“Encruzilhadas”, de Jonathan Franzen (2021)

Franzen é, actualmente, um dos maiores escritores norte-americanos e, pelos vistos, é especialista em escrever “…tijolos”.

Já tinha lido Liberdade (684 páginas) e Purity (694 páginas); este Encruzilhadas conta com 677 páginas.

Na contracapa deste livro pode ler-se que “…os romances de Jonathan Franzen são célebres pelas personagens inesquecivelmente vigorosas e pela sua perspicaz visão da América contemporânea.”

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Estou de acordo, e é talvez isso o único defeito dos seus romances, o serem demasiado americanos.

Neste Encruzilhadas, cuja acção decorre num curto período entre 1971 e 72, conhecemos a família Hildebrandt. Russel é um pastor menonita numa igreja nos subúrbios de Chicago; o seu casamento com Marion está num marasmo; ela engordou e deixou de lhe despertar desejo sexual. Entretanto, na paróquia, surgiu uma viúva jovem por quem Russel perde a cabeça. Marion tem, no entanto, um passado bem curioso, que sempre ocultou ao marido, nomeadamente, um internamento por crise psicótica. O casal tem quatro filhos. O mais velho, Clem, pretende oferecer-se como voluntário para o Vietname: Becky é a estrela do liceu; Perry, com 14 anos, é toxicodependente; Judson tem apenas 9 anos e quase não conta para a história.

Todas estas personagens travam as suas lutas individuais tendo a religião como pano de fundo.

Cada capítulo é dedicado a uma destas personagens e, depois de um começo um pouco complicado, embrenhamo-nos na história e é difícil parar de ler.

Festejos na Aldeia

A típica localidade de Oliveira de Padres comemorava o centenário da sua elevação a vila. Largo engalando com bandeirinhas e balões, a banda da colectividade, muita gente, aos magotes, o costume…

O presidente da Câmara subiu ao estrado e preparou-se para o discurso de abertura. As pessoas fizeram silêncio. A banda tocou os primeiros acordes do hino nacional ““ mas só os primeiros acordes porque o programa das festividades já estava atrasadíssimo.

E o presidente começou:

“…Outrora, a nossa vila…”

Lá do meio da malta, o Zé Gonçalves perguntou: “…O que quer dizer outrora?”

“…Antigamente…” ““ respondeu o presidente, e prosseguiu: “…Outrora, a nossa vila não passava de uma pequena e singela aldeia…”

O Mário Cunha, encostado a um candeeiro público, perguntou: “…O que é isso de singela, ó sr. Presidente?”

Já contrariado, o presidente explicou: “…singela quer dizer simples, bolas! Sempre a interromperam! Dizia eu que foi graças ao esforço tenaz dos seus habitantes…”

O Zé Gonçalves voltou í  carga: “…Tenaz?! Que quer isso dizer?!”

Tentando manter a calma, o presidente respondeu: “…Tenaz quer dizer persistente, continuado, sem parar…”

“…í€ fossanga, não é?” ““ exclamou o Mário Cunha.

“…Pronto, está bem, í  fossanga!” ““ condescendeu o presidente, e tentou prosseguir: “…No entanto, esse trabalho tenaz, isto é, í  fossanga, dos nossos habitantes, os nossos vindouros…”

“…Vim quê?!” ““ grunhiu o Zé Gonçalves.

Descontrolado, o presidente da Câmara atirou com os papéis do discurso ao ar e gritou: “…Acabou-se a conversa! Vamos aos copos e í s febras!”

Foi muito aplaudido e toda a gente se atirou aos comes e aos bebes, servidos com esmero no adro da igreja.

Entre um golo de vinho e uma dentada no pão, o Zé Gonçalves comentava: “…O sr. Presidente da Câmara estava hoje muito eloquente!…”

“…É verdade…” ““ concordava o Mário Cunha ““ “…e loquaz também…eu ultimamente ele tem demonstrado comportamentos bizarros…”

“…É o stress que o alto cargo que ocupa lhe provoca, na minha modesta opinião de leigo…” ““ concluiu o Zé Gonçalves, escorropichando o copo de vinho.

– Programa Pão com Manteiga de 13/2/1983, revista nº 21, agosto 1983 e adaptado pela ACERT ““ Associação Cultural e Recreativa de Tondela Trigo Limpo

“Histórias de Cronópios e de Famas”, de Julio Cortázar (1962)

Quando, em 1975, comprei “…Todos os Fogos o Fogo”, de Cortázar, este livrinho que agora a Cavalo de Ferro decidiu reeditar, escapou-me.

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O livro está dividido em quatro partes: a primeira parte chama-se “…Manual de Instruções” e inclui, por exemplo, Instruções para Chorar, Instruções para Cantar, Instruções para matar formigas em Roma e outras.

A segunda parte tem o título “…Ocupações Particulares”, onde Cortázar falar da sua enorme família e de como ela se comporta para caçar jaguares ou em velórios, para além de outras ocupações particulares.

A terceira parte, chamada, “…Material Plástico”, reúne pequenos contos, como este, intitulado “…Progresso e Retrocesso”:

“…Inventaram um vidro que deixava passar as moscas. A mosca vinha, empurrava um pouco com a cabeça, e pof!, já estava do outro lado.

Alegria enorme da mosca.

Foi tudo destruído por um sábio húngaro ao descobrir que a mosca podia entrar mas não sair, ou vice-versa, por causa de um defeito qualquer na flexibilidade das fibras desse vidro, que era muito fibroso. Em seguida inventaram o cata-moscas com um torrão de açúcar no interior, e muitas moscas morriam desesperadas. Assim acabou qualquer hipótese de confraternização com estes animais dignos de melhor sorte.”

Finalmente, a quarta parte reúne as “…Histórias de Cronópios e de Famas”. São seres imaginários e, juntamente com os esperanças, formam um conjunto surrealista inventado por Cortázar. Por exemplo, “…Conservação das Recordações”:

“…Para conservarem as suas recordações, os famas embalsamam-nas da seguinte forma: depois de fixada a recordação com todos os pormenores, envolvem-na dos pés í  cabeça num lençol preto e encostam-na de pé contra a parede da sala, com um pequeno cartão que diz: «Excursão a Quilmes» ou «Frank Sinatra».

Os cronópios, em contrapartida, esses seres desarrumados e mornos, deixam as recordações í  solta pela casa, a gritar alegremente, andam entre elas e quando uma passa a correr acariciam-na suavemente e dizem: «não te magoes» ou «cuidado com os degraus». (…)” Não há dúvida que é um livro diferente e penso que já ninguém escreve assim… e é pena…

Outros livros de Cortázar: Um Certo Lucas; O Jogo do Mundo;

Redação: A faca

A faca dá-nos o leite, o queijo e a manteiga. Eu gosto muito das facas. Na quinta do meu afí´ há três facas que estão no curral e quando lá fou passar as vérias, gosto muito de mugir as facas. Depois, lefo o leite í  minha afó Firgínia, que o aquece no vogão. É preciso ter cuidado quando se aquece o leite porque se ele verfe, deita por vora. A faca, quando está zangada, marra com duas coisas que tem em cima da cabeça e que são os cornos e que o meu pai também parece que tem e í s fezes até lhe doem í  brafa que ele tem que tomar um comprimido. Quando as facas são muitas chamam-se manada e quando são poucas, chamam-se só poucas facas. Quando ví´r crescido não quero ser faca porque senão tinha que vicar vechado no curral e não podia brincar í s escondidas e í  apanhada. ““ in Pão com Manteiga, 24 outubro 1982

“Contos de Odessa”, de Isaac Babel

Muito oportuna esta edição da Relógio de ígua. Numa altura em que a Ucrânia, e nomeadamente Odessa, estão permanentemente nas notícias, pelas piores razões, o lançamento destes Contos de Odessa dão uma ideia de como seria a vida nessa cidade, nos primeiros anos do século 20.

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Isaac Babel nasceu em 1894, em Odessa, e terá morrido em 1940, num Gulag, í s mãos do KGB ““ quer isto dizer que foi contemporâneo do domínio russo dos czares e, depois, dos bolcheviques.

A imagem que transparece de Odessa, nestes contos, é de uma cidade violenta, a que chamam a Marselha do Mar Negro, em que digladiam gangues, contrabandistas, malfeitores, ladrões e bêbados, judeus e gentios.

O livro é traduzido do russo por Nailia Baldé e a linguagem de Babel é muito peculiar. Os assaltantes do bairro de Moldavanka têm em Bênia Krik o seu chefe, conhecido como o Rei. Logo no primeiro conto, estamos no casamento do Rei:

“…Os convidados sentaram-se í  mesa sem respeitarem idades. Uma velhice tola não é menos tolerável do que uma juventude cobarde. Também não respeitaram as fortunas. O forro de uma bolsa bem recheada é feito de lágrimas.”

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Ao longo dos oito contos deste pequeno livro, vamos conhecendo muitas figuras deste bairro de Moldavanka, como, por exemplo, Liovka.

“…Um dia, Liovka, o mais novo dos Krik, conheceu Tabl, a filha de Liubka. Em russo, Tabl significa pombinha. Ele viu-a e desapareceu de casa por três dias. Ficava deliciado com o pó das calçadas desconhecidas e com os gerânios nas janelas alheias. Passados três dias, Liovka voltou para casa e encontrou o pai no jardim. O velho estava a cear. Madame Gorobtchik estava sentada ao lado do marido e olhava em redor como uma assassina.”

Um livro muito curioso.

Consulta médica

A ““ Doutor, tem que me ajudar!

B ““ Diga lá! Parece muito aflito!

A ““ E estou! Veja lá que, de há uns tempos para cá, quando como, sinto um PLUNK no coração e fico assustadíssimo!

B ““ Um PLUNK? Refere-se a um PLUNK isolado ou a um PLUNK precedido de um SPLASH?

A ““ Bom… isso depende da comida. Por exemplo, se como um bom bife de vaca, costume sentir um PLUNK logo seguido de um FENK, por vezes intervalados por um SPLASH agudo.

B ““ Estou a ver… e esse PLUNK SPLASH FENK não varia com a bebida?

A ““ Claro que varia, doutor. Se bebo cerveja, o SPLASH é mais grave e o FENK é substituído por uma espécie de BLURP-ZINK.

B ““ Portanto, trata-se, nesse caso, de um PLUNK SPLASH BLURP-ZINK…

A ““ Exacto. Mas se acompanhar o bife com vinho, o PLUNK desaparece, mas, em compensação, surge um FINK-TANG que me aflige imenso, sobretudo porque, entre o SPLASH e o BLURP-ZINK interpõe-se um BLIP-BLIP irritante!

B ““ Curioso… muito curioso… já tenho visto doentes com PRUNG BLIP-BLURP SPLASH POING, mas o senhor é o primeiro que me surge com FINK-TANG SPLASH BLIP-BLIP BLURP-ZINK.

A ““ Então, doutor… o que me aconselha?

B ““ Só vejo uma solução: BANG!

  • in Pão com Manteiga no Contra-Ataque, 24 abril 1982

Historinhas

* Era uma vez um homem com mau feitio.
Tinha tão mau feitio que os fatos lhe assentavam bem.
Um dia conheceu um alfaiate compreensivo.
Viveram felizes para sempre.

* Era outra vez um homem perante o qual todos ficavam de boca aberta.
Não que fosse muito belo ou terrivelmente feio.
Não que o seu porte fosse majestoso ou a sua figura ridícula.
Não que usasse roupas estranhas ou óculos na boca.
Simplesmente, perante ele, todos ficavam de boca aberta.
Era dentista.

* Era uma vez dois amigos muito amigos.
Certo dia, encontraram-se e fizeram uma combinação.
No dia seguinte, fizeram um saiote.
Um ano depois tinham uma excelente fábrica de lingerie.
* Estamos aqui para homenagear o nosso colega Rebelo.
Vamos homenageá-lo pela sua brilhante conduta durante todos estes anos ao serviço da nossa empresa.
Ele, que de tudo se privou, que se humilhou, que se deu de alma e coração í  tarefa que desempenhava.
Ele, Rebelo, empregado dedicado, merece a nossa homenagem.
Foi ontem, enquanto trabalhava com o frenesim habitual, que um ataque cardíaco levou o nosso colega para uma vida melhor.
Rebelo levantou-se da assistência, comovido e disse, com a voz embargada pela emoção:
– Parece que está equivocado, sr. Administrador… eu estou aqui…vivo…
Incomodado, o administrador deu-lhe um tiro certeiro e a sessão de homenagem prosseguiu, conforme o previsto.

* Era de noite.
No inverno.
Chovia.
O vento uivava de vez em quando.
Enfim, aqueles condimentos do costume, vocês sabem…
O Carlinhos não queria comer a sopa.
Também era habitual.
Nos dias em que o pai ia fazer serão, sentia-se mais livre e dava-se ao luxo de desobedecer í  mãe.
A mãe insistia. Ralhava. Prometia. Ameaçava. Que vinha o homem do saco e que o levava! O Carlinhos não acreditava. Que viesse!
E não é que veio mesmo?
Era o sr. João, carteiro da área. Pousou o saco da correspondência no hall de entrada e meteu-se no quarto com a mãe.
Quando o pai voltou mais cedo do serão e descarregou a pistola nos miolos dos adúlteros, o Carlinhos não percebeu.
Pois de foi ele que não quis comer a sopa…

  • in Pão com Manteiga no Contra-Ataque, 17 de abril 1982

Sansões e dalilas

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A União Europeia esteve reunida para decidir o sexto pacote de sanções a aplicar í  Rússia.

Já vão no sexto pacote, mas o essencial fica sempre de fora, isto é, deixar de importar petróleo e gás russos. Esta seria a sanção verdadeiramente importante, já que a União Europeia paga cerca de 260 milhões de euros por dia ao sr. Putin.

Mas alguns membros da EU não concordam com essa sanção, nomeadamente o sr. Orban, da Hungria.

Sendo assim, a União Europeia, não conseguindo impor sansões, fica-se pela dalilas.

“Um Certo Lucas”, de Julio Cortázar (1979)

Nos anos 70 do século passado, Julio Cortázar (1914-1984) foi um dos meus escritores de culto. Nesses anos, andava a descobrir os escritores sul-americanos e, de certo modo, a escrita mais ou menos surrealista. Cortázar foi um deles e devorei livros como “…Blow-up e Outras Histórias” (Edição Europa-América, lido em janeiro de 1978), “…Bestiário” (Publicações Dom Quixote, lido em novembro de 1978) e “…Todos os Fogos o Fogo” (Estampa, lido em junho de 1975).

Depois, Cortázar esfumou-se das edições portuguesas, ou assim me pareceu. Mais recentemente, a Cavalo de Ferro decidiu, e bem, publicar Cortázar, nomeadamente, “…A Volta ao Dia em 80 Mundos” e “…O Jogo do Mundo (Rayuela)” ““ e agora, este “…Um Certo Lucas”.

Trata-se de um pequeno livro com textos curtos; não se pode dizer que são contos, mas alguns são isso mesmo; outros são pequenas reflexões sobre tudo e sobre nada.

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Na página 29, Lucas está numa sala de concertos, enquanto um pianista toca muito mal Katchaturian. Lucas

“…í  procura de qualquer coisa no chão entre as cadeiras da plateia e apalpando tudo em seu redor.

– O senhor perdeu alguma coisa? ““ perguntou a senhoras entre cujos tornozelos proliferavam os dedos de Lucas.

– A música, minha senhora.”

Mais í  frente, Lucas medita sobre a ecologia e diz:

“…Nesta época de regresso descontrolado e turístico í  natureza, em que os cidadãos olham para a vida no campo como Rousseau olhava para o bom selvagem, solidarizo-me mais do que nunca com: a) Max Jacob que, em resposta a um convite para passar um fim-de-semana no campo, disse meio estupefacto meio assustado «No campo, nesse lugar onde os frangos passeiam crus?»”

Lucas sente pudor sempre que, numa qualquer reunião com amigos, tem vontade de ir í  casa de banho.

“…É inútil a multiplicação de silenciadores, como envolver a zona das coxas em todas as toalhas ao seu alcance e até mesmo as toalhas de banho dos donos da casa; praticamente sempre, depois daquilo que poderia ter sido uma agradável transferência, o peido final irrompe tumultuoso.

(…) isto é muito diferente, pensa Lucas, da simplicidade das crianças que interrompem a melhor das reuniões anunciando: Mamã, quero fazer cocó. Abençoado, pensa Lucas sem seguida, o peta anónimo que compí´s aquela quadra na qual se proclama que não há prazer mais requintado/do que um cagar vagaroso/ nem prazer mais delicado/ que depois de ter cagado.”

Aconselho.