Conto de Natal

Aníbal despertou cedo. Passara uma noite atribulada, acordando muitas vezes, sempre a pensar no mesmo. A ansiedade dominava-o.

Olhou para o despertador e viu que eram 7 horas. A seu lado, Maria ressonava ainda. Um fiozinho de baba escorria-lhe dos lábios entreabertos.

Aníbal resmungou qualquer coisa e virou-se para o outro lado, tentando readormecer. Era muito cedo e o Palácio estava frio como o caraças!

A austeridade obrigava a desligar os aquecimentos durante a noite e o nariz de Aníbal estava gelado. Da narina direita pendia uma estalactite de ranho transparente.

Passou mais meia-hora e o silêncio do quarto só era incomodado pelo ressonar de Maria.

Não posso mais, murmurou Aníbal e levantou-se de supetão. Uma tontura obrigou-o a sentar-se na cama com estrondo. Maria acordou, estremunhada.

Que foi isso, Aníbal? Estás a sentir-te mal?

Não consigo dormir mais, resmungou ele.

Mas são só sete e meia da manhã! Está toda a gente a dormir ainda!

Quero lá saber, ripostou Aníbal. Tenho que ir ver as prendas no sapatinho! O que será que o Menino Jesus me deu este ano?!

E Aníbal acabou por se levantar, vestiu o roupão e chinelou em direcção à cozinha do Palácio.

Desde pequenino que gostava de manter a tradição do sapatinho na chaminé e não era agora, que era uma Pessoa Importante, que ia mudar.

Contrariada, Maria chinelou atrás dele.

Chegou a tempo de ouvir um pequeno urro.

Debruçado sobre o sapato de pála, Aníbal examinava a única prenda que lá tinha, com ar apreensivo.

Já viste isto, exclamou Aníbal, com voz rouca – Só tenho esta prenda do Oliveira e Costa: acções do BPN!

Sacana do Menino Jesus!

Que lindo ar, ar-lindo!

Mais um ex-colaborador de Cavaco constituído arguido.

Já só faltam poucos.

Depois de Oliveira e Costa, que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e de Dias Loureiro, que foi ministro da Administração Interna, chegou a vez de Arlindo de Carvalho, que foi ministro da Saúde.

Todos eles fizeram parte de governos chefiados por Cavaco Silva.

Coincidência, claro…

Como ministro da Saúde, Arlindo esteve ligado a…, quer dizer, foi o responsável por…, isto é, foi o grande impulsionador de…

Enfim, ninguém se lembra do que Arlindo fez como ministro da Saúde – aliás, ninguém se lembra que ele foi, sequer, ministro.

Mas foi.

E de um governo chefiado por Cavaco Silva.

Com aquele olhar de goraz, Arlindo de Carvalho disse estar tranquilo «na medida em que não cometi nenhum ilícito declarado».

E não declarado?

Enfim: mais uma razão para não votar na Manuela Ferreira Leite.