“Histórias de Cronópios e de Famas”, de Julio Cortázar (1962)

Quando, em 1975, comprei “…Todos os Fogos o Fogo”, de Cortázar, este livrinho que agora a Cavalo de Ferro decidiu reeditar, escapou-me.

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O livro está dividido em quatro partes: a primeira parte chama-se “…Manual de Instruções” e inclui, por exemplo, Instruções para Chorar, Instruções para Cantar, Instruções para matar formigas em Roma e outras.

A segunda parte tem o título “…Ocupações Particulares”, onde Cortázar falar da sua enorme família e de como ela se comporta para caçar jaguares ou em velórios, para além de outras ocupações particulares.

A terceira parte, chamada, “…Material Plástico”, reúne pequenos contos, como este, intitulado “…Progresso e Retrocesso”:

“…Inventaram um vidro que deixava passar as moscas. A mosca vinha, empurrava um pouco com a cabeça, e pof!, já estava do outro lado.

Alegria enorme da mosca.

Foi tudo destruído por um sábio húngaro ao descobrir que a mosca podia entrar mas não sair, ou vice-versa, por causa de um defeito qualquer na flexibilidade das fibras desse vidro, que era muito fibroso. Em seguida inventaram o cata-moscas com um torrão de açúcar no interior, e muitas moscas morriam desesperadas. Assim acabou qualquer hipótese de confraternização com estes animais dignos de melhor sorte.”

Finalmente, a quarta parte reúne as “…Histórias de Cronópios e de Famas”. São seres imaginários e, juntamente com os esperanças, formam um conjunto surrealista inventado por Cortázar. Por exemplo, “…Conservação das Recordações”:

“…Para conservarem as suas recordações, os famas embalsamam-nas da seguinte forma: depois de fixada a recordação com todos os pormenores, envolvem-na dos pés í  cabeça num lençol preto e encostam-na de pé contra a parede da sala, com um pequeno cartão que diz: «Excursão a Quilmes» ou «Frank Sinatra».

Os cronópios, em contrapartida, esses seres desarrumados e mornos, deixam as recordações í  solta pela casa, a gritar alegremente, andam entre elas e quando uma passa a correr acariciam-na suavemente e dizem: «não te magoes» ou «cuidado com os degraus». (…)” Não há dúvida que é um livro diferente e penso que já ninguém escreve assim… e é pena…

Outros livros de Cortázar: Um Certo Lucas; O Jogo do Mundo;

“Um Certo Lucas”, de Julio Cortázar (1979)

Nos anos 70 do século passado, Julio Cortázar (1914-1984) foi um dos meus escritores de culto. Nesses anos, andava a descobrir os escritores sul-americanos e, de certo modo, a escrita mais ou menos surrealista. Cortázar foi um deles e devorei livros como “…Blow-up e Outras Histórias” (Edição Europa-América, lido em janeiro de 1978), “…Bestiário” (Publicações Dom Quixote, lido em novembro de 1978) e “…Todos os Fogos o Fogo” (Estampa, lido em junho de 1975).

Depois, Cortázar esfumou-se das edições portuguesas, ou assim me pareceu. Mais recentemente, a Cavalo de Ferro decidiu, e bem, publicar Cortázar, nomeadamente, “…A Volta ao Dia em 80 Mundos” e “…O Jogo do Mundo (Rayuela)” ““ e agora, este “…Um Certo Lucas”.

Trata-se de um pequeno livro com textos curtos; não se pode dizer que são contos, mas alguns são isso mesmo; outros são pequenas reflexões sobre tudo e sobre nada.

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Na página 29, Lucas está numa sala de concertos, enquanto um pianista toca muito mal Katchaturian. Lucas

“…í  procura de qualquer coisa no chão entre as cadeiras da plateia e apalpando tudo em seu redor.

– O senhor perdeu alguma coisa? ““ perguntou a senhoras entre cujos tornozelos proliferavam os dedos de Lucas.

– A música, minha senhora.”

Mais í  frente, Lucas medita sobre a ecologia e diz:

“…Nesta época de regresso descontrolado e turístico í  natureza, em que os cidadãos olham para a vida no campo como Rousseau olhava para o bom selvagem, solidarizo-me mais do que nunca com: a) Max Jacob que, em resposta a um convite para passar um fim-de-semana no campo, disse meio estupefacto meio assustado «No campo, nesse lugar onde os frangos passeiam crus?»”

Lucas sente pudor sempre que, numa qualquer reunião com amigos, tem vontade de ir í  casa de banho.

“…É inútil a multiplicação de silenciadores, como envolver a zona das coxas em todas as toalhas ao seu alcance e até mesmo as toalhas de banho dos donos da casa; praticamente sempre, depois daquilo que poderia ter sido uma agradável transferência, o peido final irrompe tumultuoso.

(…) isto é muito diferente, pensa Lucas, da simplicidade das crianças que interrompem a melhor das reuniões anunciando: Mamã, quero fazer cocó. Abençoado, pensa Lucas sem seguida, o peta anónimo que compí´s aquela quadra na qual se proclama que não há prazer mais requintado/do que um cagar vagaroso/ nem prazer mais delicado/ que depois de ter cagado.”

Aconselho.

“O Jogo do Mundo (Rayuela)”, de Julio Cortázar (1963)

Nos anos 70 do século passado, o escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984), foi um dos meus preferidos.

Foi entre 1975 e 1978 que li Todos os Fogos o Fogo (1966), Bestiário (1951) e Blow-up e Outras Histórias (título original: Las Armas Secretas, 1959).

Eram livros de contos, onde Cortázar misturava realidade com fantasia, í  boa maneira de outros autores latino-americanos, como Garcia Marquez, mas com um cunho político mais marcado.

rayuelaNo entanto, a principal obra de Cortazár, só em 2008 viu a luz  do dia em Portugal, graças í  Cavalo de Ferro (tradução de Alberto Simões). Trata-se de Rayuela, com o incompreensível título em português de O Jogo do Mundo.

Com efeito, rayuela é o nome castelhano para o conhecido jogo da macaca e, caso não se quisesse optar por esses título em português, mais valia manter o título original.

Rayuela é um calhamaço de mais de 600 páginas e o próprio autor diz, logo no início, que não é preciso ler todos os capítulos. Cortázar dá-nos duas opções: ou lemos o livro da forma tradicional, capítulo a capítulo e, chegando ao fim do capítulo 56, por volta da página 400, «onde se encontrarão três vistosas estrelas que correspondem í  palavra FIM», podemos parar – ou começamos no capítulo 73 e vamos, depois, seguindo uma sequência determinada (no fim de cada capítulo, indica-se qual o capítulo que deve ser lido a seguir).

Optei pela forma tradicional de leitura e confesso que tive alguma dificuldade em ultrapassar algumas páginas.

A história tem duas partes, uma passada em Paris, outra em Buenos Aires. O único personagem comum é Horácio Oliveira, um argentino que vive em Paris durante algum tempo e depois regressa í  sua terra. Há também uma personagem feminina que, em Paris se chama Maga e é uruguaia e em Buenos Aires se chama Tanita; no fundo, são a mesma pessoa, não sendo.

Li algures que a escrita de Rayuela teria sido influenciada pelos livros torrenciais de Henry Miller, que também viveu em Paris durante alguns anos, escrevendo Nexus, Plexus, Sexus e os Trópicos de Cancer e Capricórnio.

Não estou de acordo.

Embora haja alguns pontos de contacto: a prosa avassaladora, a referência constante a escritores, pintores, músicos, etc, o surrealismo de algumas cenas fez-me lembrar, sobretudo, as obras de Boris Vian.

Alguns parágrafos são tão longos que é difícil lê-los de uma assentada.

Um pequeno exemplo:

«Apenas dessa vez, hipnotizado como um matador mítico para quem matar é devolver o touro ao mar e o mar ao céu, Oliveira humilhou a Maga durante uma longa noite da qual pouco falaram depois, fê-la Pasífae, virou-a e usou-a como um adolescente, explorou-a e exigiu dela a servidão da puta mais triste, elevou-a a constelação, teve-a entre os seus braços a cheirar a sangue, fê-la beber o sémen que corre pela boca como o desafio do Logos, sorveu a sombra do seu ventre e da sua anca, levando-lhe í  cara para untá-la de si mesma, parte última do conhecimento que só um homem pode dar a uma mulher, encheu-a de pele, cabelo, saliva e queixas, esvaziou-a até ao fim da sua magnífica força…» (etc…)

Os jogos de palavras e o gozo das palavras são, por vezes, um fim em si mesmos.

Um exemplo:

«Foi procurar o Dicionário da Real Academia Espanhola, onde a palavra real fora determinantemente destruída a golpes de canivete, e abriu-o ao acaso, preparando a seguinte tirada para Manu:

“Cansado do cliente e dos seus cleonasmos, clausuraram-lhe a clavícula e o clítio, fazendo-o claudicar com algum cloridrato. Em seguida, aplicaram-lhe um clister clínico na cloaca, o que fez com que eclodisse uma clivagem de tão clivosa ascensão de água mesclada com cloro. Só então o cliente se declarou um clérigo claustrofóbico”».

Não foi nada fácil ler este calhamaço, xiça!