Concertos no S.Luiz

—Eu sou do tempo em que havia uma temporada de concertos no S. Luiz.

Por 10 paus (0,049 euros), podíamos assistir a um “pequeno concerto”. No dia 20 de Janeiro de 1972, assistimos a um concerto de Nella Maissa, que tocou obras para piano de Scarlatti, Beethoven, Croner de Vasconcellos e Chopin.

Uns dias antes, na mesma sala, tínhamos assistido í  Abertura de “Gabriela, Cravo e Canela”, de Lopes Graça, ao 4º Concerto para piano de Beethoven e í  4ª Sinfonia de Tchaikovsky.

Com orquestra, era mais caro – 12 escudos (0,059 euros).


25 de Abril, sempre!

Para que não se repita:

“Se esse acto teve a simpatia da maior parte do país, não teve a minha, pois há muito que eu gostaria de passar í  vida privada mas sou de opinião que, em qualquer circunstância, enquanto um português tiver vida e saúde não se deve negar a cumprir a sua missão ao serviço da Pátria” – Américo Tomaz, em novembro de 1972, a propósito de ter sido nomeado para o terceiro mandato consecutivo como presidente da República.

“Percorre-se a Guiné, anda-se pela vastidão angolana, desloca-se quem quer que seja, de lés a lés de Moçambique e não encontra populações revoltadas” – Marcelo Caetano, julho de 1972.

“Nesta terra portuguesa, aqui temos não só compatriotas de Cabo Verde a dizerem e a testemunharem a sua devoção í  Pátria, agarrados í  bandeira de Portugal, como ainda antigos combatentes orgulhosos da mesma Pátria comum a jovens prontos a partir para o combate, sob o olhar enternecido, é certo, das mães, esposas e noivas, com o coração a sangrar de saudade, mas todas altivas e orgulhosas dos seus filhos, maridos e noivos que lá vão servir e lutar pela Pátria querida, por Portugal eterno” – Dr. Serafim Silveira Júnior, na manifestação municipal, organizada em Almada em 18 de julho de 1972.

“Lusíadas são os nossos filhos que hoje se cobrem de glória nas terras quentes e morenas de Portugal africano, terras que são carne da nossa carne, sangue do nosso sangue. Lusíadas são Américo Tomaz e Marcelo Caetano, que continuam, no presente, a obra dos Lusíadas do passado” – Afonso Marchueta, agosto 1972.

Citações sacadas de recortes do jornal República, da coluna diária “Ponto Crítico”, da autoria do ílvaro Guerra.

Morte solidária

—Continuando a remexer no baú das minhas recordações, que comecei a juntar com alguma ordem, a partir dos meus 18 anos, encontrei este recorte do Diário de Notícias que é, simultaneamente, delicioso e assustador.

Trata-se de uma pequena notícia sobre uma sessão solene na então Assembleia Nacional, realizada a 28 de Julho de 1971.

Nessa sessão, foi evocada a memória de Augusto de Castro, que foi director do DN durante muitos anos e que falecera dias antes.

O último parágrafo da notícia diz:

«(Augusto de Castro) Quis estar junto de Salazar, o seu amigo de sempre, no dia em que a Nação assinala o primeiro aniversário da sua morte. Maior homenagem não lhe podia prestar».

Por outras palavras, a dedicação í  causa salazarista era tanta, que Augusto de Castro, fez um esforço para falecer naquele exacto dia, de modo a poder ir festejar o primeiro aniversário da morte do ditador, sentadinho ao lado dele – presume-se que no Outro Mundo, ou melhor, no Céu, porque Salazar era tão bonzinho que só podia estar no Céu.

í€ primeira vista, este texto pode parecer inocente, beato e até infantil, mas revela bem a fantasia em que Portugal estava mergulhado: toda uma nação dependente de um homem providencial, que zelou por nós durante 40 anos – e continuava a zelar, lá de cima, do Céu e, agora, tendo por companhia, o director do Diário de Notícias.

Era de ter medo. Muito medo…

Uma sessão cultural no Império

Quando escrevi sobre as sessões de cinema dos meus 18 anos, esqueci-me que também havia as “sessões culturais”, no Império – aquele cinema enorme que está agora transformado em templo da igreja Maná.

No dia 10 de Março de 1971, fui ver o “Easy Rider” – e não há dúvida que foi uma sessão cultural. Para mim – e para muitos como eu – este filme, realizado por Dennis Hopper em 1969, foi o primeiro a mostrar pessoas sob o efeito de drogas psicadélicas.

Com Dennis Hopper e Peter Fonda, “Easy Rider” é um “road movie”, em que dois amigos, montados nas históricas Harley Davidson, atravessam a América, de Los Angeles a New Orleans, em busca do sentido da vida (?). Lá para o meio do filme, aparece um advogado drogado, que acaba por ser assassinado e cujo papel é interpretado por um Jack Nicholson, em início de carreira.

A banda sonora ainda hoje é bem audível, com “Born to be Wild”, dos Steppenwolf í  cabeça, e ainda “The Pusher”, da mesma banda, “I Wasn’t Born to Follow”, dos Byrds, “The Weight” por The Band, e outras mais “alternativas”, como uns tais “Electric Prunes” e o seu “Kyrie Eleison” (cheguei a comprar o álbum que, entretanto, desapareceu nas brumas da memória…).

Não há dúvida de que foi uma sessão cultural…

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Mais barato que ir ao cinema…

Era ir í  bola, em 1971.

Podíamos assistir a um excelente jogo de futebol pagando, apenas, 15 paus, enquanto que, por uma soirée no Politeama, tínhamos que desembolsar 19 paus (para quem não sabe, a cotação é como segue: 1 euro = 200 paus).

E foi um grande jogo, este a que assisti no dia 31 de Julho de 1971. Foi a festa de despedida do José Torres, esse grande ponta-de-lança í  moda antiga, que muitos golos marcou pelo Benfica e pela selecção.

Nesse dia, o Benfica defrontou o Arsenal, de Londres, e venceu por 2-0, com golos do “maluco” do Vítor Batista e do inevitável Eusébio.

2-0 era um bom resultado para amanhã, contra o Liverpool…

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Soirées no Politeama

Eu sou do tempo em que as sessões de cinema eram apenas duas e tinham nomes franceses: a matiné e a soirée. Claro que também havia a sessão da meia-noite, no Politeama, mas era só ao sábado.

O Politeama era a sala preferida da malta, embora também gostássemos do Condes, do Avis, do Tivoli, do Império ou do S. Jorge.

Foi no Politeama que vi muitos westerns-spaghetti, com o Clint Eastwood ou o Giluliano Gemma.

No dia 21 de Janeiro de 1971, fui í  sessão da noite ver “Borsalino“, um filme que Jacques Deray realizara no ano anterior. Alain Delon e Jean-Paul Belmondo formavam um par de actores franceses muito em voga e interpretavam os papéis de dois escroques marselheses dos anos 30.

Deray tinha ficado célebre entre a juventude portuguesa porque, em 1969, tinha realizado “La Piscine“, também com Alain Delon e ainda com a maminhas da Romy Schneider. Vi-as no Tivoli, muito emocionado…

O bilhete de cinema custava, em 1971, 19 escudos (0.09 euros).

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Obrigado, Doug Fieger

—Em 1973 saíram “Dark Side of The Moon”, dos Pink Floyd e “Houses of the Holy”, dos Led Zeppelin.

Depois disso, entreguei-me í  música popular brasileira (Chico, Caetano, Gilberto Gil), í  música portuguesa de intervenção  (Zeca, Zé Mário Branco, Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveira…) e í  chamada música erudita.

Papei de tudo, da Handel a Xenakis, de Mozart a Bartok, de Beethoven a Eric Satie.

Com o 25 de Abril, a coisa ainda se agravou mais. Era reaccionário gostar de rock’n’roll.

Foi em 1979, a fazer o estágio de Saúde Pública, em Armamar que, sem acesso ao gira-discos, recomecei a ouvir a Rádio Comercial e foi “My Sharona” que me fez voltar a bater o pé no chão, a compasso e, sem que ninguém visse, a abanar a cabeça, ao ritmo frenético dos Knack.

Deixei-me de preconceitos e recomecei a ouvir pop-rock.

O responsável foi Doug Fieger, líder dos Knack.

Morreu no passado domingo, com a minha idade, e um tumor cerebral.

Não conheço mais nenhuma música dos Knack, mas obrigado pela Sharona, pá!

Proto manifes

Nos anos 70 do século passado participei numa manifestação. Descemos as avenidas, gritando “Otelo amigo, o povo está contigo!”

Não estava, como depois se viu.

Era uma manif dos GDUP que, se não me falha a memória, queria dizer Grupos Democráticos de Unidade Popular – ou será que era Grupo Desportivo União Piedense?…

De qualquer modo, estávamos no chamado PREC (processo revolucionário em curso) e até parecia mal que não nos manifestássemos.

Vem isto a propósito da manif dos enfermeiros, anteontem.

Igualzinho.

Avenida abaixo, gritando palavras de ordem – “Sócrates escuta, os enfermeiros estão em luta!” (um primor de originalidade…) – agitando bandeiras e cartazes, megafones em punho.

Tal como os professores, no ano passado, também os enfermeiros, este ano, entram neste folclore das manifestações, graciosamente organizadas pelos sindicatos que, como se sabe, nada têm a ver com o PCP.

Não seria mais original se os enfermeiros, em vez de gastarem dinheiro a alugar autocarros, montassem bancas e fizessem rastreios da diabetes, medissem o colesterol ou avaliassem a tensão arterial?

Não teria mais impacto, junto da população, se os enfermeiros montassem stands, nas capitais de distrito, onde fizessem educação para a saúde, fornecessem informações sobre a prevenção do cancro, estilos de vida saudável, planeamento familiar, a importância da precocidade da primeira consulta da gravidez, etc, etc?

Ou então, ao menos, que desfilassem nuas!…

Como o MUDE me deixou irritado comigo próprio

Fui finalmente visitar o Museu de Design, no antigo edifício do Banco Nacional Ultramarino, na Rua Augusta.

No rés-do-chão, está a colecção permanente: mobiliário, vestuário, projecção de filmes, alguma loiça e duas dúzias de electrodomésticos (torradeiras fantásticas e rádios cheios de patine).

No primeiro piso, a Exposição temporária “É proibido proibir”, dedicada aos anos 60: monitores passam alguns filmes emblemáticos (“Barbarella”, “Midnight Cowboy”), altifalantes debitam música dos anos 60 (“Sgt Peppers…”, “Hair”, “Woodstock”, Stones, Janis Joplin) e mais mobiliário e mais vestuário.

—E, de repente, ali estava, bem í  vista, a máquina de escrever Olivetti Valentine, igualzinha í  que a Mila me comprou nos anos 70 do século passado, em segunda mão, num antiquário das Escadinhas do Duque.

Foi numa máquina igual a essa que escrevi muitos textos para o Pão Comanteiga, a uma velocidade que fazia saltar teclas, literalmente.

E depois, num daqueles ataques que nos dá e em que nos apetece desfazermo-nos de coisas que já não usamos, vendi-a a um ferro-velho, juntamente com muitos trastes.

Mais tarde, dei vários murros em mim próprio, insultei-me do pior, obriguei-me a torturas inenarráveis, próprias de um Jack Bauer, mas nada disso fez regressar a Olivetti ao lar.

Nunca mais me perdoarei!

Quanto ao MUDE, vale a pena a visita, embora saiba a pouco.

Três Cantos – José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto

3cantosNo dia 26 de Novembro de 1971, tinha eu 18 anos, estive sentado na plateia do antigo cinema Roma e, com o coração exaltado, assisti í  emissão, ao vivo, do Programa Página Um, da Rádio Renascença.

Nessa emissão, foi feita a apresentação pública do primeiro disco de José Mário Branco, “Mudam-se os Tempos…”. O Página Um era um programa “revolucionário”, de José Manuel Nunes, onde passava música que mais nenhuma rádio transmitia. A apresentação do disco, sem a presença do seu autor, exilado em França, foi feita pelo jornalista Adelino Gomes que, mais tarde haveria de ser meu colega na redacção do Telejornal da RTP.

A música do José Mário Branco era diferente de tudo o que tinha ouvido antes, em português, entenda-se: os arranjos eram notáveis, as melodias complexas e simples, simultaneamente, as letras empenhadas politicamente. José Mário Branco tinha conseguido fazer algo de novo: um produto musical sofisticado e, ao mesmo tempo, revolucionário, no sentido político do termo.

Como em muitas outras coisas, a “luta” contra a ditadura unia pessoas com diferentes estilos e opções de vida. O 25 de Abril afastou-as. Nos primeiros anos, ainda me exaltei com algumas das músicas do José Mário Branco, compostas para o colectivo GAC, com o “Ser Solidário”, como o “FMI”, mas, a pouco e pouco, afastei-me.

No entanto, ontem, ao assistir, em dvd, ao concerto do Campo Pequeno, não pude deeixar de passar por muitos momentos de emoção, com um nó na garganta, sobretudo quando tentei acompanhar canções como “Mariazinha”, “Confederação” ou “Inquietação”.

No que respeita ao Sérgio Godinho, sempre acompanhei a sua carreira e sempre pensei que ele tem uma enorme capacidade para meter o Rossio na Betesga e acho que tem músicas notáveis, que vão ficar na história da música popular portuguesa, incluindo, mesmo, aquela do “tractor, trabalha a todo vapor”…

Também me emocionei, ontem, com “Maré Alta” e “Primeiro Dia”.

No que respeita a Fausto, a coisa é um pouco diferente. Nos anos 70, na sala de alunos da Faculdade de Medicina de Lisboa, assisti a um espectáculo em que ele cantou, mas em que a estrela foi, sem dúvida, Ary dos Santos, que pí´s aquela malta toda de pé a berrar “S.A.R.L! S.A.R.L.”

Para além de “Por este Rio Acima”, que é um grande disco, pouco conheço da carreira de Fausto.

O espectáculo captado no Campo Pequeno, para além da surpresa de juntar estes três figurões da música popular “revolucionária”, não tem mais nenhuma surpresa: os arranjos orquestrais e vocais são competentes, mas expectáveis, as versões das canções são o mais possível parecidas com os originais e o inédito é mais do mesmo.

No fundo, era isto que as pessoas queriam: o Zé Mário, o Sérgio e o Fausto o mais parecidos possível com o tempo em que tínhamos 18 anos!…