“Love”, de Toni Morrison (2003)

—Toni Morrison, aliás, Chloe Ardelia Wofford, nasceu em 1931, no Ohio, e foi galardoada com o Prémio Nobel em 1993.

Love” é o seu oitavo romance e conta-nos a história de Bill Cosey e dos seus amores.

A diferença é que a história é contada através das mulheres que rodearam Cosey, nomeadamente, a filha e a segunda mulher, que têm praticamente a mesma idade, já que Cosey casou com uma miúda de 11 anos, quando já tinha uma filha, mais ou menos com essa idade.

—A outra diferença é que a história é contada aos solavancos no tempo, para trás e para a frente, nem sempre desvendando tudo e o leitor tem que ir juntando as peças do puzzle.

Só bem a meio do livro se tem uma ideia geral do que se passa e, mesmo assim…

Confesso que antes de ler este livro desconhecia que Toni Morrison era afro-americana. Depois, quando tomei conhecimento desse facto, percebi melhor a sua escrita. De facto, ao lermos esta história, só perifericamente damos conta que estamos perante personagens de raça negra.

A escrita de Toni Morrison é “poética”, no sentido em que utiliza imagens novas para descrever acções e sentimentos, mas a leitura do livro não é fácil e requer atenção redobrada.

A edição da Dom Quixote, com a tradução, penso que correcta, de Maria João Freire de Andrade, tem um erro de português indesculpável na página 147: «Ele estava ali para o que ela precisa-se».

Não se admite!

“O Cemitério de Praga”, de Umberto Eco (2010)

Se me perguntassem qual é o tema deste romance de Umberto Eco teria alguma dificuldade em fazer um resumo correcto, tal é a diversidade de acontecimentos e de personagens que povoam estas 557 páginas.

—O livro é apresentado sob a forma do diário de um tal Simone Simonini, notário e falsificador, e única personagem inventada das histórias verídicas que percorrem os últimos anos do século 18, que passam por Turim, Palermo e Paris e envolvem Garibaldi, a Comuna de Paris, o caso Dreyfus, a guerra entre católicos, maçons e judeus, as voltas e as reviravoltas da espionagem e contra-espionagem. E muitas outras coisas.

Tantas e tão variadas que, por vezes, é difícil acompanhar a narrativa, ainda por cima porque, por vezes, ela recorre a flashback. Confesso que, í s tantas, já não sabia muito bem a quem Simonini se referia. Para complicar ainda tudo isto, Simonini assume uma dupla personalidade, sendo por vezes o abade Dalla Picolla…

Por todo o texto perpassa um ódio intenso aos hebreus, como neste naco:

«E quando eu já era suficientemente crescido para entender, recordava-me de qu o hebreu, além de vaidoso como um espanhol, ignorante como um croata, cúpido com um levantino, ingrato como um maltês, insolente como um cigano, imundo como um inglês, gorduroso como um calmuco, imperioso como um prussiano e maledicente com um astiense, é adúltero por cio irrefreável – depende da circuncisão, que os torna mais erécteis, com uma desproporção monstruosa entre o nanismo da corporatura e a capacidade cavernosa daquela sua excrescência semimutilada.»

Dos padres, Simonini também não gostava:

«Começas a tê-los í  tua volta assim que nasces, quando te baptizam, voltas a encontrá-los na escola, se os teus pais foram tão beatos que te confiaram a eles, depois há a primeira comunhão, e a catequese, e o crisma; o padre está no dia do teu casamento a dizer-te o que deves fazer no quarto, e no dia seguinte a perguntar-te na confissão quantas vezes fizeste aquilo para poder excitar-se por detrás da grade. Falam-te com horror do sexo, mas todos os dias tu os vês sair de um leito incestuoso sem terem sequer lavado as mãos, e vão comer e beber o seu senhor, para depois o cagar e o mijar.

Repetem que o seu reino não é deste mundo, e metem as mãos em tudo aquilo que podem roubar. A civilização não chegará í  perfeição enquanto a última pedra da última igreja não tiver caído sobre o último padre, e a Terra tiver sido libertada daquela escória».

Mas além odiar os judeus, desprezar os padres e não poder com os jesuítas, também não vai muito í  bola com os alemães:

«Aos alemães conheci-os, e até trabalhei para eles: o mais baixo nível de humanidade concebível. Um alemão produz, em média, o dobro das fezes de um francês. Hiperatividade da função intestinal em prejuízo da cerebral, que demonstra a sua inferioridade fisiológica. Nos tempos das invasões bárbaras, as hordas germânicas cobriam o percurso com montões desrazoáveis de matéria fecal. Por outro lado, também nos século passados, um viajante francês percebia imediatamente se já tinha atravessado a fronteira alsaciana pela anormal dimensão dos excrementos abandonados ao longo das estradas. Mas se fosse só isso: é típica do alemão a bromidrose, ou seja, o odor repugnante do suor, e está provado que a urina de uma alemão contém vinte por cento de azoto, enquanto a das outras raças apenas quinze.»

E, de quando em vez, frases como esta: «uma mística é uma histérica que encontrou o seu confessor antes do seu médico».

Há autores que ficam colados a um determinado livro e será difícil que Umberto Eco se consiga descolar de “O Nome da Rosa” e, mesmo sem querer, acabamos por fazer comparações.

Mas é verdade que “O Cemitério de Praga” não me despertou tanto interesse.

Os alemães – fezes, suor e urina

“Um alemão produz, em média, o dobro das fezes de um francês. Hiperactividade da função intestinal em prejuízo da cerebral, que demonstra a sua inferioridade fisiológica. Nos tempos das invasões bárbaras, as hordas germânicas cobriam o percurso com montes desrazoáveis de matéria fecal. Por outro lado, também nos séculos passados, um viajante francês percebia imediatamente se já tinha atravessado a fronteira alsaciana pela anormal dimensão dos excrementos abandonados ao longo da estrada. Mas se fosse só isso: é típica do alemão a bromidrose, ou seja, o odor repugnante do suor, e está provado que a urina de um alemão contém vinte por cento de azoto, enquanto o das outras raças apenas quinze”.

– in “O Cemitério de Praga”, de Umberto Eco

“Os Crimes dos Viúvos Negros”, de Isaac Asimov (1971)

Isaac Asimov (1920-1992) é sobretudo conhecido pelas suas obras de ficção científica. No entanto, também escreveu algumas novelas e pequenas histórias que se podem enquadrar na chamada literatura policial.

—“Os Crimes dos Viúvos Negros” reúne uma dúzia de pequenas histórias publicadas no Ellery Queen’s Mystery Magazine, muito ao jeito dos mistérios de Connan Doyle ou Agatha Christie.

O esquema é sempre o mesmo: um grupo de homens reúne-se uma vez por mês, í  volta de uma refeição. Rejeitando a presença de mulheres, têm sempre um convidado que lhes propõe um mistério. Segue-se uma espécie de interrogatório e, no final, é o mordomo, Henry, que deslinda a história.

Confesso que o livro me desiludiu. As histórias são demasiado rebuscadas e os diálogos são fastidiosos.

Prefiro o Asimov dos robots.

“O Projecto Janus”, de Philip Kerr (2006)

Philip Kerr nasceu em Edinburgo, em 1956, é autor de 14 romances e colaborador de vários jornais britânicos.

—“O Projecto Janus” é um policial, í  boa maneira de Rex Stout ou Raymond Chandler, salvo as devidas distâncias.

O herói da história é um detective alemão, Bernie Gunther, que foi polícia antes da 2ª Grande Guerra, membro dos SS durante a Guerra, sem nunca ter pertencido ao partido nazi e que, depois da guerra, decide seguir a carreira de investigador particular.

Vai ser uma carreia curta, no entanto, já que Gunther se vê envolvido numa trama que o vai obrigar a mudar de vida. Essa trama envolve um médico nazi que fazia experiências de vacina contra a malária em prisioneiros, agentes da CIA e grupos de judeus perseguidores de criminosos nazis.

A acção decorre na Alemanha e na íustria e a recriação desses locais, no post-guerra, parece muito credível.

A linguagem mordaz de Kerr aproxima-se bastante dos escritores do romance negro norte-americano.

Exemplos:

«(a porta) abriu-se, revelando um homem numa cadeira de rodas, com os joelhos cobertos por uma manta e uma enfermeira de uniforme atrás. A enfermeira tinha um ar mais quente do que a manta e, instintivamente, percebi qual delas preferia ter ao colo. Estava a começar a sentir-me melhor.»

Outro exemplo:

«Pedi também um conhaque duplo por causa do frio. Pelo menos, foi a justificação que dei a mim mesmo. Mas sabia que era mais por causa do primeiro encontro com os advogados de Gruen. Os advogados causam-me inquietação. Como a ideia de apanhar sífilis.»

E mais:

«- Se quer saber, pode atribuir-se a culpa toda da Reforma í  cerveja forte – disse. – O vinho é uma bebida perfeitamente católica. Torna as pessoas ensonadas e cúmplices. A cerveja só as torna agressivas. E olhe para os países que consomem muita cerveja. São sobretudo protestantes. E os países onde se bebe muito vinho? Católicos romanos.»

Já há alguns anos que não lia um policial tão divertido.

“Contos Carnívoros”, de Bernard Quiriny (2008)

—Bernard Quiriny nasceu em 1978, na Bélgica e este é o seu primeiro livro publicado em português (edição Ahab, tradução de Miguel Serras Pereira).

São 14 histórias surpreendentes, umas mais inspiradas que outras, mas todas com uma linguagem que faz lembrar Edgar Alan Poe.

A imaginação de Quiriny permite-nos descobrir o bispo argentino que tem dois corpos, que usa aleatoriamente, a mulher-laranja, que se deixa descascar e beber pelos amantes, a tribo da Amazónia cuja língua ninguém compreende, ou o homem que consegue ouvir as pessoas falarem sobre ele, í  distância.

E ainda há Pierre Gould e Renouvier, duas personagens que surgem em várias histórias, não sendo os mesmos em todas elas.

Aconselho.

“O Colosso de Maroussi”, de Henry Miller (1941)

Henry Miller (1891-1980) não é um autor consensual.

Eu gosto muito de Henry Miller.

Comecei por ler, em 1972, Pesadelo Climatizado (The Air Conditioned Nightmare, 1945) e, no ano seguinte, O Olho Cosmológico (The Cosmoligical Eye, 1939), ambos em edição Estampa, numa colecção em que foram divulgados grandes autores, praticamente desconhecidos em Portugal.

Em 1977 li Sexo em Clichy (Quiet Days in Clichy, 1956), em edição brasileira e, dois anos depois, Um Diabo no Paraíso (A Devil in Paradise, 1956).

Em 1980 e 81, devorei os grandes clássicos de Miller: Trópico de Câncer (1934), Trópico de Capricórnio (1939), Sexus (1949), Plexus (1952) e Nexus (1960).

Em 1985 li, meio enjoado, o pornográfico Opus Pistorum (escrito em 1941 e descoberto em 1983) e Cartas a Anais Ninn (1965).

Em 1993, foi a vez de Crazy Cock (escrito em 1930 e publicado em 1991) e, finalmente, em 1997, Moloch (escrito em 1927 e publicado em 1992).

—E ao longo de todos estes anos, li várias referências a este O Colosso de Maroussi (1941), mas só agora, graças a esta edição da Tinta da China (tradução de Raquel Mouta), consegui lê-lo.

Alguns críticos e o próprio Miller consideram esta como a sua melhor obra literária. Não sei dizer se isso é verdade. Trata-se, de facto, de um livro excessivo, ao bom estilo exagerado de Miller, em que o autor expõe as suas ideias utópicas sobre a Humanidade.

Em 1941, Miller decidiu fazer uma pausa na sua actividade literária e, deixando Paris, onde residia, foi passar seis meses í  Grécia. A segunda guerra mundial já tinha começado há dois anos, mas Miller passa-lhe ao lado, tão fascinado que está pela Grécia, que ele elogia até ao infinito.

Página 28: «Os homens podem andar por aí no seu corropio insignificante e inútil, até mesmo na Grécia, mas a magia divina ainda aqui é operante e, por muito que a raça humana faça ou tente fazer, a Grécia continua a ser um local sagrado – e tenho a convicção de que assim continuará a ser até ao fim dos tempos.»

Claro que Miller não podia adivinhar que a Grécia dos nossos dias iria estar de joelhos, humilhada pelos Mercados e que o facto de ter sido o berço da civilização ocidental tem tanto valor como cascas de amendoins.

Fascinado pelos locais históricos gregos, Miller encontra neles a solução para todos os males.

Página 100: «Não precisamos de melhores instrumentos cirúrgicos, precisamos de uma vida melhor. Se todos os cirurgiões, todos os psicanalistas, todos os médicos em geral pudessem ser afastados da sua actividade e reunidos por um breve período no grande anfiteatro de Epidauro, se pudessem discutir em paz e sossego as necessidades urgentes e fundamentais da humanidade em geral, a resposta seria rápida e unânime: REVOLUí‡íƒO».

Ao longo do livro, Miller vai visitando o Peloponeso, Olímpia, Delfos, algumas ilhas gregas, faz amizade com escritores e artistas gregos, mas o que lhe interessa mais é o comum dos mortais. Glorifica a pobreza. Endeusa a simplicidade e diaboliza a América, como símbolo do capitalismo furioso.

E é excessivo nas palavras. Por exemplo, isto, a propósito de Saturno:

Página 127: «Saturno é um símbolo vivo da tristeza, morbidez, desgraça e fatalidade. A sua tonalidade de um branco leitoso desperta associações inevitáveis com tripas, matéria cinzenta, órgãos vulneráveis e ocultos, doenças repugnantes, tubos de ensaio, espécimes de laboratório, catarro, reuma, ectoplasma, tonalidades melancólicas, fenómenos mórbidos, guerras de íncubus e súcubus, esterilidade, anemia, indecisão, derrotismo, obstipação, antitoxinas, romances fracos, hérnias, meningite, letra-morta, burocracia, condições de vida da classe trabalhadora, fábricas clandestinas, a YMCA, encontros do Esforço Cristão, sessões espíritas, poetas como T. S. Elliot, fanáticos como John Alexander Dowie, curandeiras como Mary Baker Eddy, estadistas com Chamberlain, fatalidades triviais como escorregar numa casca de banana e partir a cabeça, sonhar com dias melhores e ficar entalado entre dois camiões, afogar-se na própria banheira, matar acidentalmente o nosso melhor amigo, morrer de soluços e não no campo de batalha, e assim por diante, ad infinitum».

Miller estava, nesta altura, muito zangado com a América e verdadeiramente apaixonado pela Grécia.

Página 245: «Hoje, como ontem, a Grécia é extremamente importante para quem pretende encontrar-se a si mesmo. A minha experiência não é única. E talvez devesse acrescentar que não há povo no mundo que precise mais daquilo que a Grécia tem para oferecer do que os americanos. a Grécia não é apenas a antítese da América, é mais do que isso, é a solução para os males que nos atormentam. Economicamente, pode parecer insignificante, mas espiritualmente a Grécia ainda é a mãe de todas as nações, a fonte da sabedoria e da inspiração».

Não deixa de ser irónico ler estas palavras num momento em que a Grécia está tão em baixo, dependente da ajuda internacional e, internamente, a braços com uma crise de identidade.

O Colosso de Maroussi é um livro curioso, sobretudo, pelos excessos e pela paixão de Miller e acaba por ser um livro de viagens, datado, é certo, mas vivido.

Ray Bradbury – morreu o autor de Fahrenheit 451

No passado dia 5, morreu Ray Bradbury. Tinha 91 anos e foi um dos mais influentes autores de ficção científica.

—Ficou famoso, sobretudo, por Fahrenheit 451, novela publicada no ano em que eu nasci, 1953.

Muito antes de ler o livro, li a adaptação cinematográfica que François Truffaut fez de Fahrenheit 451. O filme foi estreado em Portugal em dezembro de 1967 e já não me lembro se o vi no Estúdio 444 ou no Quarteto.

Lembro-me, no entanto, que o filme me impressionou, não só pela  Julie Christie, que impressionava muito boa gente nos anos 60, mas sobretudo pela história: uma sociedade onde os livros são proibidos; quem é apanhado com livros é severamente castigado e os livros são destruídos por uma brigada especial de bombeiros, que os queimam í  temperatura de 451 graus Fahenheit. Por isso, os defensores dos livros decidem decorar as grandes obras; cada militante é um livro. Encontram-se clandestinamente para recordarem, uns aos outros, as grandes obras, que assim se manterão, através da tradição oral.

E não terá sido através da tradição oral que as grandes obras nasceram?

Bradbury foi ainda autor de muitas short stories de ficção científica, muitas delas adaptadas ao cinema ouÂ í  televisão.

De Bradbury, para além de Fahrenheit 451, li ainda Muito Depois da Meia-Noite (Long After Midnight, 1974) e A íšltima Cidade de Marte (I Sing The Body Electric, 1948-1969), duas colectâneas de contos publicadas na colecção Argonauta, da qual fui fã na década de 80, e também o romance A Morte é um Acto Solitário (Death is a Lonely Business, 1985).

Entretanto, afastei-me da ficção científica e acho que já não tenho muita pachorra para esse estilo de histórias; ou então, escasseiam autores como Bradbury, Asimov, Philip K. Dick ou Robert Heinlein.

“A Questão Finkler”, de Howard Jacobson (2010)

—Vencedor do Man Booker Prize de 2010, aqui está um romance que me diz pouco.

O The Times fala na musicalidade da linguagem de Jacobson. Talvez no original inglês isso se note – em português, não dei por nada de especial.

O romance conta-nos a história de Julian Treslove, um tipo banal, que, depois de ter sido assaltado, na rua, por uma carteirista, que o insulta, chamando-lhe judeu, decide transformar-se num verdadeiro judeu.

Treslove tem dois grandes amigos, Libor e Finkler, ambos viúvos e ambos judeus, mas não muito praticantes. Libor, o mais idoso, é mais ou menos indiferente e Finkler, assume-se como judeu envergonhado, por causa do conflito israelo-árabe.

O livro está cheio de piadas sobre os judeus. Os filmes do Woody Allen também e, na minha opinião, têm mais piada.

Não me convenceu.

“Life” – de Keiht Richards, com James Fox

Diz-se que, quando o mundo acabar, restarão as baratas e Keith Richards. Ao ler esta autobiografia percebe-se porquê.

Numa linguagem adequadamente coloquial, o guitarrista e co-fundador dos Rolling Stones conta-nos as histórias da sua vida – e muitas histórias tem ele para contar!

Começamos pela infância de Keith, na Inglaterra do post-guerra, e ficamos a saber que os pais viviam com dificuldades. Filho único da Doris e do Bert, Keith cedo se destacou pelo mau comportamento:

Na página 62 conta-nos a perseguição que ele e outros moviam a um miúdo que se «julgava um generalzinho, só por ser capitão da equipa desportiva, o melhor da turma, e o representante de todos os delegados. Andava sempre de peito inchado e era muito arrogante com os miúdos mais novos. Decidimos pagar-lhe da mesma moeda. Lembro-me bem dele, chama-se Swanton. Chovia e fazia frio. Primeiro, despimo-lo, depois perseguimo-lo até ele trepar a uma árvore. Só lhe deixámos o boné com as fitinhas douradas. Muito depois de ele descer da árvore, o Swanton viria a tornar-se professor de estudos medievais na Universidade de Exeter.»

A memória de Richards é prodigiosa, lembrando-se de como e quando e com quem tocou o quê – ou então, foi capaz de manter uma espécie de diário, estes anos todos, o que pareceria improvável para um tipo que, como ele, foi heroinómano muitos anos, para além de ter experimentado todo o tipo de drogas, lícitas e, sobretudo, ilícitas.

—Richards conta-nos como nasceram os Rolling Stones, uma banda despretensiosa, que apenas queria tocar blues de Chicago mas que, quase por acaso, começou a fabricar grandes êxitos. Um dos primeiros foi As Tears Go By, que valeram a Richards, as primeiras libras a sério.

Diz ele, na página 181: «Ainda me lembro do primeiro dinheiro a sério que recebi. (…) Punha-me a olhar para as notas. Contava-as, voltava a admirá-las. Tocava-as, cheirava-as. Não fiz nada com elas! Só as guardei numa caixa, enquanto pensava: “Foda-se! A massa que eu tenho!” Não queria comprar nada em particular e também não a queria estoirar. Pela primeira vez na vida, tinha dinheiro… “Talvez compre uma camisa nova, cordas novas para a guitarra”. Mas era, sobretudo: “Nem acredito nesta merda!” Com as fuças da rainha bem impressas, assinadas pelo tipo certo. Nunca tinha tido tanto dinheiro nas mãos., mais do que o meu pai ganhava num ano, ele que se matava a bulir.»

Richards era mesmo um pobretanas e, graças í  música, tornou-se num milionário, proprietário de Bentleys e de várias mansões em, pelo menos, três continentes.

Autor de muitas das músicas dos Stones (Mick Jagger, embora também componha, dedica-se mais í s letras), Richards vai-nos contando os altos e baixos da banda, a morte de Brian Jones, a saída de Bill Wyman, a entrada e a saída de Mick Taylor, a entrada de Ronnie Wood e, por vezes, não é nada meigo para com os seus companheiros.

Critica muito Brian, pelo seu gosto pelo vedetismo e por andar sempre tão drogado que pouco contribuía para a banda, fala, amargamente, dos desentendimentos com Jagger, nos últimos 20 anos, mais coisa menos coisa, o que não os impediu de continuar a compor e fazer mega-digressões. De Charlie Watts, o baterista, só diz bem…

Fala-nos, também, das suas namoradas e esposas e, claro, da sua dependência da heroína.

Na página 329, a propósito de uma das muitas curas a que se submeteu: «Não sei bem qual é a ideia que as pessoas em geral fazem de uma verdadeira crise de privação. (…) O corpo revira-se todo de dentro para fora; rejeita-se a si mesmo durante três dias. Sabes que depois disso há-de acalmar, mas serão os três dias mais longos da tua vida. É então que te perguntas: “Por que raio me sujeito eu a isto, quando podia estar a viver uma puta de uma vida perfeitamente normal de estrela de rock cheia de pasta?” Em vez disso, estás ali aos vómitos e a trepar pelas paredes. Por que é que te sujeitas a isso? Não sei, continuo sem saber. Com a pele arrepiada e as tripas num remoinho, braços e pernas aos safanões incontroláveis, vomitas-te e cagas-te ao mesmo tempo, tens merda a sair-te do nariz e dos olhos. í€ primeira vez que acontece a sério, um homem sensato diz: “Estou agarrado”. Mas nem isso impede um homem sensato de voltar í  carga.»

Uma boa parte do livro é dedicada í s digressões dos Stones, começando pelas primeiras, em ambiente familiar, com um ou dois autocarros, até í s mais recentes, que envolvem centenas de pessoas e de veículos. Os acompanhantes dessas digressões podem ser, por vezes, bem curiosos, como um tal Dr. Bill (nome fictício), que acompanhou a banda na digressão de 1972.

Richards conta, na página 333: «Mas o Dr. Bill estava ali, sobretudo, para caçar pachachas. Sendo ele um médico jovem e atraente, foi coisa que não lhe faltou. Mandou fazer cartões de visita: “Dr. Bill”, digamos assim, “Médico dos Rolling Stones”. Antes do concerto começar, ele escrutinava cuidadosamente o público e entregava vinte ou trinta cartões í s gajas mais boas que encontrasse, mesmo que estivessem com namorado. No verso do cartão, o nome do hotel e o número da suite. E mesmo as tipas com namorado apareciam, mais tarde, para o visitar. Mostravam o cartão na recepção e o Dr. Bill sabia que de entre seis ou sete miúdas, pelo menos uma ou duas havia de comer, só por lhes prometer que as apresentaria aos Stones.  Queca garantida todas as noites. Além disso, tinha uma mala cheia das mais variadas substâncias, Demerol ou qualquer merda que lhe pedisses.»

Problemas com as autoridades teve Richards de sobra, tendo estado detido várias vezes, a maior parte delas por posse de droga. Mas, certa vez, na Austrália, a razão foi outra.

Conta ele, na página 355: «E ainda houve a pequena temporada que eu e o Bobby passámos com duas gajas que engatámos em Adelaide. (…) Tinham ácido, que nem é uma das minhas drogas preferidas, mas tínhamos dois ou três dias de folga em Adelaide, as tipas eram jeitosas e viviam num pequeno bungalow hippie no cimo de uma colina, muitas velas e incenso e candeeiros a petróleo cheios de fuligem. (…) E quando tivemos que partir para Perth, na outra ponta da porra do continente, , dissemos-lhes: “Por que é que não vêm connosco?” Vieram mesmo. Estávamos todos mais pedrados que o Grand Canyon quando entrámos no avião. A meio caminho entre Adelaide e Perth, saíram de repente as duas da casa de banho, seminuas. Tinham-se estado a comer lá dentro e saíram aos saltos e aos risinhos, as destrambelhadas das tipas. (…) E, de facto, detiveram-nos aos quatro por algum tempo, depois de aterrarmos.»

Quase no final do calhamaço, Keith Richards conta o episódio recente, em que caiu de uma árvore, tendo feito uma fractura do crânio e respectivo hematoma subdural. E diz, na página 562: «Receitaram-me um medicamento chamado Dilantin, que torna o sangue mais espesso. Por causa disso, não voltei a snifar coca, que o torna mais liquefeito, tal como a Aspirina. Foi o Andrew quem mo explicou, na Nova Zelândia. “Faça o que fizer, acabou-se a cocaína!” Tudo bem, pá. A bem dizer, já tinha dado í  narina quanto chegasse para uma vida inteira; não sinto a falta da coca nem um bocadinho. Acho que foi ela que se fartou de mim.»

De facto, com tantos excessos cometidos ao longo de quase 70 anos, chegamos í  conclusão que foram as drogas e o álcool que se fartaram deste Rolling Stone genuíno.

“Life” é um livro que se lê com agrado, como um conjunto de histórias mais ou menos divertidas e, ainda, como um testemunho de um dos protagonistas da revolução que a música pop-rock causou nos usos e costumes do mundo ocidental, nos finais da década de 60.

Como bónus, Richards explica-nos como afina as suas mais de cem guitarras, com 5 cordas e em open tunning.