José Mário Branco (1942-19.11.2019)

Tomei contacto com a música de José Mário Branco, pela primeira vez, em novembro de 1971, no extinto Cinema Roma.

Encontrei notícia desse encontro aqui, num texto de Rogério Santos, Estudos da Rádio em Portugal.

Diz o autor: “De indicativo musical composto pela banda Pop Five Music Incorporated, o programa (Página Um) (…) fez emissões ao vivo (…) do cinema Roma, aqui a estrear os discos de José Mário Branco (Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades) e de Sérgio Godinho (Os Sobreviventes) (novembro de 1971). Os discos foram apresentados faixa a faixa pelos autores, em entrevista em directo, conduzida por Adelino Gomes. Como os músicos viviam exilados em Paris, no palco puseram-se duas cadeiras, e, no lugar deles, um gravador e as bobinas da música. O espectáculo foi público e estiveram cerca de 50 pessoas”

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Eu fui uma dessas 50 pessoas.

Em novembro de 1971, tinha 18 anos e não perdia uma emissão do Programa de rádio Página Um, da Rádio Renascença, apresentado por José Manuel Nunes e com reportagens de Adelino Gomes (que haveria de ser meu colega jornalista na redacção da RTP, depois do 25 de Abril).

O Programa passava música anglo-saxónica e música de intervenção portuguesa (Zeca Afonso e quejandos).

Os Pop Five Musica Incorporated era uma banda pop-rock que integrou, entre outros, o irmão de Sérgio Godinho, Paulo Godinho, David Ferreira, Tó Zé Brito, Miguel Graça Moura.

Lembro-me que, sentado na plateia do cinema Roma, fiquei logo fascinado com a música do José Mário Branco. Como era possível aquela sonoridade num disco de um português?

Todas as músicas eram excelentes: Cantiga para pedir 2 tostões, Cantiga do fogo e da guerra, O charlatão, Queixa das almas jovens censuradas, Nevoeiro, Mariazinha, Casa comigo Marta, Perfilados de medo, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

Os arranjos eram todos diferentes do que tinha ouvido até aí. Era possível fazer uma música de intervenção com qualidade e moderna!

Claro que comprei o disco, assim que saiu em Portugal, e acompanhei a carreira do José Mário Branco, mesmo naquele período mais ou menos louco do GAC (tenho os vinis todos e, ainda hoje, cantamos, em coro, Na herdade de Albernoa… e destaco o grande Pois Canté!).

Como não gosto muito de fado, a carreira do José Mário Branco como produtor de discos de fado, nomeadamente, do Camané, passou-me ao lado – mas não posso esquecer o Inquietação e aquela espécie de melopeia/manifesto anti-FMI, que ainda hoje me emociona e tenho dificuldade em ler todo aquele arrazoado, sem um nó na garganta.

Os meus sinceros agradecimentos a José Mário Branco

“Não há lenha que detenha o FMI”*

Tenham medo, tenham muito medo – o FMI vem aí!

Não se deixem enganar pelas palavras bonitinhas do site dessa organização sinistra.

Segundo o seu site, o FMI diz ser “uma organização de 187 países que trabalha para a cooperação monetária global, para uma segura estabilidade financeira, que facilita o comércio internacional, que promove o pleno emprego e o crescimento económico sustentado, e que reduz a pobreza em todo o mundo.”

MENTIRA!

“Não há força que retorça o FMI!” *

Eles já estiveram em Portugal, em 1977 e 1983 e todos nos lembramos de como o país ficou de pantanas!

O FMI tira-nos as casas e as mulheres, rouba-nos os plasmas e as altas-fidelidades, tira-nos os fins-de-semana nos spas, os subsídios de doença, os medicamentos contra o colesterol, os parques infantis e os programas bons da televisão.

O FMI não está interessado no equilíbrio das contas do Estado, mas apenas em fazer-nos a vida negra, provocar o fim das nossas colheitas, a secagem dos rios e a drenagem dos pântanos (porquê a drenagem dos pântanos, porquê?!)

O FMI é um grupo de malfeitores que nos vai esmifrar os salários, esmagar os subsídios de férias, esganar as senhas de refeição, os abonos de família, os subsídios de desemprego e de doença outra vez, vai tirar-nos os anéis e os dedos, os almoços e os jantares, os dias bonitos de sol e os passarinhos. Todos!

O FMI só é amigo dos governos – de resto, é inimigo de toda a gente!

Mas ele vem aí, inevitavelmente.

Estou transido de medo!

* frases de José Mário Branco, nesse seu grandessísimo rap intitulado, justamente, “FMI”, e cujo texto completo vos aconselho a recordar aqui.

As cantigas do GAC

Os quatro discos do Grupo de Acção Cultural, de 1976 e 1977, foram agora editados em cd, remasterizados. Comprei os quatro.

Porquê?

Porque posso; porque gosto de ajudar espécies em vias de extinção; porque gosto de recordar o tempo em que tinha 23 anos; porque gosto de me espantar com as coisas que eu era capaz de dizer.

É muito difícil explicar hoje, aos meus filhos, que nós vibrávamos com algumas destas cantigas e éramos capazes de cantar, com convicção, coisas como: “e há tanta gente pra lutar/ p’la democracia popular/ que não há falsos amigos do povo/ que nos impeçam de um dia ganhar” – ou, ainda pior: “soldados e marinheiros suas armas erguerão/ ombro a ombro com o povo/ pra acabar com a exploração/ será a luta final/ em vermelho, em multidão”.

Foram anos, felizmente poucos, de delírio colectivo: fundar uma Democracia Popular num país europeu, membro da Nato! Como foi possível?

Mas que foi divertido, lá isso foi…

Quanto aos discos:

—“A Cantiga é uma Arma” é o mais panfletário, cheio de hinos aos operários e camponeses. A influência de José Mário Branco é notória. Embora já se desconfiasse, ficamos agora a saber que é ele o autor das melhores cantigas deste álbum: “A Cantiga é uma Arma” (“contra quem, camaradas? Contra a burguesia!”), “A Luta do Jornal do Comércio” (“í“ Machado, vai-te embora!”), “Alerta” (“Democracia Popular e Ditadura Proletária, pois claro!”), “Ronda do Soldadinho”, entre outras.

São 17 faixas cheias de palavras de ordem e as músicas têm, muitas delas, estrutura de marcha. A faixa nº9 chama-se “Hino da Reconstrução do Partido” e alguns dos elementos do GAC estiveram envolvidos na fundação do PCP (R) e apoiavam abertamente a UDP. Aliás, durante algum tempo, a cantiga “Alerta” foi o hino da UDP.

Esta colagem de elementos do GAC aos partidos í  esquerda do PCP, fez com que outros elementos, como Fausto, se afastassem do grupo.

—Embora editado em 1976, o primeiro álbum do GAC resultava da junção dos vários singles saídos em 1975. “Pois canté!!” é outra história. Editado em 1976, o 2º álbum do GAC é um salto qualitativo enorme, em relação ao anterior. A noção de “cantiga ao serviço do povo” é enriquecida com a cultura musical dos vários elementos do GAC (instrumentistas, maestr5os, críticos de música, compositores, cantores, etc).

“Pois Canté!!” tem algumas cantigas que continuam a ser muito audíveis, apesar das letras “revolucionárias”. É o caso do tema que dá o nome ao álbum, da autoria do José Mário Branco. A estrutura da canção é muito trabalhada por instrumentos de sopro (fagotes e flautas) e a voz do compositor impõe-se: “enquanto anda lá no céu a cotovia/ ando a trabalhar o pão de cada dia/ para encher a pança a essa burguesia/ sempre a trabalhar/ pro patrão gozar/ isto inté qu’há-de mudar um dia/ Pois canté!”

Outras grandes cantigas (todas de José Mário Branco): “Cantiga sem maneiras”, “Cantiga do trabalho” e “Coro dos trabalhadores emigrados”.

Mas quase todos os temas de “Pois Canté!!” são música popular, folk, se quiserem, de qualidade, apesar das letras datadas (“lado a lado com o teu homem/as mesmas horas do dia/O patrão aos dois explora/Inda mais a ti Maria”).

—Depois do êxito de “Pois Canté!!”, o GAC começou a enfrentar os problemas do PREC (processo revolucionário em curso): divergências internas, dúvidas quanto ao rumo a seguir. “…E Vira Bom” é o 3º álbum. A estrutura do álbum difere muito do anterior, alternando um cantiga de raiz popular, adaptada pelo GAC, com um instrumental tradicional. José Mário Branco é autor, apenas, de um tema, o “Hino da Confederação”.

Não se pode dizer que tenha esmorecido o fervor revolucionário, mas nota-se que as coisas já mudaram porque as letras estão mais “suavizadas”, embora ainda se digam coisas como “dia a dia a vida é um tormento/ e ao ricaço anda a gente/ a dar a dar sustento/ vida santa/ a vida do madraço/ que o trabalho é cá pra gente/a dar a dar/ cansaço”.

—Também em 1977 saiu “…Ronda da Alegria”, o 4º e último álbum do GAC. Neste álbum, não consta nenhuma colaboração de José Mário Branco nem de Tino Flores (outro elemento muito activo do GAC, em 1975 e 1976). Aliás, se não me engano, os únicos nomes que se mantêm na ficha técnica dos quatro álbuns, são os de Eduardo Paes Mamede e de Luis Pedro Faro.

“…Ronda de Alegria” é mais do mesmo. Temas de raiz popular, com letras “revolucionárias” e arranjos “populares” – muita percussão, muitos bombos e tarolas, muitas gaitas de foles, Trás-os-Montes e Alentejo, operários e camponeses, menos soldados e marinheiros do que em 1975 porque, entretanto, tinha acontecido o 25 de Novembro de 75 e parecia claro que nem todos os soldados e marinheiros eram revolucionários…

E o GAC dissolveu-se pelas mesmas razões que se dissolvem as empresas capitalistas: falta de cacau, massa, carcanhol, papel, pasta, narta!

Mas lá que foi divertido, foi e nós, quando nos reunimos em família, não resistimos a cantar, em coro: “na herdade do Vale Fanado/ terra rica em trigo e gado/ freguesia de Albernoa…”