Notícias desta choldra

Que país parvo é Portugal. Parvo no sentido latino do termo, isto é, pequeno. Pequeno no sentido de inferior.

Nos últimos dias, duas notícias têm merecido parangonas nos jornais e aberturas de telejornais: a explosão num prédio, em Setúbal e o facto de uma funcionária pública de Vitorino de Piães não ter sido reformada pela junta médica.

Vamos lá escalpelizar isto.

Comecemos por Setúbal: uma aparente fuga de gás num andar de um prédio, em Setúbal, provocou uma forte explosão, que destruiu os três últimos andares do edifício e causou grandes danos em todos os restantes andares e nos edifícios vizinhos.

E depois?

Depois, dias a fio, as televisões transmitiram, em directo, afirmações dos condóminos, da governadora civil, da presidente da Câmara, dos donos das lojas, de tipos da Protecção Civil, de todos e de cada um. Até vimos, em directo, um engenheiro do LNEC a explicar, com um esquema, como iria ser reforçada a estrutura do prédio, de modo a evitar um eventual desmoronamento.

Tenho muito respeito por Setúbal, que até é a capital do distrito onde vivo, posso sentir alguma solidariedade para com os habitantes do prédio, que ficaram com as suas casas destruídas e os seus haveres em fanicos – mas daí até considerar este episódio digno de directos nos telejornais, vai uma distância enorme.

Segunda notícia: uma funcionária da Junta de Freguesia de Vitorino de Piães, em Ponte de Lima, foi a uma junta médica, após três anos de baixa, e foi considerada apta para o trabalho. Os jornalistas consideraram que isto merecia ser notícia. Vimos, então, a anafada senhora, com o colar cervical da praxe, deitadinha na cama ou sentadinha no sofá, dizendo que sofre de uma doença degenerativa da coluna e que não pode sequer deslocar-se sozinha.

O espalhafato foi tanto, que o ministro das Finanças que, de doenças degenerativas da coluna percebe nada, veio a público dizer que a funcionária iria continuar de baixa e que seria submetida a nova junta médica.

A nova junta médica foi ontem e os meus colegas devem ter sido confrontados com um cenário que eu bem conheço: alterações degenerativas da coluna cervical e lombar, instabilidade da charneira lombo-sagrada, uma ou outra cervicartroseuncodiscratroses e, ao que parece, sequelas de uma eventual cirurgia a hérnia discal que, segundo os jornais, não terá corrido muito bem. Ora bem, tudo isto (menos a cirurgia) tenho eu e mais uns quantos milhões de portugueses. Arrisco-me a dizer que, depois dos 40 anos (a funcionária tem 43), toda a gente tem alterações degenerativas na coluna. Quanto a mim, só na coluna cervical, tenho três hérnias. Doença degenerativa da coluna não é o mesmo que, por exemplo, doença degenerativa do Sistema Nervoso Central – e se os jornalistas não sabem isto, perguntem a quem sabe.

A junta médica considerou a funcionária apta para o trabalho.

Como é natural…

Diz o DN: “recorde-se que até o ministro das Finanças tinha dito «ser óbvio que a situação tem de ser reanalisada e reapreciada»”

O que quer isto dizer? Que é óbvio que a senhora está incapaz para trabalhar? Agora é o ministro das Finanças ou os jornalistas que decidem estas coisas?

Como tem sido hábito os juízes, graças às providências cautelares, decidirem a reabertura dos SAP, a repetição dos exames ou o pagamento de horas extraordinárias nas aulas de substituição, pode ser que, a partir de agora, sejam os jornalistas a decidir quem está incapaz para a sua profissão por doença invalidante.

E hoje, a cereja sobre o bolo: os elementos da Junta de Freguesia de Vitorino de Piães ameaçaram demitir-se se a situação da funcionária não for revista.

A isto chama-se democracia popular – ou não?

Não.

A isto chama-se choldra… e já no tempo do Eça assim era…

5 thoughts on “Notícias desta choldra

  1. Meu caro,
    Os seus argumentos parecem válidos, quanto mais não seja porque sabe do que fala. Mas não concordará que, entre os médicos, também há muita choldra e que por vezes parece que consideram aptos para o trabalho pessoas que efectivamente não o são?

    Não será este caso, parece. Mas que os há, diria que há. Para que casos como este que relata não causem este tipo de fenómenos de agitação popular e hesitações políticas seria preciso que outros, em que os doentes até têm razão, não fossem alvo de alguma ligeireza por parte da sua classe profissional.

    Cordiais saudações,
    VB.

  2. Com certeza que há médicos incompetentes, como em qualquer outra profissão. O que está aqui em causa é o uso que os cidadãos estão a fazer da comunicação social: se a junta médica não me dá a reforma, se o patrão não me paga o 13º mês, se o meu vizinho me fura os pneus do carro, em vez de me dirigir às autoridades competentes e tentar fazer valer os meus direitos, telefono para a TVI. Reportagem garantida. E os jornalistas são os novos justiceiros.

  3. Caro Artur, tem razão no que diz. Terei feito uma leitura enviesada daquilo que escreveu. Concordo consigo no que diz… talvez fruto de uma Justiça percebida como perra, as pessoas socorrem-se do que é mais imediato: a pressão popular

  4. Se isto são comentários de uma pessoa que se diz ser médico, vá exercer medicina para outro país de preferência um no 3º mundo onde as pessoas não se podem queixar da medrioquidade que existe nesta classe, devia ser tipo americano; não presta comete erros, rua, pense um pouco antes de abrir essa bocorra.

  5. Não sei quem tu és, Neves, mas deixa-me que te diga que “mediocridade” escreve-se assim e não como tu, meu medíocre, escreveste. E digo-te mais uma coisa: infelizmente, tenho razão – este país é uma choldra. A coitada da funcionária da Junta é apenas o elo mais fraco…

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