A bela vista de um bispo

A comunicação social está, mais uma vez, muito contente: houve alguns distúrbios no Bairro da Bela Vista, em Setúbal.

Em traços largos: um jovem habitante desse bairro, fazia parte de um gang que assaltou a caixa multibanco do Hospital Particular do Alvor. Durante a fuga, a polícia atingiu-o a tiro e o jovem morreu.

Depois do funeral, familiares e amigos do jovem, manifestaram-se contra a polícia e houve uma troca de pedras e outros mimos.

História habitual.

No entanto, logo as televisões enviaram repórteres para o local, que transmitiram, em directo, para os três telejornais. E, assim que se acendem os holofotes televisivos, há sempre aquela tendência para as vozes se elevarem.

Seguiram-se dois ou três carros incendiados, meia dúzia de tiros para o ar e a festa vai continuar durante mais alguns dias.

Aposto que a coisa acaba assim que a comunicação social desmobilizar e passar a outro assunto.

Claro que a tensão entre os habitantes deste, e de outros bairros sociais, e a polícia, existe sempre. Por definição.

Claro que alguns desses habitantes estão envolvidos em negócios ilícitos.

Claro que, por vezes, a polícia exagera.

Claro que todos os habitantes desses bairros, entrevistados pelas televisões, precisavam de arranjar os dentes.

Claro que a culpa de tudo isto é do Sócrates, que só arranja cheques-dentista para grávidas, idosos e crianças, deixando de fora meliantes, traficantes, e outros vencidos da vida.

Claro que a comunicação social rejubilaria com confrontos a sério, assim como aconteceu nos bairros da periferia de Paris, ou com os ocupas da Dinamarca, ou nas ruas de Atenas.

Mas nós somos um país de brandos costumes, mesmo nos bairros sociais.

Por isso me espantaram as declarações do bispo emérito de Setúbal, D. Manuel Martins, também conhecido por Bispo Vermelho, provavelmente porque tem a pele muito sensível ao sol.

A propósito dos confrontos no bairro da Bela Vista, que ele tem a obrigação de conhecer bem, disse o Sr. Bispo – e quando um bispo fala, os outros baixam as orelhas – que “o que eu receio, e tenho repetido muitas vezes, é que nestas situações possamos encontrar, num futuro próximo ou remoto, já uma fogueira preparada para incendiar o país”.

Simpático, o Sr. Bispo. E optimista. A polícia mata um tipo que está a assaltar uma caixa multibanco, os habitantes do bairro onde ele vive, revoltam-se e, em questão de segundos, o país está a arder.

E, se isto não acontecer agora, vai acontecer num “futuro próximo ou remoto”. Bispo dixit!

Gostava de saber o que andou o Sr. Bispo, durante 20 anos, a fazer em Setúbal. Não criou estruturas que apoiassem os jovens destes bairros problemáticos, ensinando-lhes o catecismo e todas as coisas boas que a religião católica tem para oferecer, como seja, por exemplo, a vida eterna – desde que não cometas um dos pecados mortais.

Ora, o próprio bispo afirma: “se não tiver pão, ou mato-me ou mato, porque sem comer não se pode viver”.

Ou mato-me ou mato, Sr. Bispo?

Então e aquela coisa do “não matarás”? E aquela outra “felizes os pobres, pois deles será o reino de Deus”?

Com bispos destes, temos os católicos que merecemos…