“Lições”, de Ian McEwan

Lições foi o melhor livro que li neste último ano. Ian McEwan é um dos meus autores preferidos e este calhamaço de 650 páginas excede as expectativas

O livro conta-nos a história de Roland Baines, desde que, aos 11 anos, é seduzido pela sua professora de piano, Miss Miriam Cornell, até à sua velhice, depois de passar por muitos episódios marcantes, ao mesmo tempo que se assinalam os diversos acontecimentos da actualidade: a crise dos mísseis de Cuba, a queda muro de Berlim, Chernobyl, Margareth Tatcher, Angela Merkel e, finalmente, a pandemia do covid 19.

A sua relação com a professora de piano vai ser marcante para a sua vida. Entre os 14 e os 16 anos, Miriam Cornell toma Roland como seu escravo sexual. Ele consegue libertar-se, mas essa memória vai perdurar por toda a vida. Mais tarde, outro episódio também deixa marcas: a sua mulher abandona-o, a si e a um filho de meses, porque se quer tornar uma grande escritora. E já quase no fim da vida, enfrenta a morte inesperada de uma última companheira.

O livro tem passagens que merecem ser citadas e aponto aqui apenas algumas, caso contrário, teria que transcrever quase todo o livro.

Na página 32, Roland fala do cocó do filho Lawrence:

“Sem fazer barulho, Lawrence fez cocó enquanto dormia. O cheiro não era assim tão mau. Uma das descobertas da meia-idade – o quão depressa começamos a tolerar a merda da pessoa que amamos. É uma regra geral.”

Eu acrescentaria: é dos livros!

Àcerca da relação entre pais e filhos, nos anos 1950:

“Nos anos cinquenta, muitos pais não eram muito próximos dos filhos, especialmente das filhas. Abraços, expressões de amor, eram considerados demasiado vistosos, demasiado embaraçosos. A sua própria infância foi típica. Palmadas nas pernas, no rabo, eram comuns. As crianças, por muito amadas que fossem, tinham de ser educadas e não ouvidas.”

Sobre a relação especial de Roland com uma das suas netas:

“Ficava comovido pela forma como ela o procurava para lhe apresentar as suas reflexões solenes ou as suas perguntas ponderadas, ou para insistir que ele se sentasse ao lado dela nas refeições. Queria saber coisas do seu passado. Ficava fascinada pelas evidências claras da pujante vida interior de uma criança de seis anos. (…) Achava que Stefanie o considerava um bem antigo e extremamente precioso, cuja existência frágil tinha o dever de conservar. Sentia-se lisonjeado sempre que ela lhe dava a mão.”

Finalmente, quando Roland enfrenta a lenta e dolorosa agonia da pessoa que ama, fala sobre a eutanásia.

“Tinham passado dois séculos antes de o establishement ter achado que valia a pena olhar por um microscópio para examinar os microrganismos que Antoine van Leeuwenhoek tinha descrito em 1673. Estava contra a higiene porque era um insulto à profissão, contra a anestesia porque a dor era um elemento de doença dado por Deus, contra a teoria germinal da doença porque Aristóteles e Galeno pensavam o contrário, contra a medicina baseada na evidência porque não era assim que as coisas eram feitas. Agarraram-se às sanguessugas e às sangrias durante o máximo tempo possível. Em meados do século XX, defenderam a amigdalectomia maciça das crianças, apesar das provas. Um dia, eles chegariam ao direito de uma pessoa racional escolher a morte em vez de uma dor insuportável e impossível de amenizar.”

Livro que deve ser lido já!

Outros livros de McEwan: A Barata; Máquinas Como Eu; Numa Casca de Noz; A Balada de Adam Henry; Mel; Na Praia de Chesil; Cães Pretos; Entre os Lençóis; O Jardim de Cimento; Solar

“A Barata”, de Ian McEwan (2019)

Lê-se de uma penada (tem pouco mais de 100 páginas e o livro tem formato pequeno) e é uma brincadeira com alguma graça.

Ian McEwan não gosta do Brexit, acha que é uma ideia estúpida e decidiu contribuir, à sua maneira, para a discussão.

Socorreu-se de Kafka e da sua Metamorfose e usou-a ao contrário: uma barata deambula por Londres e entra no 10 de Downing Street. Quando acorda, é o primeiro ministro do Reino Unido. Demora um pouco a habituar-se a ter apenas quatro membros e a ter uma língua dentro da boca, mas depressa se adapta e começa logo a ter ideias.

Quando chega ao Conselho de Ministros desse dia, descobre que todos os ministros, menos o dos Negócios Estrangeiros, são baratas que sofreram a metamorfose. E põe em marcha o seu plano: instituir o regressismo.

Se o brexit é uma estupidez e vai ser implementado, porque não o regressismo, que consiste em inverter o fluxo do dinheiro: os trabalhadores pagam para trabalhar e recebem dinheiro quando vão às compras.

Claro que este primeiro ministro-barata é Boris Johnson, assim como Archie Tupper, o presidente norte-americano, é Donald Trump – mas isso nunca é referido, obviamente.

Custa só 11 euros e ajuda a passar uma parte da tarde divertida

(Editora Gradiva, tradução de Maria do Carmo Figueira)

“Máquinas Como Eu”, de Ian McEwan (2019)

Ian McEwan é um dos escritores vivos que eu mais aprecio. Não me lembro de um único livro dele de que não tenha gostado e já ,li todos os que estão editados em Portugal, começando pelo Amesterdão.

Este Machines Like Me and People Like You veio cair como sopa no mel depois de ter lido os três livros do historiador Harari.

Todas as inquietações que o historiador israelita suscita, no que respeita ao nosso futuro próximo, com o desenvolvimento da inteligência artificial, a substituição dos humanos por robost mais inteligentes e eficazes, o desemprego que daí advém, a formação de legiões de humanos desempregados e ociosos – todas essas e outras inquietações estão espelhadas neste excelente romance.

McEwan consegue juntar ficção científica com realidade alternativa, uma história de amor, um crime e uma mentira, e criar uma obra que agarra do princípio ao fim.

O narrador é Charlie, um trintão apaixonado pela vizinha de cima, Miranda e que vive de investimentos e jogos de bolsa, trabalhando em casa. tendo recebido uma herança, por morte da mãe, decide gastá-la comprando um robot super-sofisticado, o Adão, que fora lançado no mercado há pouco tempo.

A história passa-se no tempo em que Margaret Tatcher era primeira-ministra, mas já existem carros autónomos, a robótica está muito avançada, o brilhante matemático Alan Turing, pioneiro da computação, que faleceu em 1954, está ainda vivo, bem como os quatro Beatles, que continuam a editar discos e a Argentina fascista, vende a guerra das Malvinas.

Charlie, Miranda e o robot vão acabar por formar um improvável triângulo amoroso.

Com estas linhas gerais, poderíamos estar perante uma história pateta, mas graças à mestria de McEwan, temos um romance muito interessante, que levanta muitas questões morais sobre o crime, a culpa, a honestidade, a mentira, o amor.

Cinco estrelas.

“Numa Casca de Noz”, de Ian McEwan (2016)

No ano em que celebra o 400º aniversário da morte de Shakespeare, Ian McEwan decidiu homenagear o bardo escrevendo uma pequena variação a Hamlet.

numa-casca-de-nozTrudy está grávida, fim de tempo, e planeia envenenar o marido e pai da criança, de conluio com Claude, irmão do marido.

A originalidade do Nutshell (Gradiva, tradução de Ana Falcão Bastos), é que toda a história é narrada pelo feto que, à medida que vai contando as peripécias da trama, vai fazendo comentários ao incómodo que lhe provoca as relações sexuais, sobretudo quando a sua mãe é penetrada por Claude, que é um bocado bruto e algo estúpido, contrastando com seu pai, editor, livreiro e poeta; o feto descreve-nos também as sensações que tem quando a sua mãe bebe uns copos a mais, ou quando ela está ansiosa, ou sonolenta ou excitada.

Prestes a nascer, o feto divaga, por exemplo, sobre o facto de nascer no Reino Unido:

“Vou herdar uma situação de modernidade (higiene, férias, anestésicos, candeeiros de leitura, laranjas no Inverno) e habitar um canto privilegiado do planeta – a Europa Ocidental bem alimentada e livre de pestes. A velha Europa, esclerótica, relativamente generosa, atormentada pelos seus fantasmas, vulnerável aos opressores, insegura, destino de eleição de milhões de infelizes. A minha vizinhança imediata não vai ser a próspera Noruega – a minha primeira opção devido ao seu gigantesco fundo soberano e às suas generosas prestações sociais; nem a segunda, a Itália, devido à cozinha regional e ao declínio abençoado pelo sol; nem sequer a terceira, a França, pelo seu pinot noir e auto-estima confiante. Em vez disso, vou herdar um reino não tão unido quanto isso, governado por uma estimada rainha idosa, onde um príncipe-empresário, famoso pelas suas boas obras, pelos elixires que usa (essência de couve-flor para purificar o sangue) e pela sua ingerência inconstitucional, aguarda com impaciência a coroa. Será essa a minha pátria, e terá de servir. Podia ter visto a luz do dia na Coreia do Norte, onde a sucessão é igualmente incontestada, mas onde há escassez de liberdade e de alimentos”.

São tiradas destas, da autoria de um feto em fim de tempo, que tornam o livro diferente, já que a história em si, não tem nada de especial.

Curioso.

Outras obras deste autor: A Balada de Adam HenryMel, Na Praia de Chesil, Cães Pretos, Entre Lençóis, Jardim de Cimento, Solar.

“A Balada de Adam Henry”, de Ian McEwan (2014)

Começo pelo título em português: claro que não é fácil traduzir o título original (The Children Act), mas talvez com um pouco de esforço se tivesse encontrado uma solução mais elegante do que A Balada de Adam Henry.

Faz-me lembrar a velha tradução da série televisiva Hill Street Blues por A Balada de Hill Street.

The Children Act tem, em inglês, o duplo sentido de poder significar um acto de uma criança e a lei que protege os direitos das crianças.

Balada é que não!

A única coisa mais parecida com balada será o poema que Adam Henry envia para a juíza e o facto de a juíza tocar piano…

ian mcewanIan McEwan (nascido em 1948) é um dos escritores da actualidade que mais aprecio.

Devido às suas primeiras obras, ficou conhecido como Ian Macabro e é certo que todos os seus livros têm um lado negro bem vincado.

Neste The Children Act é-nos contada a história de Fiona Maye, uma juíza de 60 anos, do Supremo Tribunal, que julga casos de família e menores.

baladaO casamento de Fiona está num impasse. Demasiado absorvida pela sua profissão, a juíza começa a perder o marido, que se apaixona por uma jovem.

História habitual.

É com este pano de fundo que é chamada a julgar o caso de um jovem de 17 anos, testemunha de Jeová, a morrer de leucemia e que recusa uma transfusão de sangue que o pode salvar.

Fiona decide visitar o jovem, o tal Adam Henry, internado no hospital e entre eles nasce uma empatia que terá desenvolvimentos inesperados.

Para enriquecer a história, conhecemos alguns casos que Fiona tem que julgar. Um deles fez-me lembrar a minha realidade como Médico de Família, a trabalhar numa região de bairros sociais:

«Quatro anos antes, com dezoito anos, depois de uma rapariga o acusar por má-fé de violação, passou algumas semanas detido numa prisão para jovens infractores e puseram-no com pulseira electrónica e termo de identidade e residência durante seis meses. Havia bons indícios de mensagens por telemóvel a apontar para o facto de o sexo ter sido consensual, mas a polícia recusou investigar, pois tinham objectivos a atingir em casos de violação. Gallagher era precisamente o tipo de homem de que precisavam. No primeiro dia do julgamento, provas comprometedoras apresentadas pela melhor amiga da acusadora demoliram a acusação. A suposta vítima tinha esperança de receber dinheiro da Autoridade de Protecção por Danos de Origem Criminosa para comprar uma nova Xbox.»

Mais um bom romance de McEwan.

Outras obras deste autor: Mel, Na Praia de Chesil, Cães Pretos, Entre Lençóis, Jardim de Cimento, Solar.

“Mel”, de Ian McEwan (2012)

O novo e excelente romance de Ian McEwan prega-nos três partidas.

A primeira consiste no facto da história ser narrada por uma mulher, a funcionária do MI5, Serena Frome e, às tantas, esquecemo-nos que o livro foi escrito por um homem.

A segunda reside no facto de McEwan aproveitar a personagem do escritor Tom Haley para nos contar meia dúzia de histórias da autoria de Haley e que dariam um bom livro de contos mas, como Haley diz, os livros de contos não se vendem… Assim, diluem-se as histórias num romance e não se perde tudo…

A terceira partida é o final do romance, que é surpreendente.

A história passa-se em Inglaterra, nos anos 70 do século passado. Serena Frome é uma jovem funcionária menor do MI5 que é escolhida para um projecto que consiste em subsidiar, através de uma Fundação fantasma, escritores promissores que, assim, veladamente, pugnariam pelos ideais anticomunistas, através dos seus romances.

Esse projecto tem o nome de código “Sweet Tooth” (não sei porque a Gradiva escolheu “Mel”, como título porque, parece-me que “sweet tooth” quer dizer qualquer coisa como “apetência por doces”).

Serena fica encarregue de convencer Haley a aceitar uma subvenção da tal Fundação, fazendo-se passar por uma angariadora de talentos literários. Ele aceita e em breve se apaixonam.

Se querem saber o resto, leiam porque vale mesmo a pena.

“Solar”, de Ian MacEwan

Um livro vale, também, pelo seu leitor. Quero com isto dizer que o “estado de alma” do leitor pode influenciar o valor do livro. Um tipo que esteja com uma grande depressão vai ficar ainda pior ao ler, por exemplo, “As Benevolentes” e vai dizer que o livro é uma tristeza, do princípio ao fim, sendo incapaz de encaixar alguns capítulos sem uma náusea profunda.

Serve isto para dizer que, apesar de Ian McEwan ser um dos meus escritores favoritos, este “Solar” nunca conseguiu entusiasmar-me e li-o aos repelões, sem nunca conseguir fixar a minha atenção.

Culpa minha, que estava com a cabeça noutro lado ou culpa do romance, que não consegue “agarrar” o leitor?

“Solar” conta-nos a história do físico Michael Beard, galardoado com o prémio Nobel, que é um sujeito fisicamente insignificante, o que não o impede de ser um mulherengo compulsivo.

Além disso, Beard não é muito honesto no seu trabalho científico, usando-se do esforço e do trabalho de outros, para se auto-promover. No entanto, no final, não será recompensado.

Não me entusiasmou, repito.