“Novelas Nada Exemplares”, de Dalton Trevisan (1979)

novelas nada exemplaresNamoro í  janela, í s escondidas do pai, o padrasto que apaga os cigarros nos braços da enteada, homens e mulheres solitários, com vidas interrompidas, mulheres que seduzem com um copo de vinho, quartos de hotel onde não se dorme por causa dos pardais, homens que fazem barulho a comer a sopa e enojam as mulheres, escritores que se fazem valer da fama para seduzir jovens.

Eis alguns dos temas destas novelas que nada têm de exemplares.

Trevisan não é fácil de ler.

A sua escrita é tão depurada, cingindo-se ao essencial, que tem que ser lida com muita atenção e, de preferência, em voz alta.

«Cabelos ruivos na pia, o vestido com duas rodelas de suor e, no espelho, o rosto intruso. Dele fazia parte, o sangue da pulga na cueca, a caspa no paletó ao fim do dia.»

«Sílvia não queria envelhecer: roía a unha, depois a pintava, roía e pintava de novo. Em vão passeava nua no quarto. E buscava, cada dia, um fio branco na franjinha.»

«Cristina serviu-lhe vidro moído no feijão, sem que desconfiasse; cólicas tão fortes que rolava no chão, língua de fora. João dormia só na cama de casal. Certa noite procurou o anel de cabelos de Negrinha, não achou. Cristina o queimara e, além dele, o próprio retrato».

São exemplos ao acaso.

Mestre do conto, Trevisan conta-nos histórias que, a maior parte das vezes, não têm final, como na vida.

Obras de Dalton Trevisan

Dalton Trevisan nasceu em 1925, em Curitiba e, no ano passado, foi o vencedor do Prémio Camões.

Mais um daqueles escritores obscuros que ganham prémios e ninguém lê, pensei eu.

E tinha razão.

Só que, ao ler um livro de Trevisan, temos mesmo que ler todos os outros.

Entrei em contacto com a obra de Trevisan através de O Vampiro de Curitiba (1965), um pequeno livrinho de histórias curtas (103 páginas).

Gosto muito de histórias curtas, desde que o Mário-Henrique Leiria me iniciou com os Contos do Gin Tonic.

Trevisan tem uma escrita única, sincopada, sintética, com um ritmo muito próprio.

o vampiro de curitibaNelsinho é o vampiro de Curitiba, sempre pronto a ferrar o dente em qualquer moça, sem olhar í  idade ou í  aparência.

Os diálogos são especiais.

Exemplo:

«- Você é loira natural?

– O doutor não vê?

– A fama de loira é de fria. Só que não acredito.

– A loira não é feito a morena.

– A morena é mais carinhosa. Você não é católica, é?

– Sou calvinista.

Calvinista, ai, de rostinho abrasado na mesma hora.

– A religião moderna não faz, da virgindade, um cavalo de batalha. A moça, sendo direita, pode ter experiência. Autorizada pelo pastor a conhecer os prazeres da vida.

– …

– Sabia que os turistas acham uma graça em nosso conceito de virgindade?

– Nunca soube.

– Você é temperamento calmo ou nervoso?

– Sou calmo.

– Tem os atributos da nervosa; ainda não sabe que é. Suas medidas são perfeitas. Não é você que joga ví´lei?

– É, sim.

– Gostaria de a ter visto de calção. Joga bem?»

Cemitério de ElefantesE assim por diante.

Sendo assim, passei para Cemitério de Elefantes, publicado em 1984.

É um livrinho ainda mais pequeno (94 páginas), incluindo um prefácio de Fernando Assis Pacheco.

Os heróis deste livro são os bêbados – homens que bebem para afogar desgostos ou porque sim.

Lê-se numa tarde.

E vicia.

a polaquinhaPassei, então, ao único romance que Trevisan publicou: A Polaquinha (1985).

Também não é extenso.

São 150 páginas que contam a história de uma moça que, de namorado em namorado, acaba na prostituição (“polaca”, vulgarmente, significa prostituta).

A vida banal da prostituta, que recebe clientes, com quem finge prazer, é bem ilustrado com os últimos cinco ou seis capítulos do livro – todos praticamente iguais!

E como vicia, já tenho mais três livros de Trevisan para ler…

 

“Contos Completos”, de Lydia Davis

Lydia Davis nasceu em 1947 e é uma das mais originais escritoras norte-americanas.

contos completos de lydia davisEstes “Contos Completos” (2009, Edição Relógio de ígua, 2012, tradução de Miguel Serras Pereira e Manuel Resende) reúnem quatro livros de contos: “Acerto de Contas” (1986), “Quase Sem Memória” (1997), “Samuel Johnson Está Indignado” (2001) e “Variedades de Perturbação” (2007).

O título original do livro é “The Collected Stories”. No entanto, não sei se estes textos são contos, se são histórias; por vezes, parecem poemas; por vezes, são simples frases; outras vezes, são relatórios.

Uma coisa é certa: este é o livro mais original que li nos últimos anos. Lydia Davis encontra maneiras novas para escrever textos.

Alguns desses textos ocupam várias páginas, mas a maior parte deles são textos de uma única página, quando não de uma única linha.

Alguns exemplos:

“Certos Conhecimentos de Heródoto (este é o título da “história”)

São estes os factos sobre os peixes do Nilo:” (e esta é a “história”…)

Esta outra história, fez-me lembrar o Mário-Henrique Leiria:

“Assassínio na Boémia

Na cidade de Frydland, na Boémia, cujos habitantes são sempre pálidos como fantasmas e se vestem de negro no Inverno, uma velha não foi capaz de suportar por mais tempo o inevitável soçobrar da sua vida na degradação e na desgraça, e enlouqueceu, e assassinou, movida pela piedade, o marido, os dois filhos e a filha; movida pela ira, os vizinhos de lado e os da casa fronteira, que tinham desprezado a sua família; movida pela vingança, o dono da loja, a quem pedira fiado, o prestamista, dois usurários e um condutor de eléctrico, que não conhecia; e, por fim, entrando com a faca na mão na sede de município, o jovem presidente da autarquia e dois dos seus vereadores, que ponderavam, perplexos, uma nova disposição.”

A “História Oral (com Soluços)”, é um texto com espaços em branco, que correspondem a soluços (“A minha irmã morreu o ano passado, deixado duas fi lhas”).

A “Entrada de Índice Remissivo”, diz, apenas: “Cristã, não sou”.

Alguns textos têm um humor muito particular, como este “Mildred e o Oboé”, que reza assim:

“A noite passada, Mildred, a minha vizinha do andar de baixo, masturbou-se com um oboé. O oboé ofegou e uivou dentro da vagina dela. Mildred gemeu. Mais tarde, quando eu pensava que ela acabara, começou a gritar. Eu estava deitada na cama com um livro sobre a Índia. Podia sentir o seu prazer invadir o meu quarto através das tábuas do soalho. É claro que talvez haja outra explicação para o que ouvi. Talvez não fosse o oboé mas o tocador de oboé que penetrava Mildred. Ou talvez a Mildred estivesse a bater no seu cão pequeno e nervoso com qualquer coisa de esguio e musical, como um oboé.

Mildred, a que grita, mora por baixo de mim. Por cima de  mim moram três raparigas de Connecticut. Há ainda uma senhora que é pianista, com as suas duas filhas, no piso nobre, e umas quantas lésbicas na cave. Sou uma pessoa comedida, uma mãe, e gosto de me deitar cedo – mas como poderei levar uma vida regular neste prédio? É uma roda-viva de vaginas que se encabritam e saltam: treze vaginas e um único pénis, o do meu filho pequeno.”

Uma coisa posso garantir: nenhum destas histórias terminam do modo que se poderia esperar.

Aconselho vivamente.

“Goodbye, Columbus”, de Philip Roth

—Esta foi a primeira obra de Philip Roth, publicada em 1959 e obteve logo o aplauso da crítica, ganhando o National Book Award.

O livro é formado pela novela que lhe dá título e por mais cinco contos curtos, todos tendo como tema a adaptação dos judeus norte-americanos í  nova vida fora dos guetos, de onde vieram os seus pais e avós.

“Goodbye, Columbus” foi adaptado ao cinema, em 1969, com realização de Larry Peerce e, embora seja um retrato muito interessante dos “novos” judeus americanos no dealbar da década de 60, não é a minha história preferida. Gostei muito mais do conto “A Conversão dos Judeus” ou de “Eli, o Fanático”.

Claro que Roth foi muito criticado na altura (e ainda é), por parte de largas faixas de judeus, que o consideram anti-semita, devido ao facto de criticar abertamente a religião judaica.

De Roth, já li mais de uma dezena de obras muito mais maduras que esta, mas “Goodbye, Columbus” não deixa de ser um livro curioso, até para conhecermos a génese de toda a carreira deste grande escritor norte-americano.

“A Rapariga que Inventou um Sonho”, de Haruki Murakami

—Confesso que resisti muito tempo a ler este livro que me ofereceram, porque sempre desconfiei de unanimidades – e não há dúvida que Murakami tem uma opinião favorável quase unânime, por parte dos jornais e revistas, e cada livro seu que sai é um acontecimento, enchendo-se as livrarias de pilhas de livros, que se vendem a bom ritmo.

E tenho um bocado essa mania de não ir em modas, razão pela qual nunca tinha lido nada de Murakami.

Admito que fiquei agradavelmente surpreendido, embora ainda não esteja completamente rendido.

—“A Rapariga que Inventou um Sonho” é uma colectânea de contos, publicados entre 1981 e 2005. São 24 histórias para todos os gostos, umas realistas, outras surrealistas ou fantásticas, mas todas com uma linguagem tão simples e directa que quase roça a vulgaridade.

Murakami usa e abusa de frases feitas, partindo do princípio que a tradutora (Maria João Lourenço) adapta esses lugares comuns í  língua portuguesa. Com efeito, tropeçamos constantemente em frases como: “nem nada que se pareça”, “tinha perfeita consciência”, “muita água correu debaixo das pontes”, “unha com carne”, “cabeça í  banda”, “trocar galhardetes”, etc, etc.

As histórias de Murakami são simples e, a maior parte das vezes, não têm um final, mas a narrativa tem um “não sei quê” que nos agarra e nos obriga a continuar, í  procura de um desenlace.

Um bom exemplo é o conto intitulado “Onde é mais provável que a encontre”. Uma mulher contrata um suposto detective para encontrar o seu marido, que terá desaparecido, certo dia, entre o 24º e o 26º andar do prédio onde viviam.

O suposto detective vai inspecionar o prédio e fica espantado com a escadaria larga e bem iluminada e começa a passar ali os dias, subindo e descendo e conhecendo alguns inquilinos curiosos do dito prédio, com quem tem diálogos banais. A certa altura, a mulher que o contratou telefona-lhe a dizer que o marido tinha sido encontrado numa cidade distante. E pronto.

Curioso, também, o conto intitulado “O macaco de Shinagwa”, que conta a história de uma mulher que se esquece, de vez em quando, do seu próprio nome.

Claro que já comprei um dos romances do Murakami, para ver se fico mesmo adepto…

“Contos Carnívoros”, de Bernard Quiriny (2008)

—Bernard Quiriny nasceu em 1978, na Bélgica e este é o seu primeiro livro publicado em português (edição Ahab, tradução de Miguel Serras Pereira).

São 14 histórias surpreendentes, umas mais inspiradas que outras, mas todas com uma linguagem que faz lembrar Edgar Alan Poe.

A imaginação de Quiriny permite-nos descobrir o bispo argentino que tem dois corpos, que usa aleatoriamente, a mulher-laranja, que se deixa descascar e beber pelos amantes, a tribo da Amazónia cuja língua ninguém compreende, ou o homem que consegue ouvir as pessoas falarem sobre ele, í  distância.

E ainda há Pierre Gould e Renouvier, duas personagens que surgem em várias histórias, não sendo os mesmos em todas elas.

Aconselho.

Calor!

Sempre que está um dia quente como o de hoje, recordo-me deste conto, do Mário Henrique Leiria, que conta o seguinte:

Medicina tropical

O calor era alucinante. A chuva caía pesada, num jogo de massacre.

Sentiu que tinha uma tremenda dor de cabeça. Dirigiu-se ao posto clínico.

—– Isso é coisa sem importância – disse o médico. – Tome estes comprimidos – deu-lhe três.

Tomou.

O calor continuava, sólido e exacto. A chuva também, persistente.

A dor de cabeça estava aumentar. Voltou ao posto clínico.

– Vamos já tratar disso – afirmou o médico. – Ora vire-se para lá.

Virou-se.

O médico proporcionou-lhe quatro supositórios.

O calor ainda; e a chuva. Sempre.

A dor de cabeça a estoirá-lo. retornou ao posto clínico.

– Vai ver que fica bom – explicou o médico. – Ora abra a boca.

Abriu.

O médico extraiu-lhe imediatamente dois molares e um canino.

O calor estava realmente alucinante. A chuva era espaço líquido.

A dor de cabeça a invadir-lhe o corpo todo. Foi ao posto clínico. Uma vez mais.

– Então como vai isso? – perguntou o médico.

Puxou o facão e espetou-o, preocupado e consciente, através do médico.

Resultou.


Este conto foi publicado no livro “Contos do Gin Tónico”, editado em 1973 pela Estampa, com capa da Velha, nome carinhoso que adoptámos para designar o Mário.

O Mário foi o chefe de redacção das 13 edições de O Coiso, em 1975.