“O Quarto de Marte”, de Rachel Kushner (2018)

Rachel Kushner nasceu no Oregon em 1968 e mudou-se para San Francisco em 1979. É autora de três romances premiados: Telex from Cuba (2008), The Flamethrowers (2013) e este The Mars Room (2018), que fez parte da lista finalista do Man Booker Prize desse ano.

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O Quarto de Marte é um daqueles livros que se lê de uma penada e ficas com pena de ter acabado.

A protagonista da história é Romy Hall, que está presa e foi condenada a duas penas perpétuas consecutivas. Romy (que diz ter o mesmo nome que a actriz Romy Schneider) vai-nos contando as peripécias da prisão de Stanville e também os seus receios em relação ao filho Jackson, de 10 anos, que ficou com a avó, quando Romy foi presa, e ainda as suas recordações dos desvarios que cometeu em San Francisco.

Pelas suas palavras, ficamos a saber que Romy, como muitas outras pessoas, foi vítima das circunstâncias.

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O Quarto de Marte é o nome de uma casa de strip-tease, onde Romy trabalhou, e onde conheceu homens que, depois, a maltrataram e a quem ela aplicou o respectivo correctivo – imaginamos nós, porque o texto nunca refere explicitamente os crimes que ela terá cometido para ter sido condenada a duas prisões perpétuas.

Para além da história de Romy Hall, que percorre todo o livro, conhecemos ainda as histórias de outras personagens, como a de Bo Crawford.

Este pedaço tocou-me especialmente, porque já vou no terceiro Honda Civic consecutivo:

“Vena Hubbard, uma mulher que trabalhava na lavandaria da cadeia, convivera com Bo Crawford e apaixonara-se por ele. Ela começou a sonhar com uma nova vida. Isto veio a saber-se mais tarde, em relatos jornalísticos que procuravam narrar a quebra de segurança na cadeia. Vena e Bo tinham falado em fugir para o México, mas antes de se dirigirem para lá, o seu plano era fazerem uma paragem rápida em casa de Vena para matarem Mack, o marido desta. Depois rumariam í  fronteira no carro dela, um Honda Civic. Tinham mapas e as poupanças dela, assim como uma espingarda que pertencia a Mack, que levariam com eles depois de o matarem. (Gordon perguntou a si mesmo se uma espingarda caberia sequer dentro de um Honda Civic”).

Claro que cabe!

Aconselho.

“A Visita do Brutamontes”, de Jennifer Egan (2010)

Depois de ter lido A Praia de Manhattan, outro romance desta jovem escritora norte-americana, fiquei com curiosidade em ler este A Visita do Brutamontes, vencedor do Pulitzer de 2011.

Não me arrependi.

Este A Visit From the Goon Squad prende-nos do princípio ao fim e prima pela originalidade da escrita.

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Egan muda de estilo ao longo do livro, mantendo, no entanto, uma uniformidade a toda a prova (há até um capítulo em forma de Power Point).

O brutamontes aqui é o tempo, que passa pelas pessoas e que tudo muda. As principais personagens do livro são Bennie Salazar, um músico punk que, com a idade deixa de tocar e passa a produtor discográfico, e Sasha, uma sua assistente, cleptomaníaca e que acaba por ser despedida.

Cada capítulo do livro conta-nos uma pequena história, de certo modo relacionada com aquelas duas personagens, embora elas próprias só surjam em três dos treze capítulos.

A acção do romance decorre em Nova Iorque, San Francisco, Nápoles e algures em ífrica e aconselho vivamente a sua leitura.

“A Morte do Comendador”, Volume III, de Haruki Murakami (2017)

Quando terminei a leitura do primeiro volume de A Morte do Comendador, fiquei de pé atrás e escrevi: vou ler o segundo volume e depois digo alguma coisa…

Acabei ontem o segundo volume e posso dizer que não fiquei com o pé atrás – fiquei com os dois.

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Murakami, o aclamado escritor, é mesmo um escritor da moda e consegue publicar dois volumes de uma história inverosímil, que mistura realidade com o submundo da fantasia, só tolerável porque, sendo japonês, é assim uma espécie de “realismo fantástico” asiático.

Para além da banalidade das frases feitas, que já tinha notado, destaque para três tiques insuportáveis: a descrição minuciosa de coisas do dia-a-dia que, se no caso do norueguês Knausgard pode ser novidade, no caso deste japonês, é enfadonho; a igualmente minuciosa descrição das fatiotas que os personagens usam; e, finalmente, a obsessão pelos seios da Marie, a personagem de 13 anos, que tem o peito “liso como uma tábua”, mas que tem esperança que as mamas possam crescer e caber numa copa 3C (verídico!).

Um exemplo na página 184:

“Menshiki chegou í s onze e vinte. assim que ouvi o Jaguar, vesti o blusão de cabedal e fui ao seu encontro. ele saiu do carro com um corta-vento azul-escuro acolchoado, calças de ganga pretas justas e sapatos desportivos de pele. Tinha um lenço leve em volta do pescoço.”

Outro exemplo, na página 414:

“Já no fim da chamada, Marie confidenciou-me que o peito se tinha desenvolvido (…)
‘Ainda não estão completamente crescidos, mas para lá caminham – murmurou ela em jeito de confidência.”

Para já não falar nas personagens de cerca de 60 centímetros que saem de um quadro pintado a óleo e surgem como Ideias, arrastando o protagonista para o submundo, onde é preciso atravessar uma espécie de rio das Metáforas e para não falar sequer na possibilidade de o mesmo protagonista ter engravidado a ex-esposa durante um sonho.

Não há pachorra para estas japonisices

“Sabrina”, de Nick Drnaso (2018)

Nick Drnaso (1989, Palos Hills, Ilinois) é um autor de novelas gráficas norte-americano.

“Sabrina” conseguiu ser a primeira novela gráfica a ser nomeada para o Booker Prize.

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As críticas foram entusiásticas e unânimes e, por exemplo, Zaddie Smith (a escritora britânica de ascendência jamaicana) considera-a uma obra-prima, “maravilhosamente escrita e desenhada, possuindo todo o poder político da polémica e em simultâneo, toda a delicadeza da verdadeira grande arte.”

Confesso que não fiquei tão entusiasmado, depois de ler e ver as quase 200 páginas de “Sabrina”.

O fio da história é isso mesmo, um fio. Sabrina, que nós nunca chegamos a conhecer, desaparece e, mais tarde, ficamos a saber que foi assassinada.

O que o autor nos mostra são as reacções de amigos e familiares e como as suas vidas são alteradas pelo desaparecimento de Sabrina.

A história é contada em quadradinhos muito despojados, minimalistas; os desenhos são muito simples, geométricos e as figuras humanas têm poucas expressões faciais. Todos parecem tristes e deprimidos e é esse o tom geral da novela: tristeza e depressão.

Para quem, como eu, está habituado í  banda desenhada, digamos, clássica (do Astérix aos heróis da Marvel), este Nick Drnaso abriu uma nova porta, sem dúvida.

Mas, como romance, prefiro os que não têm bonecos…

“Grace”, de Margaret Atwood (1996)

Em 1843, no Canadá, Grace Marks, com apenas 16 anos, foi condenada pela participação no assassínio do seu patrão e da sua governante e amante. Depois de muita polémica, o Tribunal condenou í  morte por enforcamento o moço da estrebaria, que teria sido o assassino material de ambos e Grace, embora acusada de ter sido a instigadora e cúmplice, foi condenada a prisão perpétua, devido í  sua juventude.

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Margaret Atwood fez um trabalho exaustivo de investigação, estudando os jornais da época, livros e revistas, que mencionaram em abundância aqueles crimes, estudou, certamente, outras publicações contemporâneas, onde foi buscar informações sobre sessões espíritas, mesmerismo e hipnotismo, usos e costumes das criadas, o que elas usavam para tirar nódoas, como cozinhavam, o que faziam para corar roupas, etc – e como toda essa informação escreveu este romance muito interessante, quase todo na primeira pessoa, com a voz de Grace Marks.

Gostei muito do livro, não só pela linguagem coloquial da Grace Marks, mas também pela personagem do Dr. Jordan, um jovem psiquiatra, que se interessa pelo caso e que, através de entrevistas a Grace, tenta compreender a personalidade da alegada criminosa, í  luz das novas teorias psiquiátricas, quando o Freud ainda não tinha nascido…

Vale a pena ler.

“A Morte do Comendador”, de Haruki Murakami (2017)

Os livros de Murakami deixam-me ambivalente. Por um lado, a sua escrita simples, directa, quase coloquial, a sua capacidade para contar histórias, fazendo-as correr suavemente, como se fosse fácil, cativam-me – e a prova é que li este primeiro volume de uma penada.

Por outro lado, esta “mania” que Murakami tem de misturar a realidade com cenas do Outro Mundo, irrita-me um bocado.

Foi por isso que, depois de ler, de enfiada, Em Busca do Carneiro Selvagem, Kafka í  Beira-Mar , e A Rapariga que Inventou um Sonho, fiquei farto de Murakami por sete anos.

Recaí agora.

A Morte do Comendador conta-nos a história de um pintor retratista de 36 anos, recém divorciado, que se retira para as montanhas, para uma casa que pertenceu a outro pintor, já falecido. No sótão dessa casa descobre um quadro intitulado A Morte do Comendador.

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Entretanto, trava conhecimento com um homem muito rico e pinta o seu retrato. Durante a noite, ouve um sino e descobre que o som vem de uma espécie de cripta. Ele e o seu novo amigo conseguem escavar a tal cripta e, aparentemente, está vazia mas, dias depois, o pintor é visitado por um ser do Além, vestido como o comendador do quadro.

Estão a ver por que me irrito com Murakami?…

Quanto í s frases feitas, são í  pazada. Por exemplo, só nas páginas 122 e 123, encontrei: insistir na tecla, nunca as vira mais gordas, como tínhamos vindo ao mundo, estás mortinho por saber, vender o seu peixe.

E no entanto… e no entanto, vou ler o segundo volume e depois digo alguma coisa…

“A História de uma Serva”, de Margaret Atwood (1985)

Só agora me dispus a ler este romance de Margaret Atwood (Otawa, Canadá, 1939), escritora sobejamente conhecida, com inúmeras obras publicadas, entre elas, O Assassino Cego (Booker Prize de 2000).

—E só agora o decidi ler porque, mais de trinta anos depois da sua publicação, a sua autora decidiu escrever um segundo livro, que deverá ser uma espécie de continuação do primeiro, e esse facto foi largamente noticiado e acabou por me despertar a curiosidade.

Confesso que o livro não me entusiasmou por aí além. No que respeita a distopias, O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1931) e 1984, de George Orwell (1949), estabeleceram níveis difíceis de atingir, muito menos de superar.

No entanto, a história que Atwood inventou está bem urdida e deixa-nos alguma água na boca, na medida em que muita coisa é sugerida, mas pouca coisa é revelada. Por exemplo, como é que os Estados Unidos se transformaram naquela bizarra República de Gileade, onde ficam as colónias, terá havido uma catástrofe nuclear, etc.

—O mais curioso do livro acaba por ser a “semelhança” entre essa República de Gileade e a actual administração de Donald Trump. E coloco muitas aspas na semelhança, evidentemente. No entanto, o puritanismo evangélico, um certo desprezo pelas mulheres, a crença na supremacia dos brancos – tudo isso cheira í  América de Trump.

No fundo, Margaret Atwood inventou uma espécie de Daesh cristão, décadas antes do próprio Daesh.

Vale a pena ler, quanto mais não seja para podermos ler a sua sequela, a editar já este ano.

“A Praia de Manhattan”, de Jennifer Egan (2017)

—Jennifer Egan (Chicago, 1962) ganhou o Prémio Pulitzer de 2011 com o romance A Visita do Brutamontes (está ali na prateleira para ler) e com este A Praia de Manhattan parece ter-se afirmado como uma das mais importantes escritoras norte-americanas da actualidade.

A acção deste novo livro de Egan passa-se nos anos 40 do século passado, durante a Segunda Grande Guerra e a protagonista, Anna, percorre todo o livro, desde os tempos em que, ainda criança, acompanha o pai nas suas visitas a dirigentes sindicais do Porto de Nova Iorque mais ou menos relacionados com as máfias irlandesa e italiana, até í  sua mudança para a Califórnia, por motivos de força maior, que só a leitura deste excelente livro revelará.

—O pai de Anna vai desaparecer de cena, assim como a sua irmã deficiente, e até a sua mãe, ex-bailarina, e Anna, sozinha, acaba por arranjar trabalho no Porto, como soldadora e, pouco depois, torna-se uma das primeiras mulheres a mergulhar com escafandro.

Para além de uma história muito rica de peripécias, em que as personagens são consistentes e credíveis, o principal destaque deste livro vai para a narrativa verdadeiramente cinematográfica. Com efeito, ao lermos o livro, estamos a “ver” as cenas num écran.

Não me admira nada que este livro seja, em breve, adaptado ao cinema, como já aconteceu com outro romance de Jennifer Egan, O Circo Invisível (2014).

Recomendo.

Edição Quetzal, tradução de Vasco Teles de Menezes.

“A Sucessão”, de Jean-Paul Dubois (2016)

Jean-Paul Dubois (Toulouse, 1950) é um discreto escritor francês que, apesar de já ter quinze romances publicados, continua muito pouco conhecido e do qual pouco se sabe, por culpa dele —próprio que, pelos vistos, não gosta de propaganda. Terá tido estudos de sociologia, terá sido jornalista, com reportagens publicadas, por exemplo, no Nouvel Observateur.

Este romance, A Sucessão, foi finalista do Prémio Goncourt de 2016 e em boa hora o adquiri e o li com muito agrado. Ao contrário de lixo que anda por aí, este discreto livro é um dos melhores que li nos últimos tempos.

Conta-nos a história de Paul Katrakilis, um médico francês que prefere a pelota basca í  medicina, sendo jogador profissional em Miami, onde foi feliz feliz.

Paul provém de uma família, no mínimo, estranha: o aví´ terá sido médico de Estaline e suicidou-se; o pai, também médico, suicidou-se; a mãe e o tio, irmão da mãe, ambos relojoeiros, além de terem vivido mais ou menos em incesto, também se suicidaram.

—Talvez por tudo isso, Paul fugiu de França e da medicina, encontrando a felicidade na pelota basca e em Miami.

Mas a história de Paul é também sobre o amor impossível, com uma norueguesa 26 anos mais velha, sobre a solidão e sobre a eutanásia.

Sobre essa paixão impossível, escreve Dubois:

“Estava na ordem das coisas, pois essa Ingvild Lunde encarnava mais ou menos tudo o que um homem pode sonhar desde a adolescência, ou seja, um ser simbiótico que tinha simultaneamente o tamanho do pai e o corpo da mãe.”

Paul acaba por regressar í s origens e enfrentar os fantasmas de uma história familiar muito pesada.

E depois de deixar o desporto e voltar í  medicina, Paul debate-se com a monotonia das queixas dos doentes (e como eu o compreendo…):

«”É aqui, doutor, que está o mal. Sinto guinadas de dor. Sobretudo quando como alface e tomate. O resto do tempo? Estou bem” Palpações, perguntas sobre o trânsito intestinal, fazer exercício, síndrome do cólon irritável, não se preocupar, e também, porque não, deixar de comer alface e tomate durante um tempo. A mãe dele poderia ter dito a mesma coisa.»

E ainda:

“E havia o consultório, o telefone a tocar, todas essas pessoas que entravam e saíam da minha casa, que batiam com as portas. Eram a minha família numerosa. Contavam-me a vida delas, que muitas vezes era tão triste como a minha, falavam-me das fezes dos seus bebés, do seu herpes genital, da mulher que os punha malucos, do marido que só pensava naquilo. O resto do tempo, doía-lhes aqui. Não, doutor, um pouco mais acima. Sim, aqui, exactamente.”

Aconselho vivamente.

Edição Sextante, com tradução de Joana Cabral.

“Um Artista do Mundo Flutuante”, de Kazuo Ishiguro (1986)

Muito curioso este romance do Prémio Nobel de 2017.

—Conhecido, sobretudo, pela obra Os Despojos do Dia, com a qual ganhou o Man Booker Prize de 1989, Kazuo Ishiguro (Nagasaki, Japão, 1954), conta-nos a história de um pintor profissional, especialista em pinturas do chamado mundo flutuante, o mundo das gueixas e dos locais de diversão nocturna, muito em voga no Japão de antes da 2ª Grande Guerra.

Ono é um pintor na reforma, viúvo e com duas filhas adultas; perdeu o filho na guerra e a mulher, num bombardeamento.

—Antes da guerra, Ono era um defensor do Japão antigo, imperial, estanque í s influências ocidentais. Foi com esse espírito que apoiou a entrada do país na guerra.

No entanto, com a derrota e rendição do Japão, Ono vê o seu país, as suas filhas, os seus genros e até o seu único neto, de 8 anos, cada vez mais adeptos de um novo país, virado para o exterior, adoptando, de certo modo, o american way of life, embora com algumas diferenças. Até o seu neto elege como heróis Popeye e outros personagens da banda desenhada norte-americana.

A filha mais nova está preste a casar-se mas Ono teme que o seu passado possa influenciar as negociações para o casamento – até porque o Japão pode estar a ocidentalizar-se, mas ainda continua com tiques do passado, nomeadamente no que respeita ao modo como os casamentos são negociados entre as famílias dos noivos, com recurso a detectives que pesquisam a existência de “podres” no passado das ditas famílias.

A acção do livro decorre entre 1948 e 1950 e a narrativa é comovente.

Vale a pena ler.