“Olho de Gato”, de Margaret Atwood (1988)

Gostei muito deste livro que já tem algumas décadas de edição no Canadá, mas que saiu agora, na Bertrand, com tradução de Rita Canas Mendes.

Atwood é uma escritora prolífica e dela já li muitas coisas, incluindo o Booker Prize de 2000, O Assassino Cego, e outros, como A História de uma Serva, Grace, O Coração é o Último a Morrer”, Ressurgir, Os Testamentos, Coração de Pedra.

Neste Cat’s Eye, Margaret Atwood conta-nos a história da pintora Elaine Risley, desde os tempos em que ela, os seus pais e o seu irmão, deambulavam pelas florestas canadianas, pouco depois do fim da Grande Guerra. O pai estudava insectos e a família ia atrás. Mais tarde, radicaram-se numa Toronto ainda por construir e por desenvolver. Elaine encontrou amigas, sobretudo uma, chamada Cordelia, que haveria de ensombrar o seu futuro. Vamos acompanhando a vida de Elaine, com muitas visitas ao passado, as suas paixões, a sua atitude cínica perante a vida.

Apesar da diferença entre a vida no Canadá no post-guerra e a vida num país como Portugal nessa época, encontramos alguns pontos de contacto.

Como este pedaço da infância de Elaine:

“Dois dias depois, a Carol conta-nos que o pai lhe deu uma valente sova de cinto, com o lado da fivela, diretamente no rabo. Diz que mal consegue sentar-se. Parece orgulhosa disto. Depois das aulas, no seu quarto, mostra-nos: levanta a saia, baixa as cuecas, e lá estão as marcas, parecidas com arranhões, não muito vermelhas, mas efectivamente lá.”

Elaine torna-se uma pintora, digamos, feminista, mas sem acreditar muito nisso. Depois de um primeiro casamento falhado, conhece Ben, um homem tradicional. Acaba por gostar disso:

“Anos antes, tê-lo-ia considerado demasiado óbvio, demasiado tolo, praticamente um simplório. E, durante anos depois disso, um chauvinista da espécie mais amistosa. Ele é todas essas coisas; mas também é como uma maçã, depois de um banquete desenfreado.

Vem a minha casa e repara o alpendre traseiro com os seus próprios serrote e martelo, como nas revistas femininas de antigamente, e depois bebe uma cerveja, no relvado, como nos anúncios.  Conta-me anedotas que eu não ouvia desde os tempos do liceu. A minha gratidão por estes prazeres triviais surpreende-me. Mas não preciso dele, ele não é nenhuma transfusão. Ele agrada-me, só. É uma felicidade sentir-me agradada com algo tão simples”.

“Olho de Gato” é um dos melhores livros que li nos últimos tempos.

“Rapariga, Mulher, Outra”, de Bernardine Evaristo (2019)

Em 2019, houve duas vencedoras do Man Booker Prize.

Apesar do Prémio ter Man no nome, foram duas mulheres as vencedoras: Margaret Atwood, pelo seu livro Testamentos e este excelente Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo.

Quase que apetece dizer que o júri do Man Booker não se atreveu a conceder o prémio apenas à escritora anglo-nigeriana, e resolveu juntar o nome de Margaret Atwood. De facto, Rapariga, Mulher, Outra é, na minha opinião, muito melhor que Testamentos.

Evaristo nasceu em Londres em 1959, filha de uma professora inglesa e de um soldador nigeriano, quarta de oito filhos.

É autora de romance, poesia, teatro e crítica literária e, com este Rapariga, Mulher, Outra, conseguiu um dos melhores livros que li ultimamente.

Numa escrita torrencial, conta-nos as histórias de doze mulheres: Amma, uma dramaturga negra e lésbica, Shirley, sua amiga, professora, farta da profissão; Carole, ex-aluna de Shirley, uma bem-sucedida gestora de fundos de investimento, que se envergonha das suas raízes africanas, a sua mãe, Bummi, negra e empregada doméstica; e mais oito personagens femininas principais, para além de outras que cirandam à volta destas.

São quase 500 páginas de histórias que nos mantêm agarrados, e sempre com uma linguagem fresca, sem grandes rodriguinhos.

Claro que não conheço a versão original, em inglês, mas atrevo-me a dizer que a tradução de Miguel Romeira é excelente.

“Ressurgir”, de Margaret Atwood (1972)

É o segundo romance desta escritora canadiana, bem diferente das distopias que escreveu posteriormente.

A narradora é uma jovem que se desloca, com o namorado e um casal amigo, à ilha onde viveu com os pais, durante a infância. O seu pai desapareceu e o seu objectivo é encontrá-lo.

No entanto, ao chegar à ilha e à velha casa de madeira, antigas memórias vêm à superfície, bem como dúvidas sobre a sua relação com o actual namorado, com o irmão distante, com os pais.

A pouco e pouco, a protagonista vai-se identificando com a natureza selvagem da ilha, com o lago, a floresta e, no fim, quase questiona a sua espécie.

Livro curioso, cuja atmosfera me fez lembrar alguns romances de Patricia Highsmith, porque estamos sempre à espera que qualquer coisa de muito trágico aconteça.

“Os Testamentos”, de Margaret Atwood (2019)

Com esta sequela de A História de Uma Serva, Margaret Atwood ganhou o Booker Prize de 2019.

Quem está à espera de um final decisivo para a distopia inventada pela escritora canadiana, vai ficar desiludido, porque ela se limita a deixar pistas, embora muito fortes, para que nós imaginemos o que se passou, depois da fuga da República de Gilead, de Nicole e de Agnes, e do diário confessional da Tia Lydia.

Atwood construiu este livro com três narradoras: a Tia Lydia, uma das fundadoras de Gilead e que decide escrever uma espécie de diário, em que confessa o seu plano para destruir o que ajudou a criar, Agnes, uma jovem que consegue evitar o seu casamento com o Comandante Judd, tornando-se Tia, e Nicole, a filha de um serva fugitiva, que vive no Canadá, mas que é introduzida em Gilead pelo movimento Mayday, para tentar corroê-lo por dentro.

O livro está escrito para quem leu A História de Uma Serva e só faz sentido, penso eu, se se ler, primeiro aquele. Muitas das particularidades da República de Gilead só se percebem completamente, se se tiver lido o primeiro livro.

Margaret Atwood escreve bem, está à vontade no que respeita a criar suspense e, por isso, o livro prende-nos, do princípio ao fim, mas já não tem aquele sabor de novidade que tinha o seu antecessor.

Gostaria que a autora escrevesse uma prequela. Fiquei sem saber como nasceu Gilead e o que foi a guerra de Manhattan.

“O Coração É O Último A Morrer”, de Margaret Atwood (2015)

Mais uma distopia de Margaret Atwood, mas esta não é tão bem conseguida como a famosa História de uma Serva (a sequela será publicada em Portugal ainda este ano).

Neste The Heart Goes Last, Atwood conta a história de Stan e Charmaine que, após a grande crise económica, estão desempregados e vivem no carro, que é o único bem que mantêm.

Desesperados, tomam conhecimento da Consiliência, uma espécie de cidade-piloto, onde se desenvolve a experiência Positrão.

Nessa cidade experimental, em troca de empregos estáveis, os habitantes aceitam ceder a sua liberdade, mês sim, mês não: num mês, vivem nas suas residências e trabalham nos seus empregos, no mês seguinte, vão para a prisão, onde trabalham gratuitamente, sendo substituídos nos empregos pelo seu cidadão alternante.

A ideia parece-me muito forçada e o desenvolvimento da história ainda mais forçada é, na minha opinião.

Margaret Atwood saíu-se muito bem com a criação da tenebrosa República de Gilead, mas esta Consiliência não me convenceu.

(Edição da Bertrand, tradução de Ana Falcão Bastos e Cláudia Brito)

Outros livros de Margaret Atwood: O Assassino Cego; Grace

“O Assassino Cego”, de Margaret Atwood (2000)

Foi com este The Blind Assassin que a canadiana Margaret Atwood venceu o Booker Prize de 2000.

Só agora o li e foi um dos melhores livros que li nos últimos tempos.

A narradora é Iris Chase, uma octogenária com um coração doente que vai recordando a sua vida desde a infância, desde o tempo em que o seu avô enriqueceu com fábricas de botões. Depois, veio a Primeira Guerra, a Depressão, a Segunda Grande Guerra e a família Chase vai sofrendo convulsões, dramas e alegrias.

Iris tem uma irmã, Laura, com uma personalidade peculiar – hoje diríamos que seria, talvez, uma Asperger. Logo no início da narração, sabemos que Laura morre num acidente de automóvel, dez dias depois de terminar a Segunda Grande Guerra.

Postumamente, é publicado O Assassino Cego, romance alegadamente escrito por Laura e que é um sucesso instantâneo, mas Iris tem revelações surpreendentes para fazer, no final do livro.

Assim, esta obra de Atwood apresenta a narração de Iris Chase, intercalada com alguns capítulos do livro alegadamente escrito pela irmã e algumas notícias publicadas em jornais da época, relacionadas com a família Chase.

É começar a ler e não querer parar.

Edição Livros do Brasil, tradução de Elsa T. S. Vieira

“Grace”, de Margaret Atwood (1996)

Em 1843, no Canadá, Grace Marks, com apenas 16 anos, foi condenada pela participação no assassínio do seu patrão e da sua governante e amante. Depois de muita polémica, o Tribunal condenou à morte por enforcamento o moço da estrebaria, que teria sido o assassino material de ambos e Grace, embora acusada de ter sido a instigadora e cúmplice, foi condenada a prisão perpétua, devido à sua juventude.

Margaret Atwood fez um trabalho exaustivo de investigação, estudando os jornais da época, livros e revistas, que mencionaram em abundância aqueles crimes, estudou, certamente, outras publicações contemporâneas, onde foi buscar informações sobre sessões espíritas, mesmerismo e hipnotismo, usos e costumes das criadas, o que elas usavam para tirar nódoas, como cozinhavam, o que faziam para corar roupas, etc – e como toda essa informação escreveu este romance muito interessante, quase todo na primeira pessoa, com a voz de Grace Marks.

Gostei muito do livro, não só pela linguagem coloquial da Grace Marks, mas também pela personagem do Dr. Jordan, um jovem psiquiatra, que se interessa pelo caso e que, através de entrevistas a Grace, tenta compreender a personalidade da alegada criminosa, à luz das novas teorias psiquiátricas, quando o Freud ainda não tinha nascido…

Vale a pena ler.

“A História de uma Serva”, de Margaret Atwood (1985)

Só agora me dispus a ler este romance de Margaret Atwood (Otawa, Canadá, 1939), escritora sobejamente conhecida, com inúmeras obras publicadas, entre elas, O Assassino Cego (Booker Prize de 2000).

E só agora o decidi ler porque, mais de trinta anos depois da sua publicação, a sua autora decidiu escrever um segundo livro, que deverá ser uma espécie de continuação do primeiro, e esse facto foi largamente noticiado e acabou por me despertar a curiosidade.

Confesso que o livro não me entusiasmou por aí além. No que respeita a distopias, O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1931) e 1984, de George Orwell (1949), estabeleceram níveis difíceis de atingir, muito menos de superar.

No entanto, a história que Atwood inventou está bem urdida e deixa-nos alguma água na boca, na medida em que muita coisa é sugerida, mas pouca coisa é revelada. Por exemplo, como é que os Estados Unidos se transformaram naquela bizarra República de Gileade, onde ficam as colónias, terá havido uma catástrofe nuclear, etc.

O mais curioso do livro acaba por ser a “semelhança” entre essa República de Gileade e a actual administração de Donald Trump. E coloco muitas aspas na semelhança, evidentemente. No entanto, o puritanismo evangélico, um certo desprezo pelas mulheres, a crença na supremacia dos brancos – tudo isso cheira à América de Trump.

No fundo, Margaret Atwood inventou uma espécie de Daesh cristão, décadas antes do próprio Daesh.

Vale a pena ler, quanto mais não seja para podermos ler a sua sequela, a editar já este ano.