“Canção Doce”, de Leila Slimani (2016)

Há quem diga que os escritores escrevem sempre o mesmo livro.

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De certo modo é o que se passa com esta excelente escritora franco-marroquina.

Em “…O País dos Outros“, a história gira em torno de Mathilde, uma jovem francesa que se casa com um marroquino e que vai viver para o país do marido, sofrendo, depois, todas as desventuras que daí advêm; em “…No Jardim do Ogre“, é Adéle, uma jornalista casada com um pediatra e obcecada por aventuras sexuais, que vai caindo numa espiral de desgraças; neste “…Canção Doce”, é Louise, uma ama obsessiva-compulsiva que domina a história.

Dos três livros, este foi o que mais me impressionou pelo tema. Logo no primeiro capítulo, ficamos a saber que a ama assassina as duas crianças e ficamos logo incomodados.

Depois, Slimani vai contando a história que leva Louise ao precipício e o método que usa é semelhante ao que usou em “…No Jardim do Ogre”, com a história de Adéle.

E porque o tema central do livro me incomodou, quando acabei o livro, senti um certo alívio…

A realidade nas capas das revistas

Andam todos preocupados com a aprovação do Orçamento e outras minudências, mas as verdadeiras notícias estão nas capas das revistas.

Foi graças í  capa da Nova Gente que fiquei a saber que “…Marcelo vai ser operado”. Trata-se de um exclusivo da revista, o que quer dizer que até o próprio médico do Presidente não devia saber disto. E a Nova Gente é radical, ao acrescentar, como subtítulo: “…O Presidente da República não escapa í  cirurgia”.

Mas a capa da Nova Gente tem ainda outro exclusivo: “…Jorge Jesus foi almoçar a um dos seus restaurantes favoritos”. Que grande cacha! E a revista convida-nos: “…veja toda a reportagem”. Não vi, mas imagino o treinador do Benfica a mastigar o rosbife como mastiga a pastilha elástica durante os jogos.

A capa da TV Mais, por seu turno, informa-nos que “…Alexandra Lencastre leva novo namorado aos Globos” e, além da foto da dita cuja, a sorrir, vemos uma pequena foto do namorado, com olhos de carneiro mal morto, fitando-nos por cima dos óculos de ver ao perto.

Ficamos ainda a saber que Débora tem uma “…vida marcada pelo sofrimento: drogas, traição e aborto”, que, convenhamos, é um trio do camandro!

Ao fundo da capa, í  direita, finalmente, uma boa notícia: “…João Mota e Mariana Monteiro: reconciliação í  vista”.

Passando para a TV 7 Dias, temos muitas revelações, das quais vou apenas destacar duas. A primeira é sobre Catarina Manique, “…que se lesionou a sério durante as gravações, encantou-se por um segurança de í“bidos”. A segunda é sobre Francisco Martins, que se perdeu “…por uma veterinária da margem sul”. Penso que isto serão mensagens cifradas com um alcance que não consigo lobrigar…

Passando por cima da informação de que “…mãe de Rafael arrasa Goucha e Ana Garcia Martins”, a revista informa que “…Ronaldo falha funeral de grande amiga”. Afinal, o craque não falha só penaltis…

O exclusivo da revista Top! é diferente, revelando que Lapo Elkan e Joana Lemos casaram “…em segredo na propriedade do casal em Tavira, no valor de 7 milhões”. Fico sem saber quem vale 7 milhões: a propriedade ou o casal?

Já a TV Guia debruça-se sobre Gouveia e Melo, com o título “…O pesadelo do vice-almirante”. Não vale a pena ficarem em suspenso, porque a revista esclarece logo a seguir que ele é “…vítima de conspiração em momento de glória”. O que vale é que “…o povo quer vê-lo a mandar no país”. Mas, como não há bela sem senão, ficamos a saber que o vice-almirante “…vive com a ajuda de um pacemarker e tem o desejo de ter netos e de morrer no mar”. isto, no caso do pacemaker dar o berro, claro.

A revista Maria anuncia que “…Sandra Costa revela: a cirurgia mudou a minha vida sexual”, mas o destaque vai para a Carolina que “…troca a filha por fortuna”.

Na Lux, ficamos a saber que “…José Carlos Malato foi sexualmente abusado em criança” e, finalmente, na Mariana, “…Lourenço confessa: «O meu pai não sabe quem sou».

Depois de tanta informação, quem quer saber do Orçamento?

“No Jardim do Ogre”, de Leila Slimani (2014)

Depois de ter lido o excelente No País dos Outros, fiquei com curiosidade em ler os restantes romances desta autora franco-marroquina (Rabat, 1981).

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Este No Jardim do Ogre não fica atrás. Lê-se de um fí´lego e é difícil parar de ler.

Slimani conta-nos a história de Adéle, uma jovem atraente, que trabalha como jornalista e que é casada com um médico. Apesar de ter uma vida boa, Adéle sente-se insatisfeita e procura a felicidade nas suas aventuras sexuais, arranjando sempre mentiras cada vez mais inverosímeis para enganar o marido que, pelos vistos, não se interessa muito por sexo.

Adélia provém de uma família modesta e tem uma relação conflituosa com a mãe, e indiferente com o pai. Tem vergonha da família.

Richard, o marido, vem de uma família abastada, mas Adéle considera os sogros e os cunhados aborrecidos, enfadonhos. É um suplício passar o Natal em casa deles, mas pior é passar o Ano Novo em casa dos pais.

Vinga-se bebendo muito e fodendo ainda mais, com colegas do jornal, colegas do marido, desconhecidos.

Adéle é possuída pelas suas pulsões sexuais e troca tudo por uma nova aventura, incluindo deixar o seu filho de dois anos, dias seguidos, í  guarda de amas.

As situações vão-se complicando ao longo do livro e o desfecho não pode ser bom.

Gostei muito.

“A Anomalia”, de Hervé Le Tellier (2020)

Le Tellier (1957) formou-se em Matemática, depois em Jornalismo, é linguista e autor de diversos romances, contos, etc.

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Com este “…A Anomalia”, ganhou o Goncourt do ano passado. A Presença editou-o agora, com tradução de Tânia Gadanho e capa de Catarina Sequeira Gaeiras.

Li-o em duas penadas e é difícil parar de o ler. Le Tellier conseguiu, como disse Le Figaro, escrever o romance impossível porque para além de ser bem escrito é, simultaneamente, um thriller e um romance fantástico.

A ideia central de A Anomalia, é uma grande ideia: um avião da Air France aterra em Nova Iorque em março e, três meses depois, esse mesmo avião, com os mesmos passageiros e a mesma tripulação, aterra novamente.

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Como disse o autor, numa entrevista ao Expresso, todos nós gostaríamos de nos confrontarmos connosco próprios, em carne e osso, de podermos ver e falar com um nosso duplo, mas que não fosse uma imagem num espelho ou um clone: fí´ssemos exactamente nós mesmos.

Os conflitos que este “…simples” acontecimento desencadeia são a substância deste livro, que foi um dos melhores que li nos últimos tempos.

“A Boa Sorte”, de Rosa Montero (2020)

Desta escritora espanhola, já tinha lido Instruções para Salvar o Mundo (2008) e A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te (2013), dois livros que me agradaram, sobretudo o segundo.

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Este A Boa Sorte é uma história bem contada, embora não tenha nada de especial e de muito original.

Montero conta-nos a história de um arquitecto famoso e bem-sucedido que, fugindo de uma situação-limite, que vamos descobrindo ao longo do livro, decide mudar-se para uma localidade perdida de Espanha, comprando um apartamento miserável e começando a trabalhar num supermercado local. Conhece, então, uma sua vizinha, que também trabalha Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamentenesse supermercado e que tem ascendência romena. Ele já passou dos 50 anos e ela, Raluca, está quase com 40. Claro que acabam por se envolver, só que a tal situação-limite persegue o arquitecto e as coisas complicam-se.

A história está bem escrita, com a técnica dee capítulos curtos que te obrigam a não largar o livro e acabas por lê-lo em duas penadas.

Embora não traga nada de novo, aqui está um livro que te faz boa companhia.

A edição é da Porto Editora, com tradução de Helena Pitta; o design da capa é de Manuel Pessoa e não percebo por que raio tem a hemiface de uma rapariga; será que representa Raluca, que tem um olho artificial? No entanto, o protagonista é, sem dúvida, o arquitecto, portanto, fico sem perceber muito bem a intenção…

“Casa de Dia, Casa de Noite”, de Olga Tokarczuk (1999)

Diz-se que há escritores que escrevem sempre o mesmo livro.

Tokarczuck insere-se nessa categoria. Desde que ganhou o Nobel, em 2019, os seus títulos anteriores têm sido publicados em Portugal e verifico que, no fundo, a escritora polaca escreveu sempre o mesmo livro, embora sempre diferente.

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Entrei em contacto com esta ex-psicóloga clínica através do excelente Viagens, de 2007. Li, depois, Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, de 2009, e depois, Outrora e Outros Tempos, de 1992.

Todos estes livros, a que dificilmente poderemos chamar romances, têm estrutura idêntica: são pequenos textos que nos vão contando pequenas histórias, são descrições curtas de lugares e de acontecimentos, como se fossem peças de um puzzle que nós vamos juntando na nossa cabeça. No final, quando terminamos o livro, ficamos com a impressão de que ficámos a conhecer aquele sítio e aquelas pessoas.

Este Casa de Dia, Casa de Noite, não foge í  regra. A acção passa-se algures depois do final da segunda Grande Guerra, numa aldeola polaca que foi ocupada pelos alemães. A narradora vai-nos contando pequenas histórias, da sua vizinha Marta, dela própria, de um monge que queria ser rapariga, de um casal que enfrenta a rotina da vida, e de muitos outros.

Veremos se Olga Tokarczuck consegue manter este estilo nos seus próximos escritos.

“Raízes Brancas”, de Bernardine Evaristo (2008)

Gostei muito de Rapariga, Mulher, Outra, o livro com que esta escritora anglo-nigeriana venceu o Man Booker de 2019.

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Fiquei com curiosidade em conhecer outras obras de Evaristo e a Elsinore editou agora um romance de 2008 e que foi uma desilusão.

A ideia é muito boa: Bernardine Evaristo cria um mundo em que os escravos são os brancos e os senhores são os negros, mas penso que não conseguiu dar a volta í  excelente ideia que teve.

Neste livro, os negros, que são os senhores, castigam os escravos brancos, mandam-nos borda fora quando eles estão moribundos, vendem-nos em hasta pública, mas continuam a usar tangas e não me convencem como senhores do Mundo.

Evaristo acaba por construir uma história centrada numa escrava branca que, depois de algumas tentativas, consegue fugir.

Não me convenceu.

“O Homem do Casaco Vermelho”, de Julian Barnes

O homem do casaco vermelho é o Dr. Samuel Pozi, o fundador da disciplina de ginecologia em França, homem sedutor e bem relacionado, viajado e culto, que teve uma vida cheia e que viveu entre 1846 e 1918.

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Julian Barnes tomou conhecimento de Pozi através da pintura de John Singer Sargent, representando o médico envergando uma longa capa escarlate, com o rosto a três quartos, com uma mão no peito e outra na cintura. E foi estudar a figura de Samuel Pozi. E assim nasceu este curioso livro que nos conta múltiplos episódios da chamada Belle Époque.

Ao longo do livro desfilam muitas personagens, para além de Pozi: Oscar Wilde, Guy de Maupassant, o conde de Montesquiou, Sarah Bernhard, Clemenceau, George Sand, Edmond de Goncourt, Colette, entre muitas outras.

Pozi foi um médico inovador e procurou aprender com outros, quer em Inglaterra, quer nos Estados Unidos.

A propósito dos feridos da guerra Franco-Prussiano de 1870-1871,

“…Pozi viu como havia mais probabilidades de os soldados feridos morrerem devido a infecções e septicemia do que devido í  ferida inicial: os cirurgiões operavam em condições imundas e de contaminação múltipla, sendo muitas vezes os feridos transportados da frente de batalha sobre palha cheia de merda em veículos que antes tinham sido ocupados por cavalos. Mesmo na cirurgia em tempos de paz, a higiene básica era frequentemente negligenciada. O cirurgião americano Charles Meigs (1792-1869) ficou famoso por se ter sentido ultrajado quando alguém lhe sugeriu que ele e os colegas deviam lavar as mãos antes de operar. «Os médicos são cavalheiros e as mãos dos cavalheiros estão limpas», declarou.”

O livro de Julian Barnes está repleto destes pequenos episódios de índole médica, mas também muitos outros, que nos revelam como a alta sociedade, os intelectuais e os bem-nascidos viviam na Belle Époque, como este:

“…Em 1867, Mallarmé, então com vinte e cinco anos, numa carta escrita em Besançon, queixa-se da cidade a um amigo. Descreve um vizinho que aponta para uma janela do outro lado da rua e diz: «Deus me valha! A Mme. Remaniet comeu espargos ontem!» «Como é que sabe?» «Pelo bacio que ela pí´s no peitoril».

Para além de um grande cirurgião, Pozi era um homem bem vivido; terá tido muitas amantes, incluindo Sarah Bernhard e algumas das suas doentes (dizia-se que as consultas eram os preliminares) e uma importante colecção de arte.

Percebe-se que gostei bastante da companhia deste livro. Trata-se, ainda por cima, de um livro bonito, de capa dura, com diversas ilustrações, algumas a cores, edição muito cuidada da Quetzal, com tradução de Salvato Teles de Menezes.

Outros livros de Julian Barnes: O Ruído do Tempo; O Sentido do Fim; Arthur & George; Amor & Etc;

“A Morte de Jesus”, de J. M. Coetzee (2020)

Com este título, o escritor sul-africano, prémio Nobel em 2003, termina a trilogia que tem o jovem David como protagonista.

Quando, em 2013, li “…A Infância de Jesus“, fiquei entusiasmado. Coetzee contava-nos uma história singular: um miúdo, David, e um homem, Simon, que não é seu pai, chegam a Novilla, uma cidade onde toda a gente deixa o passado para trás. Nesse primeiro volume da trilogia, Simon vai conhecer Iní¨s e vai decidir que ela passará a ser a mãe de David que, vamos descobrindo a pouco e pouco, é um miúdo especial.

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Por alguma razão Coetzee decide colocar o nome de Jesus nos títulos dos três volumes e, mesmo que não quiséssemos, acabamos por identificar David com Jesus e os restantes personagens da história com outras tantas figuras bíblicas.

O segundo volume, “…Jesus na Escola“, no entanto, decepcionou-me. Li-o em 2018 e achei que o autor se deixou encantar pelo “…mundo novo” que criou e decidiu tornar a história cada vez mais absurda ““ ou então, todas as peripécias narradas são alegorias, como, por exemplo, o facto de David se transformar num bailarino extraordinário, capaz de dançar os números.

Este terceiro volume continua na senda do anterior. David começa por se rebelar contra os pais adoptivos e decide ir viver para um orfanato, onde se quer tornar um grande jogador de futebol. No entanto, adoece subitamente com uma maleita que nunca vamos saber qual é, vai definhando e acaba por morrer. Depois da morte de David, o livro ainda se arrasta mais, com Simon í  procura da mensagem que David deveria ter transmitido, mas ninguém sabe qual é ““ penso que nem o autor.

Coetzee é um dos meus autores contemporâneos preferidos, mas estes dois volumes da trilogia, desiludiram-se.

Nota: a capa da edição portuguesa não deixa de ser irónica para quem é adepto do Benfica…

“O País dos Outros”, de Leila Slimani (2020)

Leila Slimani nasceu em Rabat em 1981 e aos 17 anos mudou-se para Paris. Publicou o seu primeiro romance (No Jardim do Ogre) em 2014. Com o livro Canção Doce (2016), venceu o Prémio Goncourt.

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Este O País dos Outros, publicado no ano passado, é o primeiro volume de uma trilogia e tem, como subtítulo, A guerra, a guerra, a guerra.

A acção passa-se em Marrocos, pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Mathilde, uma jovem francesa conheceu Amine, um marroquino, quando este servia no exército francês. Casaram-se e Mathilde abandonou tudo e foi viver com o marido para Marrocos, para uma quinta que ele herdou do pai.

Com um ritmo que nos faz querer avançar na história, Slimani vai relatando a vida dura de Mathilde, habituada ao modo de vida europeu e como teve que ir engolindo os seus sonhos de adolescente para se adaptar aos costumes de uma sociedade onde a mulher tem muito pouca importância.

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Por outro lado, Amine, tendo servido no exército francês durante a guerra, vê-se dividido entre apoiar os desejos de independência dos seus compatriotas e manter-se fiel aos colonizadores, ainda por cima, sendo casado com uma francesa.

Aconselho.