O império do fait-divers

A escalada de violência no Médio Oriente voltou às primeiras páginas dos jornais e à abertura dos telejornais.

Nos primeiros dias deste novo (?) conflito, a comunicação social portuguesa parece ter estado a leste (ou a oeste, neste caso…). Enfim, eram mais umas bombazitas que, ao fim e ao cabo, até matavam menos pessoas que qualquer atentado no Iraque.

Mas, de repente, surgiu um motivo bom para abrir telejornais: havia portugueses no Líbano e queriam ser repatriados. Ora aí está algo que permite uma entrevista no aeroporto, daquelas que tocam o coração de quem está a ver – “é horrível! não conseguimos dormir por causa das explosões!”

Pessoas reais que nos contam as suas angústias, e não palestinianos ou libaneses ou israelitas, que vivem lá, que têm familiares mortos, que viram as suas casas destruídas pelas bombas e pelos rockets.

A tragédia é mais real no singular. Eu consigo sentir compaixão perante uma morte – não sou capaz de sentir o mesmo perante 20, 30, 300 mortes.

Aliás, é sintomática a diferença de tratamento jornalístico, por exemplo, entre tsunamis. Alguém notou que aconteceu mais um tsunami na Indonésia? Morreram mais de três centenas de pessoas e outras tantas estão desaparecidas. Só que, desta vez, pelos vistos, havia menos turistas na região, não há gravações de vídeo amadores e a notícia perde-se no meio do telejornal.

Voltando ao conflito israelo-libanês, os telejornais gastam mais tempo com as entrevistas aos ocidentais que estão a ser repatriados do que, propriamente, com o conflito em si, as suas causas e as suas consequências.

Tudo se resume a colagem de fait-divers. Ontem, no telejornal da RTP-1, vi uma reportagem inacreditável: um suposto membro do Hezbollah, guiava um jornalista da BBC pelo meio dos escombros resultantes das explosões israelitas e ia debitando propaganda a favor do seu movimento. A espaços, fazia notar quão perigoso era estar ali porque, a qualquer momento, poderiam ser vítimas de uma bomba sionista. O que interessava na reportagem era que nós, confortavelmente sentados nas nossas casas, percebêssemos o que o repórter estava a sofrer, naquele momento, o perigo que ele corria, o que ele arriscava, só para nos dar aquela sensacional reportagem.

A substância da coisa era nenhuma: nem o autóctone representava coisa nenhuma (podia ser um simples guia turístico, em busca de uma boa gorjeta), nem a reportagem provava nada, embora nos quisessem fazer crer, com aquelas imagens, que Israel se limita, afinal, a bombardear alvos civis, e não alvos do Hezbollah.

Noutro momento, a RTP-1 ofereceu-nos o general Loureiro dos Santos, que nos foi explicar a estratégia de Israel, referindo que os judeus bombardearam o aeroporto de Beirute e a auto-estrada Beirute-Damasco, para evitar a fuga dos terroristas ou o seu rearmamento.

Afinal, é tudo tão simples: há os bons e os maus, ou os menos bons e os menos maus e tudo se justifica com meia dúzia de frases feitas e lugares comuns.

Suspeito que a maioria dos portugueses olhe para tudo isto como quem está a ver mais um reality show.

Os israelitas baseiam toda a parafernália de bombas com o facto do Hezbollah ter raptado dois soldados judeus.

Eu, se fosse ao Hezbollah, devolvia imediatamente os soldados raptados: “tomem lá, que a gente não quer estes gajos para nada!”

Sempre queria ver se, depois disso, Israel parava imediatamente com as bombas…

5 thoughts on “O império do fait-divers

  1. E não viste aquela senhora que estava na praia na linha do estoril e que nunca teve tanto medo na vida porque o céu começou a ficar negro e começou a chover!!!!! e ela pegou nos dois filhos e fugiu porque aquilo parecia um TSUNAMI!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

  2. Houve uns tipos, há uns séculos atrás, que fizeram umas cruzadas para “empurrar” a mouraria para longe.

    Uns tempos depois, houve um tipo, isto há coisa de 60 anos, que se lembrou de gasear os judeus!

    Afinal era tudo um aviso: “Se não arrumamos estes gajos eles vão-vos dar sarilhos mais tarde!”

    Não fizeram caso, agora aí está o resultado!!

    Se tudo fosse assim tão simples…

  3. Ó Babinha: não me diga que não gostaria de ver um tsunamizito na praia do Tarquínio! Depois do susto, íamos todos comer um quarto de cassata. Não acha o máximo?

  4. Grave, mas grave mesmo, é a super-polícia vir a terreiro argumentar que não adianta quer intermediar! Enquanto os objectivos não estiverem cumpridos, a coisa vai continuar.
    O que não nos dizem mesmo é quais são os verdadeiros objectivos, para além de um libertar de dois hipotéticos raptados que, concordando com todas as probabilidades, já estarão mortos há algum tempo!
    Ou será que há que gastar os “Patriot” para os substituir por outros mais modernos?

  5. Essa de aproveitar a oportunidade para gastar os mísseis que estão a ficar fora do prazo é como a do doente que toma todos os analgésicos, antibióticos e antihipertensores que tem lá em casa, tudo no mesmo fim-de-semana, porque o prazo de validade está a acabar. A diferença é que, com os mísseis, quem se lixa são os outros…

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