Pesquisa lingual

Foi quando os seus lábios se encontraram que ela reparou na complexidade da língua. Que órgão maravilhoso aquele!…

Lentamente, minuciosamente, notou que a língua ocupava a parte média da cavidade bucal, sendo mais ou menos ovalar, com uma grande extremidade posterior e terminando por uma ponta, í  frente.

Paulatinamente, com o rigor dos cientistas, percorreu a sua face dorsal, os seus bordos, a sua ponta, e percebeu que todos eram revestidos por uma mucosa. Mais ao fundo, na base, notou que a língua se ligava através de numerosos músculos ao oso hioide, ao maxilar inferior, í  abóbada palatina e í  apófise estiloide.

Já sabia ““ até porque não era nenhuma ignorante ““ que a língua era a sede dos órgãos do gosto, mas só então reparou que, graças a tantos músculos, ela possuía uma mobilidade verdadeiramente fantástica ““ o que explicava a sua participação na deglutição, na mastigação, na fonação e também naquele beijo prolongado e científico.

Cada vez mais interessada, ainda notou que a face superior ou dorsal da língua estava dividida em duas partes por um sulco em forma de vê, aberto í  frente. Mas o seu estudo ficou por aí. Ligeiramente roxo, ele empurrou-a ofegante, abriu a janela de par em par e aspirou uma boa dose de oxigénio, jurando para si próprio que nunca mais beijaria uma estudante de Anatomia…

  • in “Uma Vez por Semana – o seu programa sexual”, Rádio Comercial, 8/2/1986

Pequeno Dicionário

Pequena nota introdutória: a letra “…A” do nosso Pequeno Dicionário saiu inopinadamente, sem qualquer explicação prévia. O que pretendemos com a edição deste Pequeno Dicionário? Por que razão incluímos o termo Aspirina, ignorando Agripina? Será isto um Dicionário ou, antes, uma Enciclopédia? Perguntas legítimas, mas í s quais não nos apetece responder. Portanto, passamos í  letra Bê.

BACHAREL ““ estilista francês (1555-?), bem nascido e razoavelmente inteligente. Ficou conhecido no mundo da moda pela invenção de um molho (exactamente o molho Bacharel), que também serve de perfume (o famoso perfume Ba-charel). Morreu pobre.

BLANDÍCIA ““ corista italiana, famosa por ser coxa, exactameente da perna cuja coxa era a mais apreciada pela geral. Em meados do século, sempre que ela entrava em palco, saíam diversos espectadores em braços, atacados de comoção eréctil. Conseguia fazer strip-tease sem se despir. Morreu pobre.

BRIOCHE ““ general belga que não participou nas invasões francesas por uma questão de latitude. Morreu paupérrimo.

BRONCOPNEUMONIA ““ linha de caminho de ferro da Transilvânia, que ligas as cidades de Bronco (2 habitantes, um deles cão) e de Pneumonia (565 habitantes recenseadas e mais de mil a monte). Construída entre 1898 e 1756, a linha de Bronco-Pneumonia só ficou concluída dez anos depois. Os comboios não páram nas estações, limitando-se a abrandar ““ o que torna o espectáculo muito mais engraçado.

BUCELAS ““ viniviticultor português do século XV, inventor do vinho de Reguengos e da aguardente de canas de Senhorim. Nunca revelou o seu segredo e morreu pobre.

BíšFALO ““ alcunha de Boi Bill, famoso cowboy sul-americano, conhecido pelo modo como dominava as vacas com um simples assobio. Era mudo e morreu pobre.

BUJIGANGA ““ desenhadora de modas, natural do estado do Ohio que, numa tarde de inspiração, em vésperas do seu casamento com Joseph Wrangler Lee Lewis, conheceu um obscuro rapaz, de nome Tony Old Chap Lois, filho de Luíza Miura. Desse conhecimento, nasceram as calças de ganga, ainda hoje muito usadas nas minas, onde são retiradas do minério principal. Morreu pobre.

BUZIO ““ poeta português, de ascendência marítima. O seu poema mais famoso termina com a c´lebre frase “…em cima da cama o púzio”. Morreu pobre.

  • in jornal Pau de Canela, 24.5.1985

Um electricista na Saúde: uma decisão de alta tensão

Numa altura em que a ministra da Saúde está, mais uma vez na berlinda, decidi desenterrar um texto que publiquei no Bisnau, a 7 de julho de 1983. Nesse tempo, Maldonado Gonelha, electricista de formação, fora nomeado ministro da Saúde. O Bisnau foi um semanário humorístico da Projornal, dirigido por Afonso Praça. Publicou-se entre março e novembro de 1983 e colaborei em todos os números.

Quando se soube que o prestigiado socialista Maldonado Gonelha, electricista convicto, fora nomeado ministro da Saúde, a opinião pública sofreu um grande choque. Mas o que acontece de facto, é que a dita opinião pública sofre de uma espécie de complexo de baixa tensão e não consegue, por vezes, atingir o alcance das medidas dos nossos governos ““ neste caso particular, a nomeação de alguns ministros do actual governo de coligação Seabra/Simão.

Ora, no sector da Saúde, há que tomar em consideração o precedente criado pelo anterior executivo: se um técnico de seguros pí´de gerir os Assuntos Sociais, por que não um socialista na Saúde? Acaso Beethoven tinha bom ouvido quando compí´s a 9ª Sinfonia? Não era António Aleixo analfabeto?

Aliás, basta pensar no incremento dos electro-choques, dos electrocardiogramas, dos electroencefalogramas para perceber a importância de termos um electricista na Saúde. Todos os médicos e para-médicos sabem como são frequentes as avarias nos electrocardiógrafos, nos raios xis e nas restantes máquinas essenciais ao diagnóstico de tantas doenças ““ e todas elas ligadas í  corrente, todas elas consumindo electricidade.

Pois, a partir de agora, temos um técnico capaz í  rente do Ministério certo.

E o que será o nosso coração senão um maravilhoso gerador? E quando ele para não será um curto-circuito na circulação coronária? E o que acontece ao indivíduo cujo gerador cardíaco curto-circuita?… Apaga-se!… Pois lá estará Gonelha, de busca-pólos em punho, pronto para todas as situações!

E o que serão os nossos nervos senão fios que conduzem os impulsos eléctricos até ao cérebro ““ esse verdadeiro e único computador? E o que acontece quando a tensão é muita?… Estoira um fusível e ficamos confusos. Quem melhor que um electricista perceberá esta linguagem?… Quem melhor que Gonelha poderá substituir esse fusível?…

E o que fazem as mulheres grávidas deste país?… Dão í  luz, claro… desde que alguém carregue no interruptor.

E o que serão os nossos rins senão acumuladores e filtros maravilhoso que, no entanto, podem sofrer avarias que só um bom electricista poderá reparar?

E o que é o amor senão a junção interal de uma ficha macho com uma tomada fêmea? E todos sabemos os problemas que surgem quando não existe bom contacto…

Por tudo isto, a decisão de colocar um electricista na Saúde não só foi acertada, como sobretudo electromagnética!

Festejos na Aldeia

A típica localidade de Oliveira de Padres comemorava o centenário da sua elevação a vila. Largo engalando com bandeirinhas e balões, a banda da colectividade, muita gente, aos magotes, o costume…

O presidente da Câmara subiu ao estrado e preparou-se para o discurso de abertura. As pessoas fizeram silêncio. A banda tocou os primeiros acordes do hino nacional ““ mas só os primeiros acordes porque o programa das festividades já estava atrasadíssimo.

E o presidente começou:

“…Outrora, a nossa vila…”

Lá do meio da malta, o Zé Gonçalves perguntou: “…O que quer dizer outrora?”

“…Antigamente…” ““ respondeu o presidente, e prosseguiu: “…Outrora, a nossa vila não passava de uma pequena e singela aldeia…”

O Mário Cunha, encostado a um candeeiro público, perguntou: “…O que é isso de singela, ó sr. Presidente?”

Já contrariado, o presidente explicou: “…singela quer dizer simples, bolas! Sempre a interromperam! Dizia eu que foi graças ao esforço tenaz dos seus habitantes…”

O Zé Gonçalves voltou í  carga: “…Tenaz?! Que quer isso dizer?!”

Tentando manter a calma, o presidente respondeu: “…Tenaz quer dizer persistente, continuado, sem parar…”

“…í€ fossanga, não é?” ““ exclamou o Mário Cunha.

“…Pronto, está bem, í  fossanga!” ““ condescendeu o presidente, e tentou prosseguir: “…No entanto, esse trabalho tenaz, isto é, í  fossanga, dos nossos habitantes, os nossos vindouros…”

“…Vim quê?!” ““ grunhiu o Zé Gonçalves.

Descontrolado, o presidente da Câmara atirou com os papéis do discurso ao ar e gritou: “…Acabou-se a conversa! Vamos aos copos e í s febras!”

Foi muito aplaudido e toda a gente se atirou aos comes e aos bebes, servidos com esmero no adro da igreja.

Entre um golo de vinho e uma dentada no pão, o Zé Gonçalves comentava: “…O sr. Presidente da Câmara estava hoje muito eloquente!…”

“…É verdade…” ““ concordava o Mário Cunha ““ “…e loquaz também…eu ultimamente ele tem demonstrado comportamentos bizarros…”

“…É o stress que o alto cargo que ocupa lhe provoca, na minha modesta opinião de leigo…” ““ concluiu o Zé Gonçalves, escorropichando o copo de vinho.

– Programa Pão com Manteiga de 13/2/1983, revista nº 21, agosto 1983 e adaptado pela ACERT ““ Associação Cultural e Recreativa de Tondela Trigo Limpo

Redação: A faca

A faca dá-nos o leite, o queijo e a manteiga. Eu gosto muito das facas. Na quinta do meu afí´ há três facas que estão no curral e quando lá fou passar as vérias, gosto muito de mugir as facas. Depois, lefo o leite í  minha afó Firgínia, que o aquece no vogão. É preciso ter cuidado quando se aquece o leite porque se ele verfe, deita por vora. A faca, quando está zangada, marra com duas coisas que tem em cima da cabeça e que são os cornos e que o meu pai também parece que tem e í s fezes até lhe doem í  brafa que ele tem que tomar um comprimido. Quando as facas são muitas chamam-se manada e quando são poucas, chamam-se só poucas facas. Quando ví´r crescido não quero ser faca porque senão tinha que vicar vechado no curral e não podia brincar í s escondidas e í  apanhada. ““ in Pão com Manteiga, 24 outubro 1982

Consulta médica

A ““ Doutor, tem que me ajudar!

B ““ Diga lá! Parece muito aflito!

A ““ E estou! Veja lá que, de há uns tempos para cá, quando como, sinto um PLUNK no coração e fico assustadíssimo!

B ““ Um PLUNK? Refere-se a um PLUNK isolado ou a um PLUNK precedido de um SPLASH?

A ““ Bom… isso depende da comida. Por exemplo, se como um bom bife de vaca, costume sentir um PLUNK logo seguido de um FENK, por vezes intervalados por um SPLASH agudo.

B ““ Estou a ver… e esse PLUNK SPLASH FENK não varia com a bebida?

A ““ Claro que varia, doutor. Se bebo cerveja, o SPLASH é mais grave e o FENK é substituído por uma espécie de BLURP-ZINK.

B ““ Portanto, trata-se, nesse caso, de um PLUNK SPLASH BLURP-ZINK…

A ““ Exacto. Mas se acompanhar o bife com vinho, o PLUNK desaparece, mas, em compensação, surge um FINK-TANG que me aflige imenso, sobretudo porque, entre o SPLASH e o BLURP-ZINK interpõe-se um BLIP-BLIP irritante!

B ““ Curioso… muito curioso… já tenho visto doentes com PRUNG BLIP-BLURP SPLASH POING, mas o senhor é o primeiro que me surge com FINK-TANG SPLASH BLIP-BLIP BLURP-ZINK.

A ““ Então, doutor… o que me aconselha?

B ““ Só vejo uma solução: BANG!

  • in Pão com Manteiga no Contra-Ataque, 24 abril 1982

Historinhas

* Era uma vez um homem com mau feitio.
Tinha tão mau feitio que os fatos lhe assentavam bem.
Um dia conheceu um alfaiate compreensivo.
Viveram felizes para sempre.

* Era outra vez um homem perante o qual todos ficavam de boca aberta.
Não que fosse muito belo ou terrivelmente feio.
Não que o seu porte fosse majestoso ou a sua figura ridícula.
Não que usasse roupas estranhas ou óculos na boca.
Simplesmente, perante ele, todos ficavam de boca aberta.
Era dentista.

* Era uma vez dois amigos muito amigos.
Certo dia, encontraram-se e fizeram uma combinação.
No dia seguinte, fizeram um saiote.
Um ano depois tinham uma excelente fábrica de lingerie.
* Estamos aqui para homenagear o nosso colega Rebelo.
Vamos homenageá-lo pela sua brilhante conduta durante todos estes anos ao serviço da nossa empresa.
Ele, que de tudo se privou, que se humilhou, que se deu de alma e coração í  tarefa que desempenhava.
Ele, Rebelo, empregado dedicado, merece a nossa homenagem.
Foi ontem, enquanto trabalhava com o frenesim habitual, que um ataque cardíaco levou o nosso colega para uma vida melhor.
Rebelo levantou-se da assistência, comovido e disse, com a voz embargada pela emoção:
– Parece que está equivocado, sr. Administrador… eu estou aqui…vivo…
Incomodado, o administrador deu-lhe um tiro certeiro e a sessão de homenagem prosseguiu, conforme o previsto.

* Era de noite.
No inverno.
Chovia.
O vento uivava de vez em quando.
Enfim, aqueles condimentos do costume, vocês sabem…
O Carlinhos não queria comer a sopa.
Também era habitual.
Nos dias em que o pai ia fazer serão, sentia-se mais livre e dava-se ao luxo de desobedecer í  mãe.
A mãe insistia. Ralhava. Prometia. Ameaçava. Que vinha o homem do saco e que o levava! O Carlinhos não acreditava. Que viesse!
E não é que veio mesmo?
Era o sr. João, carteiro da área. Pousou o saco da correspondência no hall de entrada e meteu-se no quarto com a mãe.
Quando o pai voltou mais cedo do serão e descarregou a pistola nos miolos dos adúlteros, o Carlinhos não percebeu.
Pois de foi ele que não quis comer a sopa…

  • in Pão com Manteiga no Contra-Ataque, 17 de abril 1982

Antigamente também havia super-heróis

Os super-heróis não são uma criação recente, como se poderia supor. Já na Antiguidade, muitos homens e mulheres se distinguiram pelos seus feitos, merecendo o epíteto de heróis. No entanto, se tivessem vivido no século 20 e vendessem as suas histórias a uma qualquer empresa de banda desenhada, certamente que seriam tão super-heróis como o homem aranha ou o super-homem.

Façamos uma rápida recapitulação dos grandes super-heróis de antigamente, sem preocupações cornológicas.

Todos se recordam de Spartakus que, com uma fisgas de ir aos passarinhos furou o olho do gigante Adamastor num combate que se tornou célebre em todo o Egipto. Ou Alexandre o Grande que, í  frente de um exército montado em elefantes, atravessou os Himalaias, derrotando os Persas em Ormuz, sem lugar para dúvidas nem lugar para mortos, que foram aos milhares. Todos se recordam também do pequeno David, possuidor de uma farta cabeleira que, graças í  sua força bruta, impediu que o Circo de Roma se desmoronasse durante o terramoto de 1755. Foi também nessa data que Joana D”™ Arc se tornou famosa ao transformar o pão que levava aos pobrezinhos esfomeados, em rosas perfumadas, ao ser interpelada por Lord Nelson que acabava de chegar da batalha de Aljubarrota, na qual, í  frente de um pequeno exército, derrotara as hordas dos temíveis Hunos, que pretendiam conquistar o Peloponeso.

Foi a histórica batalha de La Lys, em que também se distinguiu Guilherme Tell que, com um único tiro de pistola, acertou em cheio na maçã de Adão de Gengis Khan, pondo fim ao reinado de terror daquele impiedoso imperador jugoslavo.

Não menos famosa foi Deuladeu Martins, uma super-heroína lusa que, munida de uma pá de padeiro, esmagou o crânio do gigante Golias ““ essa fera hedionda, possuidor de um único olho, situado a meia distância.

Citemos ainda Bufalo Bill, espadachim exímio que, num duelo nunca visto, porque era noite, e estava escuro, derrotou Napoleão na grande batalha de Trafalgar, quando os ingleses, fartos e cansados da Guerra dos Cem Anos procuravam, a todo o custo, submeter os povos das Antilhas britânicas.

Outro grande nome foi, sem dúvida, Nabocudonosor, mas esse não foi herói.

Herói foi, no entanto, Robin dos Bosques, cavaleiro da Transilvânia que, durante a noite, se transformava num insaciável vampiro, conhecido pelo nome de Conde de Sabrosa, que aterrorizava toda a região limítrofe do seu castelo. Ou esse outro herói, o dr. Frankenstein que, graças a um produto químico que ele próprio fabricava no seu laboratório secreto, se transformava em dr. Jeckyl. Os americanos lembram-se bem dele e da sua actuação decisiva para a independência dos Estados Unidos,

 E o grande Ulisses que, na batalha de Trancoso, preferiu ser decepado a deixar a bandeira nacional nas mãos dos austro-húngaros, acabando por morrer com a bandeira nos dentes.

E os nomes dos super-heróis de antigamente poderiam seguir-se. Seria uma lista interminável.

El Cid, o campeador, herói britânico, que preferiu juntar-se aos povos árabes e lutar pela sua independência, nas ardentes areias do deserto paquistanês.

Robinson Crusoe que, com um golpe de espada trespassou a enorme baleia Moby Dick.

Bem-Hur que, mercê da sua super-força, afastou as águas do Mar Vermelho para deixar passar os Curdos, que fugiam dos agressores gauleses.

Lawrence da Arábia, que ficou na História como desbravador da selva africana, enfrentando feras, antropófagos e a malária, acabando por morrer í s mãos de King Kong, terrível chefe etíope que, na altura, dominava todas as tribos a norte do Tibete.

Ou Sir Lancelot e D”™Artagnan, dois dos famosos cavaleiros da Távola Redonda, que se distinguiram na busca da pedra filosofal, derrotando dragões e monstros fantásticos, como o de Loch Ness e o da Lagoa de Melides.

Que nos desculpem as memórias dos que não foram aqui citados, mas para todos os super-heróis de antigamente aqui fica a nossa homenagem e o nosso muito obrigado.

  • in Pão com Manteiga, programa da Rádio Comercial – emitido em 13 de setembro de 1981

Poema: As Linhas

Escrevo-te duas linhas/com duas pedras na mão
Para te dizer duas coisas/que me vão no coração

Uma é a aorta/ outra a pulmonar
Por favor fecha a porta/olha a corrente d”™ar

Escrevo-te duas linhas/com uma segunda intenção
A primeira não sei qual é/a segunda também não

Escrevo-te duas alíneas/ a alínea a) e a alínea b)
A primeira não sei qual é/ a segunda logo se bê

As duas linhas que escrevo/demonstram-te o meu amor
Uma vem do coração/a outra se faz favor

Termino estas duas linhas/com uma palavra de adeus
Um beijo aos teus paizinhos/um braço a todos os teus

  • in Pão com Manteiga, programa da Rádio Comercial – 2 de agosto de 1981 (tema: as linhas)

Brevíssima História do Comércio

O comércio foi inventado muito antes da escrita. Por isso mesmo, não existem documentos escritos sobre a invenção do comércio. De qualquer modo, a tradição oral, aquela que passa de boca em boca graças aos meios de ressuscitação em caso de afogamento, permite que tenhamos uma ideia, ainda que pálida, porque anémica, de como tudo começou. Ou talvez mia sou menos.

Foi para aí na Pré-História, no chamado período Triácico Inoxidável que o homem, então denominado troglodita, descobriu a pedra lascada, que era uma espécie de faca sem cabo, sem gume e sem faca, mas que servia para cortar. Consta que um troglodita perdulário fabricou quatro pedras lascadas, embora só necessitasse de uma.  Ficou aflito, sem saber o que fazer com as outras três.  De súbito, lembrou-se que o troglodita que vivia na caverna ao lado, tinha muito jeito para fabricar os mais diversos objectos, nomeadamente, corta-unhas, pisa-papéis e chapéus de chuva. Logicamente, ou talvez não, o nosso amigo troglodita, trocou as pedras lascadas que lhe sobravam por dois corta-unhas e um pisa-papéis muito bonito, daqueles que parece terem neve por dentro, quando se agitam, vocês sabem…

Estava inventado o comércio. Esta actividade especificamente humana foi-se desenvolvendo ao longo dos tempos e, alguns séculos depois, era frequente ver-se qualquer Kit Karson trocar colares, pulseiras ou na~eis peal amizade dos peles vermelhas.

No caso particular dos portugueses, a época dos descobrimentos foi áurea no que respeita ao comércio com outros povos. Sabe-se que, após a descoberta do caminho marítimo para a Índia, era frequente ver-se portugueses a trocarem bíblias, terços e figurinhas religiosas por canela, tíbias, perónios e mesmo pimenta.

Quanto ao comércio que desenvolvemos com os povos do continente africano, os negócios foram um pouco mais escuros, quer por mor da cor da pele dos africanos, quer porque habitualmente era noite e Edison ainda não tinha inventado a lâmpada.

Com o desenvolvimento do comércio, descobriu-se a exportação e a importação, que vieram revolucionar tudo ou, pelo menos, metade.

Como no caso da penicilina e do bicarbonato de potássio, a descoberta do export-import foi absolutamente fortuita. Conta-se que um inglês, de nome Colbert, ou Albert, ou mesmo Tony, possuindo café a mais em casa, decidiu atirá-lo pela porta fora. Por ironia do destino, o pacote de chá foi parar í s mãos de um canadiano imigrado, que passava por acaso. Estava feita a primeira exportação da História. Mas o referido cidadão francês teve mais sorte ainda quando o australiano, demonstrando uma honestidade insuperável (este texto está a ficar muito intelectual…) decidiu devolver o pacote de milho ao jugoslavo. Era uma importação.

Algum tempo depois, um francês, de nome Robespierre, teorizou o mercantilismo que, muito resumidamente, dizia que tudo pode ser comerciável, desde que existam palermas que comprem.

É este, ao fim e ao cabo da roca, a base de todo o comércio dos nossos dias. Desde que se tenha jeito, consegue-se vender pentes a carecas e enciclopédias a analfabetos.

  • in Pão comManteiga, programa da Rádio Comercial – 19 de julho 1981