O elogio do medíocre
O Expresso de hoje dedica duas páginas inteiras a Miguel Relvas.
Quem?!
Miguel Relvas, o tipo que inventou o Passos Coelho, que nos mostrou como as equivalências podiam valer licenciaturas, o exemplo acabado do chico-espertismo da política.
Que fez Relvas para merecer duas páginas do mais antigo semanário português?
Mistério.
Mas alguma coisa deve andar a tramar para voltar í ribalta.
A entrevista, conduzida por í‚ngela Silva, leva por título: “Passos vai ser candidato a PM”, e Relvas é apresentado como “ex-ministro e ex-dirigente do PSD”.
Aí está a sua importância: a de ser ex-!
A entrevista não podia começar melhor: a primeira pergunta da í‚ngela é – “Boa-tarde, dr. Miguel Relvas. Que tal a sensação de poder, finalmente, ser tratado por dr.?”
Finalmente! O Relvas é doutor, porra!
Claro que o gajo responde í altura: “nunca precisei da licenciatura para obter qualquer objectivo na vida”. Acredito, dr. Relvas! Quem precisa seja do que for quando se tem os amigos certos nos sítios certos? No entanto, não há dúvida que sempre gostou do título. Caramba, nunca o ouvimos dizer, por exemplo, “não me chame doutor que a minha licenciatura é uma treta!…”
O finalmente doutor confessa que estudou muito, sobretudo Direito Administrativo, que é uma cadeira “chata”, í qual teve 13.
Depois de tecer algumas considerações sobre Marcelo, Passos Coelho, Rui Rio, Teresa Leal ao Coelho e Marco António Costa, Relvas faz o elogio de Paulo Portas e avança nomes para substituir Passos Coelho. Por outras palavras, prepara o terreno…
E o que faz o doutor Relvas?
É consultor na Roland Berger, trabalhando com fundos internacionais na área financeira, em empresas em Angola, Moçambique e Brasil.
E precisou da licenciatura para conseguir este lugar?
Claro que não.
Mas fazer parte do governo deu jeito…
Também não. Diz o doutor: “quando saí do governo tinha uns milhares de euros. Hoje, tenho uma situação completamente distinta. Agradeço muito a oportunidade de ter saído”.
Ora aí está uma afirmação digna de figurar na galeria das frases mais cínicas da história da política: um gajo que agradece ter saído do governo porque, desse modo, passou a ganhar mais dinheiro!
Chamamos-lhe o quê?… Cabrão?…
Não! Cabrão é um bebé que chora muito (https://www.priberam.pt/dlpo/cabr%C3%A3o) e Relvas não chora.
Mas mama!
Ah! se ele mama!
E o recém-doutor continua a avaliar os actuais políticos, incluindo Cristas e Costa, Marques Mendes e Santana Lopes, como se fosse um senador, uma espécie de político da velha guarda, reformado, que tem uma carreira longa e recheada de sucessos, que lhe permite ter um olhar privilegiado sobre Portugal.
Finalmente, a í‚ngela pergunta-lhe: “falta um projecto de media assumidamente de centro-direita?”
Confesso que fiquei perplexo com esta pergunta. Então o Expresso? Então o Sol? Então o Observador? Então o Eco? Então a SIC?… Então praticamente todos os órgãos de informação, escrita e digital?
Responde o doutor: “Penso que sim. (…) até o Observador caiu no politicamente correcto”.
í“ Relvas, tu não me digas que eu estou enganado e que o Observador, afinal, é de esquerda!
Hilariante, se não fosse trágico…
Grande bomba!
Coisas que caem do ar…
“A Vegetariana”, de Han Kang
O título deste pequeno livro da coreana Han Kang é enganador.
Claro que tudo começa porque Yeong-hye decide tornar-se vegetariana, depois de um sonho assustador, que mete carne estralhaçada e sangue, mas isto é apenas um pormenor.
A Vegetariana é um romance duro e violento sobre a solidão e as relações estranhas entre familiares quando algo foge í chamada normalidade.
Han Kang é uma sul-coreana nascida em 1970 e que, com este romance, ganhou o Man Booker Internation Prize do ano passado (curioso, uma mulher ganhar o Man Book Prize…).
O facto da autora ser coreana não é alheio a uma certa estranheza no tema da história, acho eu…
O livro, de apenas 190 páginas, contrariando os espessos tijolos que estão agora “na moda”, está dividido em três partes.
Na primeira parte, ficamos a saber quem é Yeong-hye, uma mulher jovem, casada com o Sr. Cheong, muito formal, e que, de repente, tem um sonho aterrador e decide tornar-se vegetariana. Este facto deixa o marido e toda a família dela estupefactos e, num almoço em que todos se reúnem, o pai de Yeong-hye tenta obrigá-la, í força, a comer carne. Ela corta os pulsos e é internada num hospital psiquiátrico.
Na segunda parte, o cunhado de Yeong-hye, que foi quem a impediu de sangrar até í morte e a levou ao hospital, está obcecado por ela e por uma pequena mancha mongólica que ela tem junto í s nádegas. Depois de ela ter alta do hospital psiquiátrico, procura-a. Ele faz vídeo-arte e convence-a a deixar-se pintar. Pinta-lhe todo o corpo com flores (ela fica ainda mais vegetariana). Ele pinta-se também. Acabam na cama, depois de algumas páginas de intenso erotismo.
Na terceira parte, a irmã de Yeong-hye, In-hye, depois de os ter encontrado na cama, expulsa o marido da sua vida e interna a irmã, novamente, num hospital psiquiátrico. Foi sempre ela que assumiu todos os problemas da família. Tem um filho pequeno. Conhecemos um pouco da infância das duas irmãs, como ela sempre cuidou de Yegon-hye e sempre a defendeu do pai. Mas Yegon-hye está cada vez mais “vegetariana”. Deixa de comer. Passa horas a fazer o pino, para que as mãos sejam as raízes, quer transformar-se em árvore.
O resto fica por vossa conta.
Uma coisa é certa: Han Kang conseguiu que eu imaginasse estes três personagens, que criasse, na minha cabeça, uma figura humana para cada um deles, coisa que, por exemplo, Paul Auster não conseguiu com as suas quatro versões de Archie Ferguson, no calhamaço “4 3 2 1”.
Recomendo.
“4 3 2 1”, de Paul Auster (2017)
Acabei, finalmente, a leitura do último livro de Paul Auster, um calhamaço de 870 páginas, candidato ao Booker Prize deste ano.
Gosto de Auster e penso que já li todos os seus livros. Gostei, sobretudo da Trilogia de Nova Iorque, mas há muitos outros títulos que merecem destaque (ver no fim deste texto).
Paul Auster sempre gostou de destacar a influência do acaso na vida das pessoas; como a nossa vida pode mudar devido a um episódio fortuito que muda completamente o rumo dos acontecimentos. Neste calhamaço, o escritor decidiu desenvolver esta sua obsessão.
Que pena não podermos viver mais do que uma vida! De facto, uma única vida parece pouco para realizarmos tudo o que sonhamos!
O herói deste romance é um judeu chamado Archie Ferguson. Paul Auster deu-lhe quatro vidas diferentes. Numa delas, o pai de Ferguson é dono de uma loja de electrodomésticos e morre dentro dessa loja, durante um incêndio; noutra, o pai é um excelente homem de negócios e vai abrindo sucursais e acaba por se tornar um tycoon do ramo; numa outra das vidas possíveis, o pai de Ferguson mantém-se um simples e honesto comerciante.
Um dos Ferguson morre, vítima de um raio, durante uma tempestade, quando ainda é adolescente; outro, morre atropelado em Londres, ao atravessar uma rua, depois de olhar para o lado errado; o terceiro Ferguson morre num incêndio. Daí o título: o livro começa com 4 vidas que acabam por ser uma única.
Todos nós passámos por isto: e se eu tivesse feito isto, em vez daquilo, se tivesse aceite esta proposta e não aquela, se tivesse ido por ali, em vez de ter ido por aqui? Como seria a minha vida se?…
Ao contar as histórias destes quatro Ferguson, Auster aproveita para contar, também, um pouco da História dos Estados Unidos, com especial incidência nos anos 60 do século passado; Ferguson nasce em 1947 e, nos anos 60, está em plena adolescência e, conforme a versão da sua vida, está mais ou menos envolvido nas actividades políticas, nas manifestações estudantis, na luta contra a guerra do Vietname.
É, sem dúvida, uma obra de fí´lego, até pela dimensão, e uma ideia muito bem esgalhada; no entanto, penso que não seria preciso escrever tantas páginas. Auster, por vezes, perde-se nos pormenores dos primos e primas do herói, das minudências do dia-a-dia, sendo demasiado exaustivo nas descrições, o que torna a leitura um pouco fastidiosa. Quantidade não é obrigatoriamente qualidade e, embora, hoje em dia, me pareça que os escritores se sentem obrigados a escrever verdadeiros tijolos, um pouco mais de comedimento não fazia mal nenhum.
Vale a pena ler, mas é preciso um bom bícepete para segurar o calhamaço…
Outras obras de Paul Auster: Timbuktu; Experiências com a Verdade; O Livro das Ilusões; As Loucuras de Brooklyn; Viagens no Scriptorium; Mr. Vertigo; Homem na Escuridão; Invisível; Sunset Park; Palácio da Lua; Relatório do Interior; Diário de Inverno
Kim faz os TPC
Não aqueceu o lugar!
O novo pequeno líder
“Regresso í Pequena Ilha”, de Bill Bryson (2015)
Bill Bryson nasceu em Des Moines, EUA, em 1951, mas vive há 40 anos na Grã Bretanha, depois de se ter casado com uma inglesa.
Embora seja conhecido por escrever livros de viagens, Bryson é muito mais do que isso – é, sobretudo, um bom observador, um estudioso das coisas banais, um coleccionador de factos históricos e, além de tudo isto, tem um sentido de humor refinadíssimo.
Em 1995, Bryson publicou Crónicas de Uma Pequena Ilha, que li em 2008 e há dois anos, decidiu publicar este Regresso í Pequena Ilha, mais um conjunto de crónicas em que, a partir de visitas a algumas localidades britânicas, vai discorrendo sobre os tiques, as particularidades e as idiossincrasias britânicas.
Falando das praias britânicas, por exemplo, Bryson escreve:
“Estava bastante calor (em Brighton) – lembro-me que o sol aparecia por vários momentos de casa vez – e os banhistas eram muitos. Soltavam gritos que me pareceram de prazer, mas hoje sei que eram de agonia. Ingénuo, despi a t-shirt e corri para a água. Achei que estava a entrar em azoto líquido.”
Por vezes, Bryson parece esquecer que está a escrever sobre viagens e divaga:
“Não é espantoso o número de pessoas que nos odeiam neste mundo? (…) Todas as pessoas que criam software na Microsoft detestam-nos e o mesmo acontece com as que atendem telefones na Expedia. As do TriAdvisor também nos odiariam se não fossem tão estúpidas. Quase todos os empregados das recepções dos hotéis detestam-nos, tal como os empregados das linhas aéreas, sem excepção. Todos os indivíduos que trabalham para a British Telecom, incluindo alguns que faleceram antes de nós nascermos detestam-nos; a BT contrata vastas equipas de linhas de atendimento na Índia só para nos odiarem”.
Em resumo, quem pensa que vai ler um livro de viagens vai sentir-se ludibriado, uma vez que este é, sobretudo, um livro sobre tudo e sobre nada, mas que nos proporciona bons momentos de diversão.
Outros livros de Bryson: 1927 – Aquele Verão; Em casa – Breve História da Vida Privada; A Vida e as Aventuras do Rapaz Relâmpago;Â Por Aqui e Por Ali; Notas sobre um País Grande; Made in America