“Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas”, de António Mega Ferreira (2022)

Este foi o último livro publicado por Mega Ferreira (1949-2022) e é um pequeno dicionário de palavras que caíram em desuso.

O autor aproveita cada uma dessas palavras para recordar momentos da sua infância ou da sua adolescência e, como Mega Ferreira nasceu poucos anos antes de mim, muitas dessas recordações tiveram eco em mim.

Podia citar várias passagens deste pequeno livro, mas esta é muito significativa. A propósito da palavra capelista, escreve:

“No meu trajecto infantil para a escola da Rua das Pedras Negras, passava todos os dias por duas capelistas. A maior, situada defronte da igreja de São Cristóvão, propunha, além das retrosarias que lhe davam razão, sabonetes (Musgo Real), pó de talco (Ausonia), pasta de dentes (Couto), creme de depilação (Taky), borrachas de apagar (Inexca) e lápis (Viarco), latinhas de creme Nivea e os rebuçados do Dr. Bayard.”

O livro apresenta-se em forma de dicionário e ainda na letra C, encontra-se a palavra comboios que, apesar de tudo, está outra vez a usar-se mais, talvez devido à prolongada greve dos maquinistas. Mas o que Mega Ferreira nos conta nesta entrada do seu Roteiro, é que morou, durante algum tempo em Mem Martins, o que é uma coincidência. Penso que ele terá morado aí na mesma altura em que eu morava no Algueirão. E, morando na linha de Sintra, ia todos os dias para Lisboa de comboio e…

“Ora, o comboio da linha de Sintra foi o veículo através do qual me fiz ao mundo. Conheci comerciantes e funcionários públicos, bancários e militares, estudantes e jornalistas, solicitadores e comissionistas, professores e despachantes de alfândega (profissão que caiu em desuso, entretanto). Andava-se menos, muito menos, de automóvel, nessa época. No comboio, jogava-se à sueca, lia-se o Diário de Notícias e o Século (as senhoras eram muito da Crónica Feminina), e os mais novos, todos estudantes, discutiam política, às vezes veladamente, outras nem tanto.”

Um livro muito curioso, que aconselho.

“Em Português Nos (Des)Entendemos”, de João Carlos Brito (2020)

Mais um livrinho curioso que se lê de uma penada.

O seu autor, licenciado em Línguas e Culturas Modernas, lista aqui uma série de regionalismos, termos de calão e linguagem corrente e fornece uma possível explicação para cada um.

Por vezes, a explicação que o autor dá pareceu-nos um pouco fantasiosa ou demasiado enviesada, mas enfim, não deve ser fácil descobrir por que raio os habitantes do Porto chamam jeco ao cão, ou os do Ribatejo digam que cramunhar é o mesmo que fazer muito barulho.

O livro não pretende ser exaustivo, razão pela qual, nos vários termos usados pelos do Porto, não aparece, por exemplo, o célebre cimbalino. Para já não falar nos termos que o autor escolheu para Lisboa, e onde não figuram dar de frosques, chatear o Camões, dar corda aos sapatos e muitos outros.

O autor dividiu o livro em capítulos e cada capítulo refere-se a uma região do país.

Ficámos a saber, por exemplo, que, no Minho, um cachecol é cochiné; em Trás-os-Montes, bodalhice é uma porcaria; no Porto, aloquete é um cadeado; nas Beiras, apichar é avivar o lume; no Ribatejo, afonicar é estragar; no Alentejo, uma pessoa simples é um parrascano; no Algarve, feniscadinho é um tipo muito magro; na Madeira, chinesa é um chávena de café com leite; e nos Açores, ministra é uma mesa de cabeceira.

“Dicionário Sentimental do Adultério”, de Filipa Melo (2017)

Filipa Melo é jornalista desde 1990 e tem já um extenso currículo, colaborando em inúmeras publicações e também nas televisões.

No ano passado, a Quetzal editou-lhe este curioso dicionário que me proporcionou algumas horas de puro entretenimento.

De A a Z, a autora vai contando pequenas anedotas, factos históricos, citações célebres, definições, estatísticas, opiniões – tudo relacionado com o adultério e ofícios correlativos, digamos assim…

Claro que não podia faltar a brejeirice mais requintada, como é o caso do poema de Martim Soares, escrito por volta de 1240, e que diz assim (página 40):

Pero Rodrigues, da vossa mulher/ não acrediteis no mal que vos digam
Tenho eu a certeza que muitos vos quer/ Quem tal não disser quer fazer intriga
Sabia que outro dia quando eu a fodia/ enquanto gozava, pelo que dizia
muito me mostrava que era vossa amiga

Na página 66, conta-se a história de D. João V e de um jantar que ofereceu a um padre que estava farto de ouvir, em confissão, o rei vangloriar-se das suas aventuras extra-conjugais.

Ao longo do jantar foram sendo servidas diversas iguarias mas, para o padre, apenas canja de galinha.

Quando, finalmente, o padre indagou por que motivo só lhe serviam canja de galinha e nada de trutas, perdizes ou javalis, D. João V terá retorquido: “Está a ver, senhor padre… nestas coisas de comeres, não há como variar. Nem sempre galinha, nem sempre rainha”.

Na página 73, a entrada “Efeito Coolidge” conta-nos a história da visita do Presidente dos EUA, Calvin Coolidge, e da sua mulher, a uma fazenda experimental:

“Caminhando um pouco adiante do marido, esta (a mulher) chegou primeiro ao galinheiro, onde o funcionário responsável a informou de que o galo copulava cerca de dez vezes por dia. Então, ela pediu-lhe: «Diga isso ao meu marido, se faz favor».

Ao receber o recado, Coolidge perguntou: «Mas o galo copula sempre com a mesma galinha?». O funcionário garantiu-lhe que não. Não, senhor, o galo copulava com uma galinha diferente de cada vez. Então, foi a vez de Coolidge pedir: «Diga isso à minha mulher, se faz favor».

Mas não se pense que o dicionário se limita a estas pequenas, mas deliciosas, anedotas; há muito mais material para nos entretermos.

Aconselho.

“Como É Possível Ser Português?”, de Michel BJ Cartier

Nascido em 1939, em França, Cartier vive em Portugal há anos o que o fez aventurar-se a escrever esta espécie de dicionário, directamente em português.

Não faria mal nenhum, não fosse o caso de, aqui e ali, não se perceber o que ele quer dizer. Além disso, não houve grande cuidado na revisão do texto, já que Cartier repete a mesma coisa várias vezes, em partes diferentes do livro. Por exemplo, sobre o herói de BD Tintin, esclarece que o nome do seu autor Hergé, é um pseudónimo de Georges Remi, pelo menos, em dois trechos do livro. Também refere, em três ocasiões diferentes, que a palavra “azar” provém do árabe az-zahr, que significa dado. E estes são apenas dois de muitos exemplos de repetições desnecessárias e que poderiam ter desaparecido se o texto tivesse sido revisto.

Como estrangeiro que é, Cartier sacou bem alguns vícios da nossa língua coloquial e quase que consegue ter alguma graça.

Exemplo, com a palavra “andar”:

«Deslocar-se a pé. Em outras palavras, indica e traduz a locomoção. Mas é também sinónimo de piso (Eu moro no 5º andar). e mesmo de apartamento (Visite o nosso andar modelo). Não confundir com “andor” (apesar do facto de que o mesmo não pode andar sozinho). Se alguém pode perfeitamente andar a correr, a recíproca não existe (e porque não?). Usa-se também peremptoriamente associado com “tocar” na expressão definitiva, sinónima de “E pronto!” ou “Vamos embora!”: Toca a andar! (pronunciada: tocandar). Encontra-se também em expressões curiosas e automáticas feitas principalmente pelo telefone, tais como: “Onde é que tu andas?”, ou: “O que é que tu andas a fazer?” Os pais podem também chamar a atenção do filho ou da filha, exigindo: “Anda cá!”»

Se o autor se tivesse cingido à análise destas palavras ou frases da nossa linguagem do dia-a-dia, talvez tivesse conseguido fazer um livrinho coerente e simpático, fazendo lembrar um brilhante Elucidário de Conhecimentos Quase Inúteis (1985), de Roby Amorim, pequena publicação onde eram explicadas as origens dde algumas expressões correntes, como “ir para o maneta”.

Mas Cartier mistura muita coisa, pequenas informações linguísticas, datas históricas, citações de filósofos e escritores franceses e até referências à actualidade política (uma das entradas, por exemplo, é TGV…)

E por vezes, parece que se perde no português, que perde o fio à meada. Um exemplo: a propósito da palavra “dias”, espanta-se por usarmos “segunda, terça, quarta, quinta, sexta”, enquanto os ingleses e os franceses têm um nome para cada dia da semana. Mas, depois, acrescenta: «Infelizmente, os Portugueses não são os únicos originais neste aspecto: também os Gregos (apesar dos inumeráveis deuses da Antiguidade) “traduzem” os quatro primeiros dias da semana, contando por números ordinais (no feminino, como em Português), depois do Sábado (Savvato que é neutro) e do Domingo (Kuriaki, também feminino); Sexta-feira, também no feminino, se diz Paraskevi. Onde é que se encontra e exclusividade ou originalidade portuguesa? Mas, de todo o jeito e em poucas palavras: Deus seja louvado

Perceberam? Eu não.

E há muitos trechos destes no livro, o que é pena, porque o resultado final acaba por ser um pouco entediante.

Acrescentaria: o autor pergunta “Como é possível ser português?” e eu pergunto: “como é possível uma editora publicar um livro destes?”