“O Estado Novo em 101 Objectos”, de Fernanda Cachão (2025)

Os deputados do centro-direita e, sobretudo, os venturistas, deviam ser obrigados a ler, várias vezes, este excelente calhamaço.

O primeiro a ser obrigado até devia ser Paulo Portas, aquela espécie de Sebastião Bugalho do século passado que, em entrevista conduzida por Carlos Cruz, disse, há muitos anos, que o fascismo nunca existiu em Portugal.

A jornalista Fernanda Cachão fez um extraordinário trabalho de pesquisa e é difícil destacar esta ou aquela entrada nesta espécie de enciclopédia do fascismo à portuguesa.

Vou dar apenas alguns exemplos:

* A entrada 14 tem o título “A carta da irmã Lúcia”.

“De toda a correspondência trocada pelos dois homens (Franco Nogueira e Salazar), destaca-se este cartãozinho com o selo do Patriarcado (…)

Segundo o diplomata do Estado Novo e biógrafo de Salazar, o ditador atravessava uma grande crise psicológica. Esses meses de fragilidade, a seguir à vitória dos Aliados e à queda dos fascismos na Europa, deixava Portugal politicamente isolado face ao triunfo das democracias. (…)

«António, nesta hora de tantas preocupações, desgostos e talvez dúvidas para ti, envio-te este trecho de uma carta da Irmã Lúcia, a vidente de Fátima, que acabo de receber. Deve levar-te muita consolação e confiança. (…) escuso de dizer que isto que ela diz, o não diz por ela mesma, mas por indicação divina. (…)

O Salazar é a pessoa por Deus escolhida para continuar a governar a nossa Pátria, a ele é que será concedida a luz e graça para conduzir o nosso povo pelos caminhos da paz e da prosperidade.”

Ora se a irmã Lúcia dizia que Deus lhe tinha dito que Salazar é que era o tal, quem éramos nós para o contradizer? E assim, tivemos de o aturar todos aqueles anos!

* A entrada 52 é dedicada à Constituição de 1933, que foi referendada:

“A 19 de março de 1933, o voto foi obrigatório, mas só votavam os chefes de família, e as abstenções foram contadas como votos a favor”.

Deve ter sido então que foi inventada o refrão: quem cala, consente.

* Na entrada 57, A Lista dos assinantes da Seara Nova, lê-se:

A Seara Nova publicava ainda textos de Vladimir Ilitch (porque se omitia Lenine do nome do autor) ou de Carlos Marques (na realidade Karl Marx).”

Os censores, além de incultos eram estúpidos…

* A entrada 59: A carta que denuncia o «passador»

A máquina burocrática do Estado sustentou a actividade da polícia política. Nas suas diversas esferas sociais, o cidadão era obrigado a pedir múltiplas autorizações e preencher os mais diversos documentos. Queria sair do país? Tinha de pedir ao Governo Civil? A professora desejava casar? Tinha de pedir um atestado de idoneidade do futuro marido. O estudante matriculava-se na Universidade? Um dos impressos ia direitinho para a Pide”

Agora, o PSD também quer obrigar as mães a pedirem um atestado de 6 em 6 meses para poderem continuar a dar de mamar…

* Na entrada 80, podemos ler um dos mais profundos pensamentos de Salazar – esse que muitos acham que faz muita falta a Portugal (aliás, um nunca chegaria, pelos vistos!…). Disse o Botas:

“É mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar o povo a ler. É que os grandes problemas nacionais têm de ser resolvidos, não pelo povo, mas pelas elites enquadrando as massas.”

* Na entrada 84, podemos recordar algumas publicações do Diário do Governo. Esta diz respeito aos direitos das mulheres. O que diria a isto a judiciosa Rita Matias?

Foi extensa a legislação que abrangeu a mulher, desde aquela que impedia o exercício da carreira diplomática, da magistratura judicial e de cargos de chefia da administração local, à que obrigava as casadas a ter a autorização do marido para viajar. Dependia igualmente dele para abertura de conta bancária. O marido devia ainda autorizar tanto o uso de contraceptivos como contrato de trabalho (…). Podia, por exemplo, chegar a uma empresa e dizer: «Eu não autorizo a minha mulher a trabalhar».”

E, no que respeita a enfermeiras:

“O diploma não só atribui o tirocínio ou prestação de enfermagem hospitalar feminina a mulheres solteiras ou viúvas sem filhos, como define as condições de idoneidade exigidas às candidatas. (…) exigindo bom comportamento moral e o teor de vida irrepreensível e para candidatos à enfermagem hospitalar, do sexo feminino, ser solteira ou viúva sem filhos”

* Na entrada 94, fala-se nos mineiros e na silicose:

“A Companhia das Minas teve o monopólio da exploração do complexo de São Pedro da Cova entre 1921 e 91972. (…) Para terem direito a habitação, todo o agregado familiar, incluindo filhos menores, acabava de ser obrigado a trabalhar na mina”.

Estas citações são apenas algumas das muitas que aqui poderia colocar. Parabéns à jornalista autora desta obra que mostra, à exaustão, que o fascismo existiu e que, se não invertermos alguns caminhos que a democracia está a tomar, ele vai voltar, talvez com outro rosto, mas com a mesma intenção.

“Canção do Profeta”, de Paul Lynch (2023)

Com este seu quinto romance, Paul Lynch (Irlanda, 1977) venceu o Booker Prize de 2023 e, na minha opinião, é um dos melhores romances dos últimos tempos.

Quando o comecei a ler percebi que estava perante o nascimento de um estado fascista. A acção decorre na Irlanda quando um Partido de Acção Nacional ganha as eleições e começa, a pouco e pouco, a impor as suas regras, a colocar os seus apaniguados nos lugares importantes, a proibir greves e manifestações. Faz-nos logo lembrar qualquer coisa, não é verdade?

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A situação do país vai-se deteriorando, as liberdades vão sendo cada vez mais limitadas e vamos conhecendo todo o drama através da família Stack.

O pai, Larry Stack, professor, desaparece logo no princípio da história, quando está a organizar um protesto. A mãe, Eilish, bióloga, fica responsável pelos quatro filhos, Mark, adolescente, Molly e Bailey, a caminho da adolescência e Ben, um bebé de colo. Há ainda um avô, Simon, já com sintomas de demência, que vive noutra parte de Dublin.

Paul Lynch consegue escrever toda a história num crescendo de drama, que culmina numa guerra civil e na fuga do que resta da família. Eilish vai enfrentando cada vez mais dificuldades, num crescendo dramático. Ao colocar a acção no seu próprio país, na Irlanda, o autor consegue que nós façamos auto-relacionamento com mais facilidade. Todos nós vemos, diariamente, imagens horríveis do que se passa, por exemplo, em Gaza, mas a vida em Gaza é muito diferente da nossa; aquelas famílias palestinianas sempre viveram em guerra e, por maior que seja o nosso sentimento de solidariedade, sentimo-nos distantes delas. Ao lermos a descrição das vicissitudes por que Eilish vai passando, facilmente nos identificamos com ela. E perguntamo-nos: não poderá acontecer algo de semelhante entre nós? A coberto da liberdade e da democracia, não existirão forças que disso se aproveitam para instituir uma ditadura?

Como diz alguém, já quase no fim do livro:

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“eu costumava acreditar no livre-arbítrio, se me tivesse perguntado antes de tudo isto acontecer ter-lhe-ia dito que era livre como um passarinho, mas agora já não tenho tanta certeza disso, agora não vejo como é possível o livre-arbítrio quando fomos apanhados em tamanha monstruosidade, uma coisa leva a outra coisa até ao raio da coisa ter a sua própria dinâmica e já não haver nada que possamos fazer, agora vejo que o que eu julgava ser liberdade na verdade era luta e que nunca houve liberdade nenhuma.”

Quando acabei de ler Canção do Profeta, respirei fundo e senti-me, de certo modo, aliviado por ter terminado o meu “sofrimento”, que não o daquela família.

E o final é surpreendente.

Aconselho vivamente.

É uma edição da Relógio de Água, com tradução de Marta Mendonça.

Os leitores do Expresso elegem Ventura!

Todos os anos, o Expresso elege as figuras nacional e internacional do ano.

A redacção escolhe um lote de candidatos e, depois, procede-se í  votação.

Este ano, escolheram para candidatos a figuras nacionais do ano, o cardeal Tolentino Mendonça, António Costa, Margarida Matos Rosa, Jorge Jesus, Joacine Katar Moreira e o fascista André Ventura.

Para figuras internacionais do ano, escolheram Donald Trump, Boris Johnson, Ursula Von Der Leven e Greta Thunberg.

Não vou comentar estas escolhas. Os jornalistas do Expresso lá sabem por que carga de água metem no mesmo saco um treinador de futebol que ganhou a Taça dos Libertadores e um primeiro-ministro que conseguiu concluir quatro anos de governo com o apoio do PCP, um cardeal que foi nomeado responsável pelo arquivo do Vaticano e um tipo que comenta jogos de futebol e que foi eleito para o Parlamento por um partido chamado Chega!, com ponto de exclamação e tudo…

As escolhas internacionais são muito mais coerentes: um presidente, um primeiro ministro, uma líder da União Europeia e uma activista pelo clima.

No que respeita í  escolha da figura internacional do ano, a redacção do Expresso escolheu a Greta Thunberg.

Escolha óbvia. A adolescente sueca arrastou multidões, trouxe a discussão das alterações climáticas para as primeiras páginas e conseguiu irritar muita gente.

Já no que respeita í  escolha da figura nacional, o Expresso decidiu-se pelo cardeal Tolentino Mendonça – decisão corporativa, já que o cardeal colabora com o Expresso há alguns anos, com uma coluna semanal. De resto, que importância tem para o comum dos portugueses o facto do cardeal ter sido nomeado para um cargo importante no Vaticano? Poderá vir a ser Papa? E depois?…

Mas o que mais me interessa nesta iniciativa do Expresso é que o semanário decidiu pí´r í  votação dos leitores a escolha das figuras do ano.

É uma atracção fatal.

Abomino programas do estilo fórum, em que os ouvintes/telespectadores são convidados a dar a sua opinião sobre tudo. O Sr. Vitorino, reformado de cascais, telefona a dizer a sua douta opinião sobre os incêndios, as inundações ou Orçamento do Estado, assim como sobre as carreiras fluviais do Tejo ou os novos passes sociais.

Desta maneira, as estações de rádio e televisão enchem horas de emissão com opiniões bacocas e, muitas vezes, ideias erradas, nunca contrariadas e que passam como verdadeiras.

E qual foi o resultado da votação dos leitores do Expresso?

Simples: André Ventura e Donald Trump!

Trump conseguiu 52% dos votos dos leitores do Expresso, enquanto Ventura arrebatou 89% dos votos!

Espectacular!

Isto quer dizer que quase 9 em cada 10 leitores do Expresso acham que André Ventura foi a figura nacional mais importante de 2019.

Se eu fosse director do Expresso, demitia-me!…

25 Sempre!

Em outubro de 1973 houve eleições para a Assembleia Nacional.

Concorreram a Acção Nacional Popular (ANP) e… a Acção Nacional Popular.

A Comissão Democrática Eleitoral (CDE), que congregava diversas forças da Oposição, desistiu antes do acto eleitoral, considerando que as eleições não eram democráticas.

Foi o último acto eleitoral antes do 25 de Abril de 1974, a última farsa permitida pelo sardónico Marcelo Caetano, que tinha prometido uma abertura democrática, que nunca aconteceu. No entanto, alguma liberdade de imprensa foi permitida, durante a campanha eleitoral.

Foi graças a essa ténue abertura, que foi possível publicar, no suplemento Fim de Semana do jornal República, estas pequenas “piadas”, sobre as eleições, a que chamámos “O Maumento Eleitoral” (claro que a ANP era a Lista A… e não havia mais nenhuma lista candidata…; três das curtas cenas foram ilustradas por um tipo que assinava Patrício e que, sinceramente, nunca conheci pessoalmente…)

Tudo isto parece um pouco patético e até infantil, mas era a única maneira de passar pelas malhas da censura e, digo-vos muito sinceramente, na altura fiquei espantado como aquele suplemento do República veio a público.

O Maumento Eleitoral

1º Voto

Um cavalheiro entra numa loja:

– Bom dia, eleições?

– Não temos.

2º Voto

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3º Voto

Em frente í  urna. um cidadão:

– Eu vinha votar, mas posso ter a certeza de que o sigilo do meu voto será mantido?

– Certamente! Passe para cá o seu voto na Lista A!

 

4º Voto

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5º Voto

– Já contaram os votos do Barreiro?

– Não. As urnas foram a enterrar!

 

 

 

 

 

 

 

 

6º Voto

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