A fome é negra!

Ao terceiro dia de greve de fome, exigimos uma reunião com o Presidente da República.

Estamos fortes e unidos e esta luta é para levar até ao fim.

Decidimos não ingerir nada a não ser água ou chá com açúcar.

Ao quarto dia de greve de fome percebemos que o Presidente tem mais coisas importantes para tratar, mas exigimos a presença do Primeiro-Ministro.

Continuamos fortes e unidos, mas com um ratinho no estí´mago…

Nada nos fará desistir da nossa luta!

Ao quinto dia de greve de fome não queremos que digam que somos inflexíveis e, em vez do Primeiro-Ministro, aceitamos uma reunião com o ministro da Economia.

Apesar de continuarmos fortes e unidos, estamos esganados de fome; um de nós teve que ir ao hospital levar um soro e regressou ainda mais forte e determinado.

Ao sexto dia de greve de fome, sonhámos com um Big Mac e aceitámos uma reunião com o presidente da Câmara. Confesso que até aceitávamos um vereador, ou mesmo um presidente da Junta.

Vamos todos comer croquetes!

“Em Português Nos (Des)Entendemos”, de João Carlos Brito (2020)

Mais um livrinho curioso que se lê de uma penada.

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O seu autor, licenciado em Línguas e Culturas Modernas, lista aqui uma série de regionalismos, termos de calão e linguagem corrente e fornece uma possível explicação para cada um.

Por vezes, a explicação que o autor dá pareceu-nos um pouco fantasiosa ou demasiado enviesada, mas enfim, não deve ser fácil descobrir por que raio os habitantes do Porto chamam jeco ao cão, ou os do Ribatejo digam que cramunhar é o mesmo que fazer muito barulho.

O livro não pretende ser exaustivo, razão pela qual, nos vários termos usados pelos do Porto, não aparece, por exemplo, o célebre cimbalino. Para já não falar nos termos que o autor escolheu para Lisboa, e onde não figuram dar de frosques, chatear o Camões, dar corda aos sapatos e muitos outros.

O autor dividiu o livro em capítulos e cada capítulo refere-se a uma região do país.

Ficámos a saber, por exemplo, que, no Minho, um cachecol é cochiné; em Trás-os-Montes, bodalhice é uma porcaria; no Porto, aloquete é um cadeado; nas Beiras, apichar é avivar o lume; no Ribatejo, afonicar é estragar; no Alentejo, uma pessoa simples é um parrascano; no Algarve, feniscadinho é um tipo muito magro; na Madeira, chinesa é um chávena de café com leite; e nos Açores, ministra é uma mesa de cabeceira.

“Olive Kitteridge”, de Elizabteh Strout (2008)

Elizabeth Strout (Portland, Maine, 1956), ganhou o Prémio Pulitzer com este romance, mas, na sua carreira, tem já mais alguns best-sellers. Em Portugal, para além deste, tem publicados “…Tudo é Possível” e “…O Meu Nome é Lucy Barton”.

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Olive Kitteridge foi professora de matemática em Crosby, uma pacata povoação próxima de Portland, no Maine. É uma mulher grande, que engordou depois da menopausa, mas, sobretudo, é uma mulher mal humorada, sempre zangada com o mundo.

Toda a gente em Crosby conhece Olive e o seu mau feitio; é casada com Henry, o dono da farmácia local ““ um homem simpático, o oposto da mulher.

A narrativa começa quando ambos estão í  beira da reforma e continua até pouco depois da morte de Henry.

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Cada capítulo conta-nos uma história que, de algum modo, está relacionada com Olive, embora ela nem sempre participe directamente na história.

Há a história da pianista alcoólica, do ex-aluno de Olive que se quer suicidar, da mãe destroçada pelo crime do filho, e mais.

Olive tem dificuldade em aceitar o facto do seu filho ter casado com uma mulher que ela detesta e se ter mudado para a Califórnia. Cristopher quis fugir de uma mãe autoritária e azeda.

É com este ambiente que a narrativa evolui, sempre com muito interesse.

A tradução é de Tânia Ganho e a edição da Alfaguara e eu recomendo.

“O Que o Cão Viu”, de Malcolm Gladwell

Malcol Gladwell nasceu em Inglaterra em 1963, cresceu no Canadá e vive actualmente em Nova Iorque, sendo colunista da revista The New Yorker.

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Este curioso livro reúne alguns dos seus ensaios publicados naquela revista ““ ensaios muito variados, desde por que razão há muitas variedades de mostarda e apenas uma de ketchup, o que é que o inventor da pílula não sabia sobre a saúde das mulheres, os perigos da informação a mais, a mamografia e o poderio aéreo, por que associamos o génio í  precocidade, etc.

Gladwell pega em um ou dois exemplos práticos para, depois, nos explicar a sua opinião sobre o assunto em discussão, socorrendo-se, sempre, da opinião de diversos especialistas e de estudos científicos publicados.

Na página 299, por exemplo, é citado um estudo muito curioso:

“…No início da década de 1970, um professor de psicologia da Universidade de Stanford, chamado David L. Rosenhan, juntou um pintor, um estudante universitário finalista, um pediatra, uma dona de casa e três psicólogos. Pediu-lhes que fossem a diferentes hospitais psiquiátricos com nomes falsos e se queixassem de que andavam a ouvir vozes.”

De resto, estes voluntários deveriam responder a todas as perguntas sem mentir e manter comportamentos normais. Estiveram internados, em média, 19 dias, e houve um que ficou quase dois meses internado.

Rosenhan dirigiu-se depois aos hospitais visados e explicou que estava a fazer uma experiência e que, em breve, voltaria a enviar voluntários que se fingiriam doentes.

Dessa vez, dos 193 admitidos nos hospitais, 41 foram considerados saudáveis ““ mas, mais uma vez, os hospitais enganaram-se, já que Rosenham não tinha enviado ninguém.

É com experiências deste género, surpreendentes, que Gladwell ilustra os seus ensaios, o que os torna interessantes, mesmo quando o tema é pouco atractivo.

Artur Portela Filho

Morreu ontem, vítima de covid. Tinha 83 anos.

Não perdíamos uma crónica do Artur Portela Filho no jornal República, nos idos de 1972 e 73. O seu estilo sincopado era inconfundível. Dizia-se grande admirador de Eça de Queiroz e até ressuscitou o conde de Abranhos, como comentador da actualidade política.

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Portela Filho publicou algumas das suas crónicas em livro: A Funda (3 volumes, publicados pela Moraes Editora, em 1972 e 1973).

Quem as lê agora, não percebe o que era lê-las e sentir que Artur Portela afrontava o fascismo com inteligência.

Um exemplo, uma fundábula, do 1º volume de A Funda:

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Quando o Senhor Bispo surgiu, em ouro, da sombra da igreja, toda a praça estava de rojos.

Era sempre assim, quando o Senhor Duque Velho, pio e frio, ia e vinha, e passava.

Todos deitados, todos de borco, todos respirando curto, e tenso, e quente, e aflito, no terreiro, o bafo.

E o Senhor Bispo, alongando o olhar sobre a praça, que arquejava o espanto, o medo, a raiva, ergueu a voz:

– Morto é! Morto é o Senhor Duque Velho!

Os homens olharam-se, uns aos outros, nos túneis dos seus troncos arqueados, e repetiram, uns aos outros, rente í  terra, que morto era, que morto era o Senhor Duque Velho!

– Levantai-vos, homens! Levantai-vos, porque vivo está, e fica, o seu filho, o Senhor Duque Novo!

– É novo o Barão. É novo o dia! Levantai-vos, homens!

E o mais audaz levantou, pouco, depois mais, a cabeça, e viu, em ouro, o Senhor Bispo, e, em negro, o Senhor Duque Novo.

E outro ousou.

E outro.

E todos. ““ Levantai-vos, homens. Levantai-vos!

O Senhor Duque Novo e o Senhor Bispo entraram na multidão, que olhava, nos olhos, finalmente, o seu Duque. O Novo.

O mais audaz dos homens riu.

E todos riram.

E todos aclamaram o Duque Novo, que já não os queria de rojo, de borco, respirando, curto e tenso, e quente, e aflito, no terreiro, o bafo.

Foi um parvo, que, assomando a uma fresta, perguntou, a outro parvo:

– Por que é que os homens estão todos ajoelhados?

Ninguém já escreve assim, hoje em dia.

E é pena…

Como Rui Rio desaguou no Chega

Tudo muito espantado com o acordo entre o PSD e o partido de extrema-direita com o lindo e original nome de Chega.

(Um pequeno aparte: será que Chega é um acrónimo, de, por exemplo, Confederação Hermética E Gregária de Alienados?)

Além de espantados, muitos comentadores ficaram escandalizados com o facto de Rui Rio aceitar esse acordo e, sobretudo, concordar com as condições impostas pelo Chega.

Um dessas condições consiste em cortar com o Rendimento de Inserção de uma série de açorianos que, segundo Chega e Rui Rio, não querem é fazer nenhum.

Provavelmente, irão para o Fundo de Desemprego e, em vez de receberem o RSI, passam a receber o subsídio de desemprego.

Ou então, emigram.

Não sei qual é o espanto.

Então, o líder do Chega, o Senhor Doutor Por Extenso André Ventura não era militante do PSD?

O que esse Senhor Doutor Por Extenso fez foi seguir a tradição de muitos militantes do PSD ““ virar í  direita.

Recordo Zita Seabra, que guinou do PCP para o PSD.

E Durão Barroso, que viajou do MRPP para o PSD.

Portanto, não espanta que Rio desague no Chega.

Que lhe faça muito bom proveito, mas depois, Dr. Rui Rio, quando se afogar, não se queixe.

“Rapariga, Mulher, Outra”, de Bernardine Evaristo (2019)

Em 2019, houve duas vencedoras do Man Booker Prize.

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Apesar do Prémio ter Man no nome, foram duas mulheres as vencedoras: Margaret Atwood, pelo seu livro Testamentos e este excelente Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo.

Quase que apetece dizer que o júri do Man Booker não se atreveu a conceder o prémio apenas í  escritora anglo-nigeriana, e resolveu juntar o nome de Margaret Atwood. De facto, Rapariga, Mulher, Outra é, na minha opinião, muito melhor que Testamentos.

Evaristo nasceu em Londres em 1959, filha de uma professora inglesa e de um soldador nigeriano, quarta de oito filhos.

É autora de romance, poesia, teatro e crítica literária e, com este Rapariga, Mulher, Outra, conseguiu um dos melhores livros que li ultimamente.

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Numa escrita torrencial, conta-nos as histórias de doze mulheres: Amma, uma dramaturga negra e lésbica, Shirley, sua amiga, professora, farta da profissão; Carole, ex-aluna de Shirley, uma bem-sucedida gestora de fundos de investimento, que se envergonha das suas raízes africanas, a sua mãe, Bummi, negra e empregada doméstica; e mais oito personagens femininas principais, para além de outras que cirandam í  volta destas.

São quase 500 páginas de histórias que nos mantêm agarrados, e sempre com uma linguagem fresca, sem grandes rodriguinhos.

Claro que não conheço a versão original, em inglês, mas atrevo-me a dizer que a tradução de Miguel Romeira é excelente.

Marcelo esqueceu-se de um bastonário

O presidente Marcelo não sabe estar quieto. Nunca soube.

Quando era “…jornalista”, aborrecido pela rotina, criava factos políticos, inventava acontecimentos e, depois, comentava-os.

Tornou-se assim o comentador-mor, primeiro na rádio, depois na televisão.

Aos domingos, religiosamente, Marcelo e a sua homilia.

Agora, sendo presidente de um regime que não é presidencialista, faz tudo o que pode para manter o estatuto de comendador.

Será que se vai candidatar a um segundo mandato?

Claro que sim!

Mas só o saberemos quando não houver alternativa, quando ele for obrigado, pela lei, a anunciar que é candidato.

Entretanto, sendo presidente, pode continuar a fazer campanha.

E mete-se em tudo.

Na pandemia, claro.

Agora que a segunda vaga atinge Portugal e toda a Europa, Marcelo decidiu ouvir diversos sectores ligados í  saúde.

Começou pelo actual e por antigos bastonários dos médicos. Miguel Guimarães, que ficaria muito bem como ministro da Saúde do PSD, que, ao longo destes meses, tem criticado as decisões da DGS e do governo, sem apresentar alternativas, foi acompanhado pelos ex-bastonários, quase todos anciãos curvados sobre si próprios ““ um clube de senadores que quer sopas e descanso e que, muito provavelmente, tem apenas uma vaga ideia do que são os serviços de saúde actualmente em Portugal. Gentil Martins, com 90 anos e Carlos Ribeiro, com 94, ambos ex-bastonários, não fazem ideia do que é ser médico na comunidade. nos dias que correm, sobretudo junto dos bairros sociais construídos quando eles já se estavam a reformar.

Depois de ouvir as doutas opiniões destes anciãos, Marcelo ouviu, também, a bastonária dos enfermeiros, aquela senhora que usa apenas um brinco e que gosta de dar beijos ao líder do Chega, e a bastonária dos farmacêuticos.

Mas Marcelo esqueceu-se de um bastonário, quiçá o mais importante: o bastonário dos auxiliares, daqueles que dão a comida í  boca dos acamados, dos que despejam as arrastadeiras, dos que levam para o lixo as algálias.

Qual será a opinião dessa malta sobre a pandemia?

Estou a brincar?

Não me parece.

Se tiveres algum familiar internado e quiseres saber informações sobre o seu estado clínico, a quem pedes informações?

Se falares com um médico ou uma enfermeira, vão responder-te que não podem dar informações sobre doentes internados.

No entanto, se falares com a porteira do teu prédio, que é prima de uma moça que é auxiliar no hospital, posso garantir que vais ter informações sobre o teu familiar.

Marcelo devia ter falado com o bastonário dos auxiliares.

Só assim seria verdadeiramente democrático…

“Os Três Irmãos Que Nunca Dormiam”, de Giuseppe Plazzi (2019)

Giuseppe Plazzi (Ravena, 1959) é um Neurologista italiano, responsável pelo Centro para o Estudo e Cura dos Distúrbios do Sono, além de professor na Universidade de Bolonha.

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Tal como o também neurologistas norte-americano, Oliver Sacks, Plazzi escreveu este pequeno livro contando-nos histórias de alguns dos seus doentes com distúrbios do sono: sonambulismo, terrores nocturnos, sexsónia, perturbação do sono REM, narcolepsia, parasónia.

Cada capítulo é dedicado a uma destas patologias e, a propósito, Plazzi conta-nos o caso de um dos seus doentes.

A linguagem é simples e o livro tem, também, intuito pedagógico e confesso que aprendi muito com ele ““ até porque muitos dos distúrbios do sono só começaram a ser estudados verdadeiramente muito depois de terminarmos os nossos cursos.