-sucedido que, fugindo de uma situação-limite, que vamos descobrindo ao longo do livro, decide mudar-se para uma localidade perdida de Espanha, comprando um apartamento miserável e começando a trabalhar num supermercado local. Conhece, então, uma sua vizinha, que também trabalha Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamentenesse supermercado e que tem ascendência romena. Ele já passou dos 50 anos e ela, Raluca, está quase com 40. Claro que acabam por se envolver, só que a tal situação-limite persegue o arquitecto e as coisas complicam-se.

A história está bem escrita, com a técnica dee capítulos curtos que te obrigam a não largar o livro e acabas por lê-lo em duas penadas.

Embora não traga nada de novo, aqui está um livro que te faz boa companhia.

A edição é da Porto Editora, com tradução de Helena Pitta; o design da capa é de Manuel Pessoa e não percebo por que raio tem a hemiface de uma rapariga; será que representa Raluca, que tem um olho artificial? No entanto, o protagonista é, sem dúvida, o arquitecto, portanto, fico sem perceber muito bem a intenção…

O galo

Era um insone de longa data.

Durante anos, tomou comprimidos para dormir. Se não os tomasse, ficava horas a contemplar o tecto, na semiobscuridade do quarto.

Experimentou todas as técnicas, desde a respiração sincopada í  contagem de carneiros. Nada resultava, a não ser o comprimido mágico, tomado uma hora antes de ir para a cama.

Muitos mais anos depois, conseguiu deixar os comprimidos e o seu padrão de sono modificou-se radicalmente: adormecia facilmente, mas tinha acordares precoces.

Bastava encostar a cabeça í  almofada para que os seus olhos se fechassem e o sono se abatesse sobre ele. No entanto, se um golpe de vento fazia bater uma janela, se o camião do lixo fazia um pouco mais de barulho ou se uma ambulância passava com a sirene ligada, era certo e sabido que acordava. Depois, para voltar a adormecer era o cabo dos trabalhos.

As coisas pioraram com o aparecimento do galo.

A partir de certa altura, por volta das 5 da madrugada, um galo cantava.

E ele acordava.

E o galo repetia o seu canto três ou quatro vezes e ele já não conseguia voltar a adormecer.

Um galo em plena cidade!

Quem teria tido a ideia?

Ainda pensou em voltar aos comprimidos, mas decidiu-se por algo de mais radical.

Na madrugada seguinte, assim que o galo começou a cantar, saiu de casa, empunhando a faca mais bem afiada que possuía.

Seguindo o som, encontrou-se, cara a cara, com o galo, num quintal vizinho.

Para que é a faca? ““ perguntou o galo.

Mas tu falas?! ““ espantou-se o homem.

Claro que falo! Para que é a faca?! ““ insistiu o galo.

O homem estava perplexo e hesitou um pouco.

Estás espantado com quê? ““ questionou o galo ““ Todos os animais falam! Desde sempre! Mas raramente o fazemos í  frente de vocês, humanos. Para que é a faca?! Querias cortar-me o pescoço?

O homem fez que sim com a cabeça.

Porquê?! ““ perguntou o galo.

Por causa do barulho, – respondeu o homem ““ Assim que começas a cantar, acordo e não consigo voltar a adormecer.

Desculpa, ““ disse o galo ““ está na minha natureza cantar de madrugada. Vou tentar cantar mais baixinho.

E assim foi.

O galo passou a cantar mais baixo e o homem nunca mais acordou de madrugada.

Tudo se consegue com o diálogo.

“Casa de Dia, Casa de Noite”, de Olga Tokarczuk (1999)

Diz-se que há escritores que escrevem sempre o mesmo livro.

Tokarczuck insere-se nessa categoria. Desde que ganhou o Nobel, em 2019, os seus títulos anteriores têm sido publicados em Portugal e verifico que, no fundo, a escritora polaca escreveu sempre o mesmo livro, embora sempre diferente.

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Entrei em contacto com esta ex-psicóloga clínica através do excelente Viagens, de 2007. Li, depois, Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, de 2009, e depois, Outrora e Outros Tempos, de 1992.

Todos estes livros, a que dificilmente poderemos chamar romances, têm estrutura idêntica: são pequenos textos que nos vão contando pequenas histórias, são descrições curtas de lugares e de acontecimentos, como se fossem peças de um puzzle que nós vamos juntando na nossa cabeça. No final, quando terminamos o livro, ficamos com a impressão de que ficámos a conhecer aquele sítio e aquelas pessoas.

Este Casa de Dia, Casa de Noite, não foge í  regra. A acção passa-se algures depois do final da segunda Grande Guerra, numa aldeola polaca que foi ocupada pelos alemães. A narradora vai-nos contando pequenas histórias, da sua vizinha Marta, dela própria, de um monge que queria ser rapariga, de um casal que enfrenta a rotina da vida, e de muitos outros.

Veremos se Olga Tokarczuck consegue manter este estilo nos seus próximos escritos.

Onde estavas no 11 de setembro?

Com este título, o jornal Público tem feito uma série de textos sobre os 20 anos dos atentados í s torres gémeas, em Nova Iorque.

A esta pergunta, respondem na edição de hoje, Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Rio, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins.

Marcelo diz que estava na Faculdade e que acompanhou as notícias pelo rádio do carro, a caminho de casa; Catarina estava no Porto e, inicialmente, pensou que se tratava de um acidente; Rio estava em campanha pela Câmara do Porto, num almoço; e Jerónimo estava na sede do PCP.

Eu estava a fazer consultas no meu Centro de Saúde; um colega meu disse-me que um avião tinha embatido numa das torres do World Trade Centre. Descrente, interrompi a consulta e fomos os dois ao café da esquina, ver a televisão e chegámos a tempo de ver o segundo avião embater na outra torre.

Tinha estado em Nova Iorque em 1994 e em 1999 e, de ambas as vezes, tinha subido ao topo das Torres, admirado o panorama lá de cima, as pontes sobre o rio East, a Estátua da Liberdade, o Empire State, o Central Park, Manhattan em vista aérea ““ e era difícil acreditar que os Estados Unidos eram, assim, atacados no seu coração.

Na edição de hoje do Público, também João Miguel Tavares sente necessidade de escrever sobre o que sentiu no dia em que as torres gémeas vieram abaixo.

E diz isto: “…foi no dia em que dois aviões destruíram as torres gémeas que eu descobri que era de direita”.

JMT faz esta revelação como quem sai do armário da orientação política: um acontecimento traumático que o faz, enfim, encarar a realidade: JMT era de direita!

Diz JMT que, na altura dos atentados, tinha 28 aninhos!

28 anos e ainda não sabia a sua orientação política, coitadinho!

Foi, portanto, graças a um atentado terrorista que ele percebeu que era de direita.

Até hoje!…

Só falta JMT agradecer í  Al-Qaeda…