“A Lotaria e Outras Histórias”, de Shirley Jackson (1948)

Shirley Jackson (1916-1965) viveu apenas 49 anos mas é considerada uma das mais influentes escritoras norte-americanas, herdeira do gótico americano, iniciado por Edgar Alan Poe.

O conto “A Lotaria”, publicado em 1949 no The New Yorker, provocou grande celeuma e alguns leitores pensaram que ele relatava algo de real, e cancelaram a assinatura da revista. Há que ler o conto para perceber porquê.

Tirando este conto, que faz mesmo lembrar Poe, os restantes 24 contos são, no mínimo, curiosos. Obviamente datados, retratam famílias em que as mulheres estão em casa, a cozinhar ou bordar ou em outras tarefas domésticas e, em que os homens estão ausentes, porque trabalham.

Em alguns dos contos, as mulheres são jovens que vivem sozinhas em Nova Iorque, vindas da província, e estão com dificuldade em viver na grande cidade.

Toda a gente fuma, claro – a própria escritora era uma grande fumadora.

Vale a pena ler.

Edição da Cavalo de Ferro, tradução de Rita Carvalho e Guerra

“A Mais Nova Profissão do Mundo”, de Alface (2006)

Alface era o pseudónimo do escritor José Alfacinha da Silva, nascido em Montemor-o-Novo em 1949 e falecido, por AVC súbito, em 2007.

Este livrinho de contos estava esquecido numa das minhas prateleiras e desencantei-o há pouco tempo, quando fizemos uma grande limpeza na biblioteca.

Trata-se de um livro um pouco irregular, que junta contos muito bem esgalhados, como o de abertura, Pombinhos, e toda a série de textos curtos sob as designações Narrativas e Lugares, com outros textos menos conseguidos e alguns mesmo um pouco enfadonhos.

De qualquer modo, diverti-me bastante ao lê-lo.

“Sessenta Contos”, de Dino Buzzati (1958)

Dino Buzzatti (1906-1972), foi autor italiano cujos contos foram muito saudados, ganhando, com eles, o prémio Strega.

Os contos misturam uma espécie de realidade absurda com uma visão fantástica e muitos deles são alegorias ou parábolas que, embora datadas (a edição é de 1958), continuam a ser muito actuais (nem todas, sejamos realistas…)

Gostei particularmente dos contos Sete Andares, O Cão que Viu Deus, Não Esperavam Outra Coisa e O Burguês Enfeitiçado.

Tirando dois ou três contos mais longos, todas as restantes narrativas não ocupam mais do que duas ou três páginas.

Vale a pena ler, em pequenas doses (digamos, dois ou três contos por dia…)

“A Vida é um Tango”, de Cristina Norton (2018)

Cristina Norton nasceu na Argentina em 1948, mas vive em Portugal há 30 anos. Autora de romances, livros infantis e livros de contos, publicou este ano este A Vida é um Tango, uma colectânea de histórias mais ou menos trágico-cómicas.

As histórias são todas muito acessíveis e a autora conta-as de modo muito simples, o que não é um defeito, na minha opinião.

No entanto, a qualidade das histórias é um pouco irregular: algumas são bem esgalhadas, outras são fraquinhas, outras ainda têm um desfecho que se pretende surpreendente, mas que, no entanto, se desconfia logo desde o início.

Em resumo, um livro despreocupado, excelente para ler em voz alta.

“O Amor de uma Boa Mulher”, de Alice Munro (1998)

Depois de ter lido O Progresso do Amor, avancei para mais um livro de contos desta escritora canadiana, Prémio Nobel de 2013.

São mais oito contos muito descritivos, com personagens sempre muito bem caracterizadas, desde as roupas que usam aos traços fisionómicos. Mesmo os personagens secundários são minuciosamente descritos e ficamos sempre a saber as suas profissões e como usam o cabelo.

Cada uma destas histórias poderia ser desenvolvida e transformar-se num romance, mas a autora, pelos vistos, prefere este tipo de textos, já que publicou doze colectâneas de contos.

Uma leitura agradável, embora pouco estimulante.

“O Progresso do Amor”, de Alice Munro

Alice Munro, Prémio Nobel em 2013, nasceu em Wingham, Canadá, em 1931, e talvez por ser canadiana, a sua escrita me parece muito mais europeia que canadiana.

Conhecida pelos seus contos, Alice Munro descreve-nos personagens credíveis, que imaginamos com facilidade. As suas histórias são banais mas ricas em pormenores.

Ficamos a conhecer os traços fisionómicos dos intervenientes, a maneira como se vestem, as suas profissões, as casas onde habitam e os episódios das suas vidas são contados com minúcia. As histórias não têm um final, mas isso não é o mais importante – ao fim e ao cabo, qual é o final da vida?

Nunca tinha nada desta autora e confesso que não me entusiasma por aí além, embora pense que Alice Munro merece ser lida e, por isso mesmo, já tenho outro livro dela na calha. Pode ser que, ao segundo, fique mais convencido.

O Progresso do Amor é uma colectânea de dez contos, publicada em 1985, e editada em Portugal pela Relógio de Água em 2011, com tradução de José Miguel Silva.

 

“Pastoralia” de George Saunders (2000)

George Saunders (Texas, 1958), acaba de ganhar o Booker Prize com o romance “Lincoln no Bardo”, mas é mais conhecido como autor de short stories, publicadas em diversas revistas norte-americanas e em colectâneas.

Pastoralia é um conjunto de seis histórias, publicadas em 2000 e editadas no ano passado pela Antígona.

Saunders escreve sobre a América, os seus tiques e os seus truques, escreve sobre pessoas solitárias, os típicos loosers a quem tudo corre mal mas estão sempre a imaginar como a vida poderia ser se não fosse como é.

A história de abertura, que dá o título à colectânea remete-nos para os reality shows absurdos que pululam na televisão. A acção passa numa espécie de parque temático onde um homem e uma mulher simulam viver no Paleolítico. De vez em quando, surgem visitantes, que vão ver como o Mundo era antigamente. Mas também aparece, por exemplo, o filho da mulher, toxicodependente, e que lhe vai pedir dinheiro para consumir e cujo discurso é notável:

“Tudo bem se calhar não devia ter vendido a televisão, mas tu não és uma consumidora involuntária de substâncias, e sabes que mais, eu sou, por isso é que lá estava. Percebes o que estou a dizer? Eu sei que gostavas de ter um filho perfeito, mas não tens, tens um filho que é consumidor involuntário de substâncias e que por vezes comete erros de avaliação, tipo pedir uma televisão emprestada e depois vendê-la para comprar substâncias.”

Mas a história de que mais gostei foi A Infelicidade do Barbeiro, que nos conta o dia-a-dia de um barbeiro de meia idade, solteiro, que ainda vive com a mãe e que sonha com uma namorada, seja ela quem for. Por alguma razão que não é dita, está a frequentar um curso destinado a quem perdeu a carta de condução por erros graves. É lá que conhece uma rapariga “bonita mas gorda” e começa a fantasiar sobre ela:

“Ela sorriu. O coração dele começou a bater mais depressa. Isto nunca acontecia. Elas nunca sorriam. Bem, esta ainda era nova. Se calhar não sabia que não se devia sorrir para homens mais velhos quando não queria ter nada com eles. Ou então se calhar queria mesmo. Era possível. Talvez estivesse farta de rapazolas cheios de tesão que só queriam uma cambalhota rápida. Talvez quisessem agora experimentar alguém com idade suficiente para a apreciar, alguém que não se viesse demasiado depressa e que trabalhasse por conta própria, e que fosse arrumadinho. Por vontade do barbeiro, ela ainda seria virgem por motivos religiosos e nunca tinha dado sequer uma cambalhota. Não que preferisse que ela fosse frígida. Por vontade dele seria uma daquelas virgens por motivos religiosos que, logo depois de casar, se revela uma grande maluca, e quando não se está a revelar uma grande maluca exibe uma serena dignidade nas suas roupas conservadoras de forma que ninguém pode sequer suspeitar quão total e completamente ela se revela uma grande maluca quando tem vontade…”

Gostei mesmo!

 

“Terra Amarga”, de Joyce Carol Oates (2010)

Joyce Carol Oates (1938), é uma escritora norte-americana, autora de diversas novelas, peças de teatro e colectâneas de contos, e que, por várias vezes, fez parte das listas para o Nobel da Literatura.

Este Terra Amarga é um conjunto de dezasseis contos que têm em comum o luto, a perda e a violência das emoções.

Não são histórias fáceis e valem, sobretudo, pelo ambiente que Oates consegue criar com a força das suas palavras.

A última história, que dá o título à colectânea (Sourland) é, simultaneamente, erótica e violenta, contando-nos a história de Sophie, uma viúva de  meia-idade que, pouco depois da morte do marido, aceita ir ter com um homem que mal conhece, desfigurado por uma explosão e que vive numa cabana perdida no meio da floresta gelada do Minnesota.

Perturbadoras histórias, no mínimo…

Edição Sextante, 2014, tradução de Susana Baeta.

“O Motorista de Autocarro que Queria Ser Deus”, de Etgar Keret (2008)

Foi o título do livro que me despertou a atenção, claro.

Mas confesso que as histórias de Keret são, no mínimo, estranhas.

Etgar Keret é um escritor israelita, nascido em 1967, conhecido como autor de histórias curtas, novelas e argumentos para televisão.

O Motorista de Autocarro que Queria Ser Deus é o título da primeira história desta colectânea que, originalmente, se intitula Missing Kissinger, que é a quarta história.

Claro que o título escolhido para a edição portuguesa não é inocente.

Por vezes, a escrita de Keret faz lembrar os Contos do Gin Tónico, do Mário-Henrique Leiria, mas só por vezes.

Um exemplo:

A história Atravessar Paredes, começa assim:

“Ela tinha um daqueles olhares, meio desiludido, meio quero-lá-saber! Como alguém que descobre ter comprado leite magro por engano e não tem força para ir trocá-lo.”

Outro, tirado do início da história Exclusividade:

“Foi exactamente nessa altura que deitei abaixo uma parede. Os jornalistas são todos umas putas e eu deitei abaixo uma parede”.

Não há dúvida que são inícios prometedores mas, depois, a coisa perde-se um bocado.

A edição é da Sextante e a tradução, do hebraico, é de Lúcia Liba Muczick.

“Humidade”, de Reinaldo Moraes (2005)

Reinaldo Moraes nasceu em São Paulo há 67 anos e ficou conhecido, por cá, graças ao romance Pornopopeia, que li há uns anos e de que não gostei particularmente.

Achei-o vulgar e cansativo, no que às descrições de orgias sexuais dizia respeito, e muito difícil de ler, devido ao brasileiro muito fechado.

Porém, antes de publicar o romance, Moraes tinha lançado este livro de contos, Humidade, e acho que a sua escrita descabelada e pornográfica se adequa muito mais aos contos que a um romance de 600 páginas.

Esta colecção de contos é, no entanto, um pouco heterogénea, no que respeita à qualidade: há dois muito bons, há alguns menos bons e há outros perfeitamente dispensáveis.

No entanto, os contos Sildenafil e Humidade, valem o livro.

O conto Sildenafil (princípio activo do Viagra), é todo escrito em discurso directo; é uma conversa entre um marido e sua mulher, na cama, ela tentando que ele a coma, finalmente, depois de muito tempo de jejum sexual.

Em Humidade, Liminha, um informático banal, consegue engatar a Mariana, uma mocetona linda de morrer, boa como o milho, como nós diríamos, mas que se quer manter virgem até ao casamento e, pelos vistos, mesmo depois do casamento.

Mais do que as histórias propriamente ditas, o que torna este livro muito divertido, é a linguagem que Moraes usa.

Posso dar muitos exemplos.

Na história que dá título ao livro, o tal Liminha, depois de mais uma tampa da namorada, exclama:

Ah, replicou o Liminha mentalmente, se a tua mãe não fosse aquela catedral obtusa de gordura e carolice você não seria a neurótica que é e estaria a sentir, agora, uma Foz do Iguaçu de porra apaixonada escorrendo por essas pernas magníficas, depois de uma noite de sexo insano, minha flor…

No conto Festim, Fátima Márcia, que tenta caçar um ricalhaço, vai de táxi para uma festa na mansão do futuro marido:

No táxi, FM, como ela também gostava de ser chamada, foi idealizando lindos e mancebosos exemplares de homo erectus dispostos a adentrar com aguda sensibilidade sua fratura ontológica e encher de sentido seu ser-aí.

E só mais um exemplo, que podiam ser muitos mais. Este é retirado da História à Francesa, em que um conde já entradote, casado com uma princesa muito mais jovem, gostaria que ela lhe lambesse um determinado sítio, mas não tem coragem para pedir:

Não contente em alojar o estrongalho na pandoreba ainda despreparada da moxa, o conde, ao mesmo tempo, introduziu-lhe um salivado índex no olho do rebulho, sem deixar de bolinar-lhe as balonetas bicudas e dar-lhe trabalho à lâmbia, que o escolado conde atiçava com a sua própria lâmbia assanhada e babilenta.

Vale a pena o tempo que se perde a decifrar o português!…