Portugueses passam férias na estrada

Notícia do Diário de Notícias de hoje: «a ida para férias dos portugueses que procuraram o Algarve entupiu ontem a A2. a BT da GNR dava conta de trânsito muito congestionado após a hora de almoço, quase a passo, entre Marateca e Alcácer do Sal»

Primeira página do Diário de Notícias, também de hoje: «Algarve em crise – nem os parques de campismo resistem í  quebra de turistas».

E, lá dentro, na página 38: «Campismo com quebras de ocupação superiores a 10%», e ainda, no que respeita a hotéis e empreendimentos turísticos: «Quebra é inferior a 10% e há hotéis a mudar preços várias vezes ao dia».

Em resumo: se os parques de campismo, hotéis e empreendimentos turísticos algarvios estão quase í s moscas e a auto-estrada para o Algarve estava, ontem, a abarrotar, temos que chegar í  conclusão que os portugueses estão a passar as férias na estrada.

Os filmes que saem nos jornais

Desde há algum tempo que, ao comprares um jornal, te arriscas a trazer para casa um serviço de chá para quatro pessoas, um faqueiro em prata, uma colecção de santos para pendurar em pulseiras ou colares, sacos para guardares o lixo reciclável, toalhas para a praia, cromos da bola, livros e filmes em dvd.

Filmes em dvd é a oferta mais popular. Desde o Diário de Notícias í  Visão, da Volta ao Mundo ao Expresso, não há periódico que não te ofereça um dvd qualquer. Se tiveres o “azar” de seres daqueles que, como eu, são viciados em jornais e revistas, sem dares por isso, acabas com uma pilha de dvd na prateleira da sala e, das duas, uma: ou ignoras e vais aumentando a pilha, ou te irritas e deitas tudo fora, ou decides ver alguns daqueles filmes. Afinal, é das duas, três…

E foram três os dvd que vi, esta semana, com o objectivo confesso de fazer diminuir a tal pilha.

“Bitter Moon”, de Roman Polanski

—O tarado do Polanski fez este filme em 1992, mas parece que foi feito vinte anos antes. É um filme que cheira a mofo – e não pelo facto de eu só agora o ter visto. A história do filme cheira a libertinos parisienses dos anos 50 e parece deslocada nos anos 90, quanto mais hoje em dia.

Peter Coyote é um candidato a escritor que, graças a uma herança, vai viver para Paris, onde, como toda a gente sabe, é onde está a Cultura. Durante não sei quantos anos, não faz nada se não escrever umas histórias que ninguém lê, fumar que nem um desalmado, apanhar grandes bebedeiras e foder com toda as miúdas que se cruzam com ele. Até que conhece Mimi (Emmanuelle Seigner), uma empregada de bar que estuda dança moderna numa escola nocturna e que fode que nem uma maluca, entregando-se a todos os tipos de jogos sexuais, sado-masoquismo incluindo. Enfim, a história do costume. O lugar comum. Henry Miller escreveu tudo o que havia a escrever sobre isto.

O americano e a francesa, depois de várias peripécias, acabam num cruzeiro, onde encontram um casal de ingleses, casados há sete anos. O tal casal é outro cliché: Hugh Grant e Kristin S. Thomas são o mais ingleses possível e está-se mesmo a ver que não se comem como deve ser, o que leva a um jogo de sedução, entre a francesa e o inglês, em que o americano e a inglesa serão os voyeurs.

Enfim, tudo um pouco “fucked up”, como Polanski gosta, mas que me cheirou a serí´dio. Por outras palavras: vê-se, mas já dei para este peditório.

“The Illusionist”, de Neil Burger

—Edward Norton, naquele seu modo contido, faz o papel de um ilusionista que, no século 19, se destacou no Império Austro-Húngaro.

Qual David Copperfield, o mago conseguia as maiores proezas em palco e era muito popular, até reencontrar o amor da sua adolescência, a condessa de Von Teschen (Jéssica Biel), agora noiva do sucessor do império. Esse reencontro não é bem visto pelo malandro do futuro imperador que, ainda por cima, é um grande bêbado e abusador de mulheres, e o inspector da polícia de Viena (Paul Giamatti), fica encarregado de vigiar o ilusionista.

É uma história de amor bem contada e com um boa fotografia em tons de sépia, para nos transportar melhor para o século 19. Norton não se ri durante o filme todo mas acaba por ficar com a melhor parte, no fim…

Vê-se sem grande esforço…

“The Door in the Floor”, de Tod Williams

—Mais uma história triste: Ted Cole (Jeff Bridges) é um escritor/ilustrador de histórias infantis, que se mete nos copos e gosta de desenhar e humilhar mulheres nuas; Marion (Kim Basinger), a sua mulher, está com uma depressão das antigas desde que os filhos do casal, adolescentes, morreram num acidente de viação. O nascimento de uma filha, agora com 5 ou 6 anos, não suavizou o sofrimento.

Casal em crise, está-se mesmo a ver. Nas férias de Verão, o escritor arranja um assistente, para o apoiar, para aprender as técnicas da escrita e, sobretudo, para servir de motorista, já que ele está impedido de conduzir, por ter sido apanhado com uma grande bebedeira nos queixos. O jovem assistente, tem a idade que o filho mais velho dos Cole teria, se ainda fosse vivo. E, apesar daquele ar inocente de puto marrão, aí está ele a perder a virgindade com a Kim Basinger. Parece-me injusto.

As relações entre o casal vão-se degradando mas, felizmente, existe uma porta no chão…

Vê-se bem, com algumas reservas.

País de opereta

Ontem, um doente meu, que faz o milagre de estar vivo, apesar de ter todos os factores de risco (é gordo, fuma, tem o colesterol alto, é hipertenso e diabético e não toma a medicação nem faz exercício físico, não faz qualquer tipo de restrição alimentar e tem uma profissão de stress), deu-me uma verdadeira lição sobre o modo como o jornalismo sensacionalista conseguiu tomar conta da vida das pessoas.

Perguntei-lhe eu: mas diga-me lá, ó Fulano, por que razão é que você não toma os comprimidos para a tensão? São genéricos! Uma caixa de 60 custa cerca de 2 euros! E os dos diabetes são í  borla!

Responde-me o Fulano: ó doutor, 60%  do meu ordenado vai para pagar dívidas; nem tenho cabeça para pensar em comprimidos e doenças! Aliás, o Cavaco Silva vai hoje falar ao país!… Bom… eu acho que ele não deve demitir o governo mas até o chefe da casa civil disse que, se ele interrompe as férias para falar ao país, é porque é uma coisa muito importante! É que cada vez vemos mais pobreza envergonhada! Vivem melhor esses tipos que recebem o rendimento mínimo que as pessoas que têm cursos! Muitos dos sem abrigo que dormem na rua, têm cursos superiores e andam lá artistas e pessoas como o senhor doutor a dar-lhes comida! É a nova pobreza!

Depois, í  noite, o Cavaco foi í  televisão falar sobre o estatuto dos Açores!…

E os sem abrigo com cursos superiores não perceberam por que razão o Presidente da República não quer saber deles para nada!

Quanto ao meu doente, há-de continuar a desafiar as estatísticas dos acidentes cardiovasculares e a fazer parte daquela vasta maioria de portugueses que continuam í  espera que alguém faça algo por eles.

Impunes, os jornalistas continuam a alimentar sensações.

Ser do Benfica…

É cada vez mais difícil!

Afinal, de que Benfica é que eu sou? Do que jogou ontem a primeira parte, do que jogou a segunda parte ou do que ficou no banco?

Sou do Benfica do Quim, Luisão, Petit e Nuno Gomes, ou do Benfica do Aimar, Yebda, Balboa e Urreta, ou do Benfica do Maxi Pereira, DiMaria, Cardoso e Binya?

Mais de 40 jogadores – para quê?!

Quem lucra com isso?!

O que vale é que temos, agora, um director desportivo que percebe da poda…

E um treinador que quer fazer flores…

Já não tenho idade para isto!…

De Carla Bruni a Louise Brown e a Mick Jagger

O terceiro disco de Carla Bruni está a ser um sucesso de vendas. Parece que, afinal, o facto de ser casada com o Presidente francês foi benéfico para a sua carreira. Este facto deixa-me confuso. Eu, por exemplo, seria incapaz de comprar um disco de Maria Cavaco Silva. E não seria pelo facto da senhora cantar bem ou mal; seria apenas por coerência política. Seguindo o mesmo raciocínio, seria de esperar que Bruni fosse prejudicada pelo facto de ser casada com Sarkozy, mas parece que não.

Sendo assim, não sei de que é que a Ana Malhoa, por exemplo, está í  espera! O Sócrates está solteiro e tem futuro na política…

Quem não terá grande futuro será Karadzic, que foi capturado esta semana, mascarado de especialista em terapia quântica. Que coincidência! E eu que escrevi um texto sobre essa treta (ver ASAE – onde estás tu?) na passada semana! Pois o ex-general sérvio, que foi responsável por milhares de mortos nos anos 90, dedicava-se, agora, a curar pessoas com ajuda da terapia quântica. Se eu ainda tivesse alguma dúvida quanto í  charlatanice da coisa…

Agora, muito provavelmente, Karadzic vai passar o resto da vida na prisão. Terá muito tempo para escrever um livro sobre a sua experiência de vida. Que digo eu? Um livro? Uma colecção inteira, com dezenas de volumes!

Basta comparar com aquele senhor inspector, que usa casacos um número acima, e que se chama Gonçalo Amaral. Reformado aos 49 anos (que inveja!), o Sr. Amaral acaba de lançar um livro sobre o “caso Maddie”, depois de o ter investigado durante meia dúzia de meses, sem ter chegado a nenhuma conclusão válida. Imaginem quantos livros o ex-general sérvio não poderá escrever!

Esta mania de escrever e publicar livros está a alastrar. Todos nos recordamos dos excelentes livros escritos por Mourinho, Deco ou Mantorras ou do pungente livro do sargento Gomes sobre a “pequena Esmeralda”. Agora, até Freitas do Amaral publicou, em livro, o parecer que elaborou sobre a descida de divisão do Boavista e a suspensão de Pinto da Costa!

Acho que Sócrates, por exemplo, está a perder oportunidades, umas atrás das outras. Só esta semana podia ter escrito três livritos: “Os Josés: o meu encontro com Eduardo dos Santos”, “Um dia na tenda de Kadhaffi” e “Hugo Chavez, esse grande humorista”. E poderia ter acrescentado um opúsculo sobre o presidente da Guiné Equatorial. Em alternativa, poderia juntar tudo num único volume intitulado “É o petróleo, bruto!”

Quem não está a ser nada bruto é Barak Obama. Se as eleições norte-americanas fossem na Europa, o gajo já tinha ganho!

Obama juntou quase tantas pessoas em Berlim como professores portugueses que desfilaram contra Sócrates. Enfim, como sabemos, isto não quer dizer nada, com a agravante de praticamente nenhum dos manifestantes que aclamaram Obama em Berlim ir votar nele, em Novembro, enquanto muitos dos que desfilaram em Lisboa, votarão a favor do Sócrates nas próximas eleições.

Os sonsos dos dirigentes europeus receberam Obama como se ele já fosse presidente dos EUA. E só porque ele é preto, coitadinho… e os europeus têm problemas de consciência. Com tantas ex-colónias e tantos emigrantes africanos, das índias e das Antilhas, não há um único país europeu que tenha alguma vez tido um candidato de pele mais escura.

—Pele bem branca é a de Louise Brown – a primeira bebé-proveta, que acaba de fazer 30 anos.

Quem diria que esta Louise Brown já coube, em tempos, numa proveta! Olhem bem para ela! É a de cabelo comprido, claro!

Há 30 anos, estavam os Rolling Stones a lançar o seu 20º disco (“Some Girls”) e, depois disso, ainda lançaram mais 14!

Ontem, Mick Jagger completou 65 anos e confirmou aquilo que já todos tínhamos obrigação de saber: a terceira idade só começa lá para os 80!

E o resto, é música!

“House of Sand and Fog”, de Vadim Perelman

—Filme triste e trágico, este. Jennifer Connely passa duas horas com aqueles olhinhos tristes e sem nunca esboçar um sorriso. E, no fim, mais triste ainda fica, depois da morte dos seus opositores.

A história gira em redor de uma casa, que o pai de Kathy (Jennifer Connely) lhe deixou. Ben Kingsley interpreta o papel de Massoud Anir Behrami, um ex-militar iraniano, emigrado nos EUA, que decide comprar a casa de Kathy, que as Finanças colocam em leilão, devido a um erro administrativo.

Perder a casa da família leva Kathy ao desespero e í  tentativa de suicídio.

Behrami acaba por perceber que, ao ficar com a casa, está a destruir a vida de Kathy, mas não quer desistir do seu sonho. A morte acidental do filho, durante uma luta com o polícia que, entretanto, se envolveu com Kathy, destrói o iraniano, que acaba por se suicidar, depois de assassinar a mulher. Uma tragédia do caraças!

A casa, sempre rodeada de bruma, representa a vida, para estas personagens desesperadas.

Kingsley – que, fatalmente, há-de sempre estar ligado í  figura cinematográfica de Gandhi – foi nomeado para o í“scar de melhor actor em 2004.

Gostei muito de três coisas: as orelhas de Kingsley a abanarem com a ventania, toda a representação de Kingsley… e os olhinhos tristes da Jennifer…

Afinal, não estamos assim tão mal!…

O presidente do Banco Central do Zimbabwe anunciou que amanhã entrará em circulação a nova nota de 100 mil milhões de dólares zimbabueanos.

Isso mesmo: uma nota que vale 10 mil milhões.

É que a inflação, no Zimbabwe é de 2,2 milhões por cento ao ano.

E a malta ainda se queixa do Teixeira dos Santos!…

Vamos eleger os juízes?

Provavelmente, a vacina contra o cancro do colo do útero já não vai começar a ser administrada em Setembro/Outubro, como estava previsto.

Duas vacinas concorreram ao concurso público: uma, da Smith/Kline, é activa contra as duas estirpes mais frequentes do vírus do papiloma e é mais barata; a outra, da Sanofi/Pasteur, é activa contra 4 estirpes e é mais cara. O júri do concurso público escolheu a mais barata. A Sanofi/Pasteur apresentou uma providência cautelar e a decisão do concurso ficou suspensa.

Quer dizer: até que os tribunais decidam, nenhuma miúda pode ser vacinada contra o vírus do papiloma humano, em Portugal.

Não estás de acordo com as aulas de substituição? Providência cautelar.

És contra o túnel do Marquês? Providência cautelar.

Não aceitas a co-inceneração? Providência cautelar.

Não aceitas que te desçam de divisão porque és acusado de influenciar árbitros? Providência cautelar.

Não gostas do prédio que estão a construir em frente í  tua casa? Providência cautelar.

Os juízes conseguem influenciar a política de saúde, de educação, de obras públicas, do desporto…

Eleger deputados, para quê?!

Não seria mais democraticamente importante eleger os juízes?

Jornalismo mentiroso

O Diário de Notícias de hoje publica, na primeira página, uma manchete vergonhosa: “Classe média já pede comida por ‘e-mail’ í s misericórdias”

E há um subtítulo ainda mais vergonhoso: “crise bate í  porta mas não deixam de pagar Net e viajar”.

Na página 13, Rita Carvalho, a autora da notícia mostra-nos como não se deve fazer jornalismo, como é que uma notícia cheia de inexactidões contribui para fazer crescer o mito da crise e como é que alguns jornalistas, por muito que apregoem o contrário, querem tornar-se, eles próprios, os fazedores das notícias, em vez de serem os transmissores (que é a sua missão).

Rita Carvalho começa por escrever:

“Aos emails da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) chegam todas as semanas dezenas de pedidos de ajuda alimentar. Pessoas que evitam revelar o menos possível sobre si próprios e pedem ajuda para atravessar o período difícil que se vive e matar a fome.

Quem o diz é Manuel de Lemos, presidente da UMP, que alerta para este novo padrão de pobreza que foge ao típico retrato dos pobres conhecido em Portugal. «São pessoas com um perfil diferente, que não vivem na miséria, mas estão í  beira de entrar na pobreza», explicou ao DN, acrescentando que este é um fenómeno que se veio a sentir desde o início do ano, quando se intensificaram os problemas económicos.”

Deixando de lado a má construção das frases (não se deve dizer “um fenómeno que se veio”, mas sim “um fenómeno que se tem vindo a sentir”), a notícia falha quase todos os pontos essenciais de uma notícia (onde, quando, como, etc).

Quantos emails recebe, semanalmente a Misericórdia e quantos desses emails pertencem í  classe média? A percentagem é significativa? Era costume receber emails a pedir ajuda alimentar? E esses emails serão de pessoas diferentes? Quantas? Quantas famílias representarão? Não estaremos a falar de meia dúzia de xicos-espertos que se querem aproveitar da “crise” para sacar alimentos í  borla? Não será um pouco abusivo intitular “Classe média está a pedir comida por ‘e-mail’ í s misericórdias”?

Como é que o presidente da UMP sabe que determinados emails são da classe média se “as pessoas evitam revelar o menos possível sobre si próprios”?

Adiante.

“Não estamos a falar de idosos, dos típicos desempregados, mas de pessoas com menos de 40 ou 45 anos que se calhar não deixam de pagar netcabo nem desmarcam as férias na agência de viagens mas passam fome”, conta Manuel de Lemos, que diz que ao seu próprio email já chegaram dezenas de pedido de ajuda.”

Claro que não é a jornalista a dizer isto, mas é ela que tira a conclusão. O Sr. Lemos – que devia ter mais tento na língua – diz que quem pede comida por email “se calhar não desmarca as férias nas agências de viagens”. Se calhar? Em que é que ficamos: desmarcam ou não desmarcam as férias? E continuam a pagar a netcabo? Como é que ele sabe? E quem lhe disse que essas pessoas têm entre 40 a 45 anos, se, como diz a Rita, as “pessoas evitam revelar o menos possível sobre si próprias”? É que, afinal, já sabemos a que grupo etário pertencem, que são da classe média, que continuam a pagar a Net e as viagens, mas que estão cheias de fome, coitadinhas…

Mais í  frente, Manuel de Lemos diz que o número de pessoas que vão comer í s Misericórdias também aumentou. Escreve a jornalista (mal, mais uma vez): “Idosos que vinham almoçar uma vez por semana e agora aparecem todos os dias, crianças e jovens”. Diz o Sr. Lemos: “estas pessoas novas quando chegam para comer, põem-se a um canto, comem rápido e vão-se embora, pois sentem alguma vergonha.”

Quem serão estas pessoas novas? Jovens e crianças? Será que vão comer sozinhos? Quantos são?

Se calhar, estou a ser demasiado picuinhas com a notícia, mas é assim que se criam os mitos.

“Sabes que a classe média já está a pedir ajuda í  Misericórdia para comer?”

“Não me digas!…”

“É verdade! Li no Diário de Notícias!…”

“É a crise…”

Trabalho há mais de duas décadas junto a quatro bairros sociais. As instituições de solidariedade social quase que se acotovelam para apoiar os moradores desses bairros. Conheço vários casos de idosos que recebem tantos produtos alimentares que os deixam a apodrecer na dispensa, sem nunca os utilizarem. Em alternativa, distribuem as embalagens de farinha e de arroz, as garrafas de azeite e os pacotes de bolachas, pelos vários membros da família, alguns deles pertencentes í  perigosa classe média que, assim, estão a utilizar a ajuda das instituições de solidariedade social para enfrentar a crise…

Ainda hoje, ao ver as reportagens dos milhares de pessoas na concentração de motards de Faro, na reunião de adeptos de tuning, no Fundão, nos concertos de Lou Reed, Leonard Cohen e no Festival das Marés, me apeteceu perguntar: quantos desses palermas da classe média terão já enviado um email para a Misericórdia, a pedir um naco de pão?…

ASAE – onde estás tu?

Andam por aí duas publicações semanais que me fazem muita confusão.

Corrijo: andam por aí muitas publicações que me fazem confusão. Mas estas duas mais do que as outras.

E incomodam-me mais porque, as outras, limitam-se a estar disponíveis nas bancas e, embora fique perplexo como é possível existirem tantas revistas sobre a programação da televisão, tantas revistas sobre as chamadas celebridades e as suas vidas privadas, tantas revistas com gajas boas na capa – embora fique perplexo como há leitores para tanto lixo, deixo-as lá estar, não as compro, não as folheio, não me incomodam muito.

Agora, estas duas a que me refiro, são distribuídas gratuitamente com o Diário de Notícias de sexta-feira (Notícias TV) e com o Sol (Gingko).

Não vou perder muito tempo com a Notícias TV. Apenas direi que é a única publicação que eu conheço que destaca sempre a idade das pessoas que surgem fotografadas nas suas páginas. E é graças a esse facto que fiquei a saber que Pepê Rapazote tem 37 anos, que Leonor Poeiras tem 28 anos e Dália Madruga, 29. Claro que não faço ideia de quem são estes tipos, mas isso é outra questão.

A revista é completamente idiota e destinada a indivíduos pouco exigentes em número de neurónios e traz, logo na contra-capa, um anúncio muito interessante, apelidado de “a descoberta sexual mais importante do século XXI”.

Trata-se do “Desir’ Patch”, um adesivo com “efeitos imediatos e duradouros”, quer no homem (“aumenta a frequência das erecções e favorece ejaculações mais potentes”), quer na mulher (“proporciona um desejo irresistível de prazer e multiplica a frequência e a intensidade dos orgasmos”).

O anúncio garante que o adesivo “não contem qualquer produto químico, hormonal ou substâncias nocivas de qualquer natureza”. Nesse caso, que raio terá o adesivo para dar assim tanta tesão í  malta? O anúncio explica que a coisa é “í  base de extractos vegetais e óleos essenciais”. O que é que isto quer dizer?

E onde é que a gente deve colocar o adesivo? Na pilinha ou no pipi? Não! “Basta aplicar na parte de baixo dos rins”.

Pronto! Tinha que ter algum defeito! Eu não me sinto inclinado a experimentar o Desir’ Patch, mas a malta que o quiser usar vai ter que fazer um corte na região lombar, para conseguir colocar o adesivo “na parte de baixo dos rins”.

Deve doer, porra!

E tira a tesão a qualquer um, só pensar em colocar seja o que for “na parte de baixo dos rins”!

A outra revista que me faz confusão é a Gingko, que tem um subtítulo: “equilíbrio pessoal, profissional e ambiental”. São 120 páginas de coisa nenhuma, banalidades e trivialidades em bom papel, com bonitas fotografias. Na página 18, por exemplo, ensinam-nos “Como fazer compras no supermercado”. São 9 regras de ouro, a primeira das quais diz assim: “ainda em casa faça uma lista com todos os produtos de que necessita”. Boa! E eu que nunca me lembrei de fazer uma puta de uma lista antes de ir ao supermercado!

Obrigado Gingko!

Mas a piéce de resistance está na página 42 e seguintes. Sob o título “Tempo de equilíbrio” podemos ler um texto sobre a terapia quântica.

Breve pausa, para todos se rirem um pouco.

Pois a terapia quântica faz-se com um Scientific Consciousness Interface Operations (SCIO), desenvolvido pelo engenheiro da NASA, Bill Nelson.

Diz o artigo: “o SCIO está equipado com sensores que se ligam í  cabeça, pulsos e tornozelos. Assim, reconhece, analisa e quantifica o estado em que os vários órgãos se encontram.”

Como? Como é que o tal aparelho, que parece uma espécie de modem antigo, da extinta TV Cabo, sabe como é que está a funcionar o meu pâncreas, o meu baço ou as minhas vesículas seminais?

Adiante…

“O Trivector mede a voltagem, a amperagem e a resistência, para calcular a indutância, a condutância e a ressonância durante um teste onde compara as frequências ressonantes do corpo com cerca de 12000 elementos e compostos”.

Doze mil elementos e compostos? Será que se estão a referir ao sódio, potássio, cálcio, fósforo e afins? Doze mil?!

E como é que o aparelho trata o nosso organismo doente?

Simples.

“O sistema de retroacção biológica/biofeedback permite ao SCIO medir a ressonância das frequências de rectificação que alteram a própria rectância do organismo.”

Rectância do organismo?!

Colocar na parte de baixo dos rins?!

Estes gajos não são presos nem nada?!

Onde pára a ASAE quando é precisa?!