“A Misteriosa Chama da rainha Loana”, de Umberto Eco (2004)

Este romance de Umberto eco estava esquecido na nossa estante desde que o comprámos na feiro do Livro de 2005, sei lá porquê.

Mas chegou a vez dele, lido em voz alta nos últimos dias.

Eco inventa a personagem do sexagenário Yambo que, depois de sofrer um AVC fica com amnésia seleccionada ““ isto é, recorda-se de episódios da História, mas deixou de saber quem é, não reconhece a mulher, as filhas e os netos.

—

Depois de ter alta, Yambo refugia-se numa casa de campo da família, onde, quando jovem passou os anos da Segunda Grande Guerra e é nessa casa que vasculha o sótão e descobre livros, revistas, jornais, discos e outras coisas que, a pouco e pouco, o vão ajudar a reconstituir a sua memória.

Este foi o truque que Umberto Eco (1932-2016) usou para escrever um livro baseado nas suas próprias memórias da juventude. Partilho algumas dessas memórias, embora Eco tenha nascido mais de 20 anos antes de mim. Alguns dos seus heróis, continuaram a ser os meus, sobretudo através do Mundo de Aventuras, como é o caso do Flash Gordon, Fantasma, Dick Tracy e outros.

Nas suas investigações no sótão, Yambo encontrou, por exemplo, alguns números da revista A Defesa da Raça. Em Itália, o fascismo sempre foi mais declarado do que em Portugal:

“…Havia fotos de aborígenes comparadas com as de um macaco, outras que mostravam o resultado monstruoso do cruzamento entre uma chinesa e um europeu (mas eram fenómenos de degeneração que, segundo parecia, só aconteciam em França). Falava-se bem da raça japonesa e evidenciavam-se os estigmas imprescindíveis da raça inglesa, mulheres com papada, cavalheiros rubicundos com nariz de alcoólicos, e uma ilustração mostrava uma mulher com o capacete britânico, impudicamente coberta por algumas folhas do Times em forma de fato de ballet; a mulher olhava-se ao espelho e Times, ao contrário, lia-se Semit. Quanto aos judeus propriamente ditos, era só escolher: era uma coleção de narizes aduncos e barbas desgrenhadas, de bocas porcinas e sensuais com dentes saídos, de crânios braquicéfalos, de maçãs de rosto marcadas e olhos tristes de Judas hierosolimita, de ventres incontinentes e de tubarões de fraque, com a corrente do relógio em ouro no colete, as mãos rapaces estendidas para as riquezas dos povos proletários.”

A infância de Yambo foi passada durante o tempo de Mussolini e o jovem sentia-se dividido entre a Igreja e o pecado, entre o fascismo e o esquerdismo do aví´.

“…Revejo uma cena rápida, que talvez se tenha passado alguns anos antes. Pergunto:

– Mãe, o que é uma revolução?

– É quando os operários vão para o governo e cortam a cabeça aos empregados de escritório como teu pai.”

Na adolescência, Yambo começa a contactar com adultos que se opõem ao regime fascista. Um deles, Gragnola, achava que quase todos eram fascistas.

Certo dia, Yambo perguntou-lhe quem era Hegel.

“…- Hegel não era panteísta, e o teu Melzi é um ignorante. Giordano Bruno, esse sim, era panteísta. Um panteísta diz que Deus está em todo o lado, até mesmo naquela cagadela de mosca que vês ali. Imagina o gozo, estar em todo o lado é como estar em lado nenhum. Bom, para Hegel, não era Deus, mas o Estado que devia estar em todo o lado, portanto, era um fascista.

– Mas não viveu há mais de cem anos?

– E que importa? A Joana d”™Arc também, uma autêntica fascista. Os fascistas sempre existiram. Desde os tempos… desde os tempos de Deus. O próprio Deus. Um fascista.”

Mais um bom livro de Umberto Eco, ainda por cima, ricamente ilustrada com imagens das inúmeras publicações que Yambo descobre no sótão.

“Número Zero” de Umberto Eco (2015)

Quem diria que Umberto Eco, agora com 83 anos, tinha um sentido de humor tão apurado e era capaz de escrever uma sátira tão bem esgalhada.

É que depois de títulos, digamos, tão sisudos como O Nome da Rosa, O Pêndulo de Foucault ou O Cemitério de Praga, eu não estaria í  espera de um Número Zero tão bem disposto e que se lê de uma penada (também são só 160 páginas e eu, ultimamente, só tenho lido tijolos de 600 páginas, no mínimo!)

numero zeroO Número Zero é sobre um jornal, chamado Amanhã, financiado por um Comendador, que pretende editar apenas números zero, com notícias e artigos que possam ameaçar certas pessoas importantes, a quem o Comendador queira influenciar.

Nas primeiras páginas do livro, Eco denuncia os truques que a comunicação social utiliza para nos implantar determinadas opiniões. Claro que o jornalista não pode e não deve emitir uma opinião, mas pode sempre entrevistar um popular que emite essa opinião por ele.

Os diálogos entre os vários jornalistas da redacção são bem divertidos, como este, por exemplo:

«No seu artigo sobre as prostitutas usa expressões como fazer um cagaçal, encanzinamento, conversa de merda e põe em cena uma putéfia que diz vai levar no cu»

«Mas é assim», protestou Constanza. Agora todos usam palavrões, mesmo na televisão, e dizem caralho, inclusive as senhoras.»

«O que faz a alta sociedade não nos interessa. Nós devemos pensar nos leitores que têm ainda medo dos palavrões.»

Um dos jornalistas, entretanto, está a investigar a possibilidade de Mussolini não ter sido assassinado e estar ainda vivo, quem sabe, na Argentina e tudo isso envolveria uma teoria da conspiração gigantesca. O desenvolvimento desta história acabará por levar ao fim do jornal e, sinceramente, cheira-me que Eco queria mesmo contar esta história mas, como não dava para fazer uma romance, envolveu-a na história do jornal.

Número Zero é uma pequena novela que se lê rapidamente e com prazer.

Uma pequena nota para um erro frequente em português, mas que não se devia ver num livro.

Está na página 52 e seguintes:

«Porque crescem as bananas nas árvores», em vez de “por que crescem as bananas nas árvores”. Esta confusão entre “porque” e “por que” repete-se mais de vinte vezes! É obra!

“O Cemitério de Praga”, de Umberto Eco (2010)

Se me perguntassem qual é o tema deste romance de Umberto Eco teria alguma dificuldade em fazer um resumo correcto, tal é a diversidade de acontecimentos e de personagens que povoam estas 557 páginas.

—O livro é apresentado sob a forma do diário de um tal Simone Simonini, notário e falsificador, e única personagem inventada das histórias verídicas que percorrem os últimos anos do século 18, que passam por Turim, Palermo e Paris e envolvem Garibaldi, a Comuna de Paris, o caso Dreyfus, a guerra entre católicos, maçons e judeus, as voltas e as reviravoltas da espionagem e contra-espionagem. E muitas outras coisas.

Tantas e tão variadas que, por vezes, é difícil acompanhar a narrativa, ainda por cima porque, por vezes, ela recorre a flashback. Confesso que, í s tantas, já não sabia muito bem a quem Simonini se referia. Para complicar ainda tudo isto, Simonini assume uma dupla personalidade, sendo por vezes o abade Dalla Picolla…

Por todo o texto perpassa um ódio intenso aos hebreus, como neste naco:

«E quando eu já era suficientemente crescido para entender, recordava-me de qu o hebreu, além de vaidoso como um espanhol, ignorante como um croata, cúpido com um levantino, ingrato como um maltês, insolente como um cigano, imundo como um inglês, gorduroso como um calmuco, imperioso como um prussiano e maledicente com um astiense, é adúltero por cio irrefreável – depende da circuncisão, que os torna mais erécteis, com uma desproporção monstruosa entre o nanismo da corporatura e a capacidade cavernosa daquela sua excrescência semimutilada.»

Dos padres, Simonini também não gostava:

«Começas a tê-los í  tua volta assim que nasces, quando te baptizam, voltas a encontrá-los na escola, se os teus pais foram tão beatos que te confiaram a eles, depois há a primeira comunhão, e a catequese, e o crisma; o padre está no dia do teu casamento a dizer-te o que deves fazer no quarto, e no dia seguinte a perguntar-te na confissão quantas vezes fizeste aquilo para poder excitar-se por detrás da grade. Falam-te com horror do sexo, mas todos os dias tu os vês sair de um leito incestuoso sem terem sequer lavado as mãos, e vão comer e beber o seu senhor, para depois o cagar e o mijar.

Repetem que o seu reino não é deste mundo, e metem as mãos em tudo aquilo que podem roubar. A civilização não chegará í  perfeição enquanto a última pedra da última igreja não tiver caído sobre o último padre, e a Terra tiver sido libertada daquela escória».

Mas além odiar os judeus, desprezar os padres e não poder com os jesuítas, também não vai muito í  bola com os alemães:

«Aos alemães conheci-os, e até trabalhei para eles: o mais baixo nível de humanidade concebível. Um alemão produz, em média, o dobro das fezes de um francês. Hiperatividade da função intestinal em prejuízo da cerebral, que demonstra a sua inferioridade fisiológica. Nos tempos das invasões bárbaras, as hordas germânicas cobriam o percurso com montões desrazoáveis de matéria fecal. Por outro lado, também nos século passados, um viajante francês percebia imediatamente se já tinha atravessado a fronteira alsaciana pela anormal dimensão dos excrementos abandonados ao longo das estradas. Mas se fosse só isso: é típica do alemão a bromidrose, ou seja, o odor repugnante do suor, e está provado que a urina de uma alemão contém vinte por cento de azoto, enquanto a das outras raças apenas quinze.»

E, de quando em vez, frases como esta: «uma mística é uma histérica que encontrou o seu confessor antes do seu médico».

Há autores que ficam colados a um determinado livro e será difícil que Umberto Eco se consiga descolar de “O Nome da Rosa” e, mesmo sem querer, acabamos por fazer comparações.

Mas é verdade que “O Cemitério de Praga” não me despertou tanto interesse.

Os alemães – fezes, suor e urina

“Um alemão produz, em média, o dobro das fezes de um francês. Hiperactividade da função intestinal em prejuízo da cerebral, que demonstra a sua inferioridade fisiológica. Nos tempos das invasões bárbaras, as hordas germânicas cobriam o percurso com montes desrazoáveis de matéria fecal. Por outro lado, também nos séculos passados, um viajante francês percebia imediatamente se já tinha atravessado a fronteira alsaciana pela anormal dimensão dos excrementos abandonados ao longo da estrada. Mas se fosse só isso: é típica do alemão a bromidrose, ou seja, o odor repugnante do suor, e está provado que a urina de um alemão contém vinte por cento de azoto, enquanto o das outras raças apenas quinze”.

– in “O Cemitério de Praga”, de Umberto Eco