“Abril em Espanha”, de John Banville (2021)

John Banville (Wexford, Irlanda, 1945) venceu o Booker Prize de 2005 com o romance “O Mar”, razão pela qual esperava algo de melhor.

Este “Abril em Espanha” é um romance “antigo”. Embora tenha sido publicado apenas há três anos, a história cheira a velho: não há telemóveis, muito menos computadores, a máquina de escrever ainda é usada, toda a gente fuma e em todo o lado, dentro dos hotéis, até no hospital – e isto não seria nada de especial se, em algum lado, durante o romance, soubéssemos em que época a história se passava.

Depois, todas as personagens são demasiado caricaturadas. O assassino a soldo é, todo ele, uma caricatura. O patologista alcoólico idem idem. E a história é pouco credível.

Esta passagem da página 226 é bem ilustrativa do mofo da história:

“Observou o homem do outro lado da secretária. Olhando para ele, com aquela cabeça quadrada e aqueles ombros enormes, ninguém diria que era maricas. Mas, numa noite de nevoeiro, não há muitos anos, os Gardas tinham-no apanhado na casa de banho dos homens em Burgh Quay, de joelhos, em frente a um rapaz que tinha as calças pelos tornozelos”.

Já não se usa…

“O Caderno Proibido”, de Alba de Céspedes (1952)

Alba de Céspedes nasceu em Roma em 1911, trabalhou como jornalistas na década de 1930, publicou o seu primeiro livro cinco anos depois; foi também nesse ano que foi presa pela primeira vez, devido a actividades antifascistas. Faleceu em Paris em 1997.

“O Caderno Proibido” é um livro surpreendente que nos ajuda a perceber como era o ambiente da pequena-burguesia italiana (e portuguesa também, embora ainda mais pobre, penso eu).

A narradora é uma mãe de família, casada com um homem pouco ambicioso. Entre eles já não atração erótica e é suposto não haver porque já se considerem velhos, apesar de ainda não terem cinquenta anos. Têm uma filha que, a pouco e pouco, está a romper com as convenções e um filho, mais convencional. Valéria – é o nome da narradora – trabalha num escritório porque a família precisa de mais um salário; além disso, encarrega-se de todo o trabalho doméstico.

Certo dia, decide, num impulso, comprar um caderno e nele escrever um diário, que se manterá secreto.

À medida que vai escrevendo o seu diário, sempre às escondidas, Valéria cai-se descobrindo a si própria e questionando as convenções, embora não sinta coragem para as ultrapassar.

Um livro surpreendente, que aconselho.

“Antologia do Conto Erótico Brasileiro” (2024)

Eliane Robert Moraes organizou esta antologia, que vai desde contos escritos por Machado de Assis até a autores dos nossos dias, mais precisamente, desde 1886 a 2003.

Para nós foi uma completa desilusão. A culpa deve ser da “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, coligida pela Natália Correia, que tanto prazer nos deu.

Esta Antologia brasileira tem muito pouco de erótica e os textos são muito pouco interessantes.

Para além do texto ordinário e asqueroso de Reinaldo Moraes e da sua “cinta caralha”, apenas vale a pena salientar o conto de Ignácio Loyola Brandão, “Obscenidades para uma dona de casa”, em que aprendemos alguns sinónimos de pénis que desconhecíamos” (“Repete essa palavra que não suo. Nem pau, nem pinto, cacete, caralho, mandioca, pica, piça, piaba, pincel, pimba, pila, careca, bilola, banana, vara, trouxa, trabuco, traíra, teca, sulapa, sarsarugo, seringa, manjuba”).

O resto, é um deserto de erotismo.

“Canção do Profeta”, de Paul Lynch (2023)

Com este seu quinto romance, Paul Lynch (Irlanda, 1977) venceu o Booker Prize de 2023 e, na minha opinião, é um dos melhores romances dos últimos tempos.

Quando o comecei a ler percebi que estava perante o nascimento de um estado fascista. A acção decorre na Irlanda quando um Partido de Acção Nacional ganha as eleições e começa, a pouco e pouco, a impor as suas regras, a colocar os seus apaniguados nos lugares importantes, a proibir greves e manifestações. Faz-nos logo lembrar qualquer coisa, não é verdade?

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A situação do país vai-se deteriorando, as liberdades vão sendo cada vez mais limitadas e vamos conhecendo todo o drama através da família Stack.

O pai, Larry Stack, professor, desaparece logo no princípio da história, quando está a organizar um protesto. A mãe, Eilish, bióloga, fica responsável pelos quatro filhos, Mark, adolescente, Molly e Bailey, a caminho da adolescência e Ben, um bebé de colo. Há ainda um avô, Simon, já com sintomas de demência, que vive noutra parte de Dublin.

Paul Lynch consegue escrever toda a história num crescendo de drama, que culmina numa guerra civil e na fuga do que resta da família. Eilish vai enfrentando cada vez mais dificuldades, num crescendo dramático. Ao colocar a acção no seu próprio país, na Irlanda, o autor consegue que nós façamos auto-relacionamento com mais facilidade. Todos nós vemos, diariamente, imagens horríveis do que se passa, por exemplo, em Gaza, mas a vida em Gaza é muito diferente da nossa; aquelas famílias palestinianas sempre viveram em guerra e, por maior que seja o nosso sentimento de solidariedade, sentimo-nos distantes delas. Ao lermos a descrição das vicissitudes por que Eilish vai passando, facilmente nos identificamos com ela. E perguntamo-nos: não poderá acontecer algo de semelhante entre nós? A coberto da liberdade e da democracia, não existirão forças que disso se aproveitam para instituir uma ditadura?

Como diz alguém, já quase no fim do livro:

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“eu costumava acreditar no livre-arbítrio, se me tivesse perguntado antes de tudo isto acontecer ter-lhe-ia dito que era livre como um passarinho, mas agora já não tenho tanta certeza disso, agora não vejo como é possível o livre-arbítrio quando fomos apanhados em tamanha monstruosidade, uma coisa leva a outra coisa até ao raio da coisa ter a sua própria dinâmica e já não haver nada que possamos fazer, agora vejo que o que eu julgava ser liberdade na verdade era luta e que nunca houve liberdade nenhuma.”

Quando acabei de ler Canção do Profeta, respirei fundo e senti-me, de certo modo, aliviado por ter terminado o meu “sofrimento”, que não o daquela família.

E o final é surpreendente.

Aconselho vivamente.

É uma edição da Relógio de Água, com tradução de Marta Mendonça.

Urologia ou orografia

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A ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, meteu as mãos pelos pés e, em vez de falar na orografia da Madeira, falou na urologia.

É certo que, quando se tem uma infecção, a urina, quando sai, parece que vai a arder e devia ser isso que a ministra queria dizer ao falar na urologia complicada da Madeira, que tem dificultado o combate ao incêndio.

Nos homens, as prostatites são também causa de um verdadeiro incêndio no baixo-ventre e os urologistas recorrem, muitas vezes, ao toque rectal como meio de avaliar a próstata.

Talvez seja por isso que Miguel Albuquerque tem andado arredado da frente da urologia.

Mas afinal quem quer um toque rectal?…

“Os Nossos Desconhecidos”, de Lydia Davis (2023)

Desta autora norte-americana (Massachussets, 1947), já tínhamos lido “Contos Completos”, mas esta nova colectânea é mais, digamos, radical.

Que dizer deste conto, intitulado “Momento Matrimonial de Irritação – Coco”:

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“Após muitos dias, ele disse à mulher:

«Podias fazer alguma coisa com este coco?»

A maioria destes textos são assim, curtos, simples frases ouvidas ao acaso. Outro exemplo, intitulado “Solteirona Melancólica”:

“O que é aquilo,

Tocando-lhe tão delicadamente durante o banho

Ah,

Um marcador de livros a flutuar…”

Na contracapa, diz-se que este livro é “gracioso, engraçado, estranho, surpreendente, improvável, persuasivo e comovedor”.

Estou de acordo com a maioria dos adjectivos.

“O Contrário de Nada” (The Rabbit Hutch), de Tess Gunty (2022)

Começo por dizer que não compreendo a escolha do título em português. “O Contrário de Nada” é, com efeito, tudo e este livro de estreia de Tess Gunty (nascida em 1993 em South Bend, Indiana) tem tudo e mais alguma coisa – mas, na minha opinião “A Coelheira” seria o título adequado. Rabbit hutch é um edifício de apartamentos de renda acessível que fica em Vacca Vale, uma cidade em decadência – e é nesse edifício que habitam as personagens que povoam o livro.

Para romance de estreia, Tess Gunty (que diz que demorou cinco anos a escrevê-lo) revela já uma maturidade digna de uma escritora mais experimentada. Vejamos os seus próximos livros.

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Não se pode dizer que o livro tenha uma personagem principal, no entanto, Blandine é, sem dúvida, a figura central. Uma jovem que viveu em várias famílias de acolhimento e que tem uma obsessão pelas místicas católicas que foram trespassadas pelas espadas ardentes dos querubins. Mas há muitas outras personagens, como os três jovens que dividem o apartamento com Blandine, a vizinha de baixo, Joan, que acaba por ser a única pessoa que vai visitar Blandine ao hospital, no fim do livro, e muitas mais.

A escrita de Tess Gunty é torrencial.

Exemplo na página 20:

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“Tiroteio, assassínio, derrame de crude, terrorismo, incêndio, rapto, bombardeamento, cheias. Vídeo engraçado no qual uma mulher abre a porta do carro e se lhe depara um urso-pardo sentado ao colante a comer o que ela comprou no supermercado. Assassínio, assassínio, guerra. A Internet está enervada.”

O humor e um bom poder de observação, na página 88:

“Ampersand é o único estabelecimento comercial em Vacca Vale que não pertence a um franchising e que se assemelha a uma cafetaria. Aberto por um par de hipsters optimistas, atrai um número desproporcionado de pessoas de boina”.

Outro exemplo na página 135:

“Por falar em escândalos, ouviram que a Kayla fez um pterodáctilo a três gajos do lacrosse? O quê, meu, não sabes o que isso é? São três gajos e uma rapariga. Os tipos poem-se lado a lado, de pé. Ela faz um broche ao tipo do meio e, ao mesmo tempo, bate punhetas aos dos lados. Portanto, parece um pterodáctilo em voo”.

Listas, a autora gosta de listas, como esta, na página 192:

“A sua mãe era irlandesa; a actriz gostava de ouvir cantigas irlandesas, de ouvir irlandeses ler livros, rezar orações. Gostava de ter laranjeiras no quintal, de ver pessoas apanhar fruta. De madressilva, lilases, cloro, trovoadas, pinheiros, sabonete sólido, cabelo por lavar, fósforo, incenso na missa do galo, cigarros, fogueiras, gasolina, peles: gostava dos aromas dessas coisas.”

Ou esta outra lista das alterações provocadas pela gravidez (página 195):

“Um dia, deixou de ser soprano. A pele retesou-se. Sentia os ossos…soltos. O cérebro sofria de um efeito retardatário e balbuciava como se tivesse envelhecido décadas no espaço de semanas. Era como se tivesse apanhado um vírus na colónia de férias: não parava de espirrar, tinha comichões, afrontamentos, perda de memória, suores. Já não conseguia dançar. Desenvolveu uma halitose impossível de controlar. Todos os canos da sua canalização interna avariaram.  As veias no peito começaram a parecer as dos úberes das vacas. A gravidez deu-lhe cabo da pele, separou-lhe o osso pélvico, fez-lhe crescer cabelos no peito, duplicou-lhe o volume de sangue, inchou-lhe as articulações, provocou-lhe acne e melasma e dores de cabeça e náuseas e premonições. Escureceu-lhe o umbigo. A vagina ficou azul”.

Tirando o título, gosto da tradução de Eugénia Antunes (e não sei se a ideia foi dela).

E claro que aconselho fortemente este livro.

“Amy e Isabelle”, de Elizabeth Strout (1998)

Depois de Olivia Kitteridge, já devorámos diversos livros desta escritora norte-americana, nascida em 1956.

Todos têm uma característica comum: descrevem o dia-a-dia de uma pequena comunidade, com as tragédias de cada família, os enganos e desenganos, as perfídias, os sonhos e os pesadelos e tudo sempre tendo como pano de fundo a passagem do tempo, as estações do ano, as árvores e as flores e os pássaros, a chuva e o vento, as noites cálidas e as madrugadas frias.

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O quotidiano de pessoas simples que, vendo bem, não são tão simples assim. No caso deste livro, as protagonistas são uma mãe, Isabelle, e uma filha Amy, e uma pequena comunidade, Shirley Falls. Há um envolvimento de Amy com um professor, há uma criança que desaparece, há uma funcionária da fábrica que é histerectomizada e cujo marido a troca por outra, há muitos segredos escondidos, incluindo por parte da mulher do pastor lá do sítio.

 Ao longo do livro, vamos assistindo ao crescimento da Amy e à sua passagem à idade adulta.

Vale a pena, como todos os restantes livros de Elizabeth Strout.