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O Coiso
O melhor do meu Pão Comanteiga

LÍQUIDOS

Programa emitido a 20 de Setembro de 1981

Abertura
De barbatanas e coletes de salvação, rodeados de garrafas de todas as marcas, contendo os mais variados líquidos, aqui estamos das 10 às 13, ou das 13 às 10 para quem se liquefaz em sentido contrário, para mais um Pão Comanteiga, hoje dedicado aos líquidos.
Artur Vinho do Porto e Santos, Bernardo Brandy Cunha, Eduarda Garrafeira, Jerupiga Furtado, José Duartini on the rocks, José Fanha – o Ginjas, Conhaque Zanbujal e Carlos Cruz com água lisa.
Hoje, o Pão Comanteiga não é para ouvir – é para beber. Beba as nossas palavras, encharque-se nas coisas que hoje lhe vamos dizer sobre líquidos. Líquidos de toda a espécie, desde a água pura a 4 graus Célsius à tintura de iodo, não esquecendo o vinho, a aguardente, a terebentina, a gasolina, o chi-chi, os li-cores e apreto e branco, o per-fume mas pouco porque faz mal à saúde, o petróleo, a água benta, a tinta permanente, a tinta de vez em quando, a tinta simpática e a antipática, o leite, o café, o chá, a cerveja, o suor, os sumos, a saliva, os diluentes, os afluentes, o gin e outros líquidos assim.
Liquefizemos este Pão Comanteiga com tinta esferográfica, à custa do suor do nosso rosto, pelo que é natural que alguns textos estejam um tanto ou quanto manchados com um ou outro pingo de suor. Mas a gente é assim: sacrificamo-nos pelos nossos ouvintes. Por isso, esteja atento até às 13, de preferência dentro de água, embora com a cabeça de fora. Porque hoje vamos falar de líquidos. E, para já, aqui estão os títulos de algumas obras que consultámos ao longo da semana, para elaborar este programa:
- Frei Líquido de Sousa - Manhã Submersa em Água - Viagens na Minha Terra de Barco - Morte de um Caixeiro Viajante Afogado - A Molhadinha dos Canaviais - Mergulho e Preconceito - A Oeste Quem Nada Não se Afoga de Novo

Você sabe o que é um líquido?
No dia a dia lidamos com numerosos líquidos essenciais à nossa vida e até à nossa morte. Vejam bem que o corpo humano é constituído por cerca de 70% de água. No entanto, é muito provável que você, amigo ouvinte, você aí, de barba por fazer, que se prepara para beber o primeiro café do dia, é mesmo muito possível que você não saiba o que é um líquido.
Mas não desespereis – ó gentes! – que nós vamos dizer-lhes o que é um líquido.
O líquido é um dos estados em que a matéria se pode encontrar. Os outros são: o sólido, o gasoso, o coloidal, o de sítio e o de emergência. As secretarias e sub-secretarias de Estado são os organismos que superintendem os vários estados da matéria, bem como a matéria dos Estados que, por vezes, é altamente secreta. Fundamentalmente, o estado líquido distingue-se dos outros porque molha. E cá vai a habitual experiênciazinha para o ouvinte perspicaz que está constantemente a por em causa as preciosas informações que aqui prestamos semanalmente. Pois a experiência é muito simples: primeiro deixe cair um banco de cozinha sobre o pé direito. Aleijou-se não é verdade? É natural... o banco encontra-se no estado sólido. Agora, despeje sobre o pé esquerdo (o direito ainda deve estar dorido...) a água de um balde. Molhou-se, mas não se aleijou. Está provado, portanto, que os líquidos molham.
No entanto, muitas outras propriedades distinguem os líquidos dos outros estados. Os líquidos escoam, gotejam, pingam, embebedam, lavam, afogam, desinfectam, encharcam, submergem e por aí fora.
Quanto à classificação, podemos separar os líquidos pela cor: temos então os incolores, como o café, os brancos, como a laranjada, os vermelhos, como o whisky, os verdes, como o petróleo, etc. Quanto ao tamanho, há os líquidos muito grandes, chamados oceanos, os apenas grandes, como o rio Nilo, os médios, como a Lagoa de Óbidos, os pequenos, como a poça de água, e os muito pequenos, como a pinga.
Um líquido pode causar alívio ao entrar ou a sair do nosso organismo. Assim, é cá um alívio beber uma cervejinha quando a garganta está seca; mas também é cá um alívio quando, no fim da sexta cerveja, fazemos chi-chi!
O mundo dos líquidos é tão variado, as suas utilizações e acções sobre o organismo humano são tantas, que precisaríamos de várias horas para as citar convenientemente. Mesmo assim, façamos um esforço. Citemos o clorofórmio, bebida espirituosa cujos vapores provocam a hilariedade geral; a cerveja que, com ou sem açúcar, sabe sempre bem após uma refeição; a lixívia, muito utilizada na preparação de xaropes para a tosse; a cicuta, célebre na História pelo seu poder afrodisíaco; o vinho, esse precioso líquido de onde se extrai a gasolina e cujas reservas, pelos vistos, se estão a esgotar; a urina, veneno que matou Aristóteles, se não estou em erro; a limonada, prepara à base essência de terebentina, óptima para os bicos de papagaio; a água, esse grande digestivo; o bagaço, bebida branca que nos torna razoavelmente vermelhos; o petróleo, essencial na alimentação das criancinhas; o leite, tempero muito apreciado nos cozidos e grelhados; o capilé, esse perigoso veneno que, apesar de todo o mal que já causou à humanidade, continua a ser vendido livremente, sem que as autoridades actuem; o chá, óptimo lubrificante para os motores a explosão, etc.
De todos estes líquidos, eu prefiro os que se bebem. E dos que se bebem, prefiro, sem dúvida, os que se bebem em copos. “Beber para crer!”, como dizia S. Martinho.

Coktails Pão Comanteiga
Banana sputz
Trata-se de um cocktail especialmente pensado para abstémios. Fácil de preparar.
Junte uma parte de gin, duas partes de casa e quatro partes-sem-sequer-dizer-adeus. Adicione a casca de duas bananas e duas gotas de lixívia. Coloque tudo no shaker e shake.
Não beba.

Explosão Primaveril
Este é um cocktail dedicado às agradáveis tardes primaveris, quando o sol começa a por-se e os passarinhos chilreiam.
Prepara-se como segue:
Dois decilitros de bagaço rasca, duas colheres de açúcar amarelo, meio litro de terebentina, quatro cabeças de fósforo raspadas, três gotas de nitroglicerina e pólvora q.b.
Agite com bastante força e atire tudo para longe.

Narciso com limão
Para este cocktail, especialmente destinado aos indivíduos que gostam muito de si próprios, terá que possuir uma razoável variedade de bebidas. Assim: deite uma parte de gin num copo, uma parte de whisky noutro copo, uma parte de vodka noutro copo, uma parte de bagaço noutro copo ainda, uma parte de vinho do Porto, uma parte de verde maduro, uma parte de aniz e uma parte de licor de ginja – tudo em copos separados. Beba agora o conteúdo de todos os copos, sucessivamente. No final, chupe uma rodelinha de limão. Agite-se, dando pulinhos – os líquidos misturar-se-ão no seu estômago. Veja-se ao espelho, seu narciso!

Os líquidos nossos amigos
Ao longo do Pão Comanteiga de hoje, vamos falar-vos dos líquidos nossos amigos, daqueles que connosco convivem, todos eles líquidos indispensáveis á conservação da espécie. Esteja atento. Beba com atenção...

1. A Água
A água é um dos líquidos mais úteis ao homem e sem ela a nossa economia depressa chegaria à ruína. Aliás, já anda lá perto... felizmente, e apesar da seca que assolou o país real (porque o outro, o país imaginário, já é uma seca desde o tempo do Eça de Queirós, pelo menos...), apesar da seca, dizíamos, a água encontra-se facilmente. Basta procurá-la, por exemplo, nos rios, mares, oceanos, lagos, lagoas, albufeiras, riachos, ribeiras, poços, charcos, pântanos, sarjetas, fontes, nuven e, por vezes, também nos canos, não é pal? Sem água, seria o desemprego, as indústrias arruinar-se-iam. Note-se, por exemplo, que sem água não haveria submarinos, banheiras, bidés, lavatórios, torneiras, paquetes, navios, bisnagas, garrafas, bóias, nadadores salvadores, fatos de banho, âncoras, pescadores, minhocas, linguados, safios e outros peixes, algas, alforrecas, corais, ilhas, quedas de água, cascatas, cataratas, arquipélagos, porta-aviões, borrifadores, chuveiros, canos, desentupidores, canalizadores, estações elevatórias, o homem da Atlântida, piscinas, pranchas de saltos, barbatanas, termas, mangueiras, bombeiros, o deserto deixava de fazer sentido, ninguém tinha sede, não teria piada nenhuma atravessar o canal da Mancha a pé ou ir a Cacilhas de mota, não haveria chuva, nem chapéus de chuva, nem aguaceiros, nem gabardinas, nem galochas, cargas de água, trombas de água, mesmo o desporto perderia várias modalidades,, a natação, o polo aquático, a pesca submarina, não haveria naufrágios, maremotos, inundações. Enfim, vendo bem, talvez até fosse bom que não houvesse água!... Mas há água. Pior ainda: existem inúmeras variedades de água. E nem sempre no estado líquido. Com efeito, encontramos água no estado sólido, sob a forma de gelo ou de água mineral. No estado líquido, citemos a água ardente, que é “um fogo que arde se beber”, como já dizia Camões; a água-pé, que me dispenso de comentar porque não gosto de conversas baixas; a água-rasca, espécie de água de má qualidade, utilizada para tirar manchas de tinta; a água-mole, utilizada para furar pedras duras – processo que requer muita persistência; a água destilada, que se obtém correndo três mil metros com um copo de água na mão – a meio do percurso o copo começa a suar e a água destila; a água potável, armazenada em potes; a água lisa para lavar a Mona; a água salgada com a qual se preparam as lágrimas dos portugueses; a água doce, para bolos e outras guloseimas; e muitas outras. Antigamente, também se fabricava a chamada água de colónia, mas com os novos métodos de exploração dos países do 3º Mundo, a sua denominação mais correcta será água de ne-colónia. Ah! E a auga benta, que é a auga da chuba quando batida pelo bento. Terminemos com uma breve referência á água canalizada que, em alguns casos, também serve para beber – não é pal?

2. O Vinho
O vinho é outro dos líquidos mais amiguinhos do homem. A sua utilidade é quase tão variada como a da água e, sob alguns aspectos, consegue até ser mais útil. Recordemos que é graças a ele que se consegue apanhar as bebedeiras, pielas, tosgas, borracheiras e pielas, para além das cirroses, que são óptimas para as estatísticas de mortalidade de qualquer país vinícola.
Tanto quanto se sabe – e sabe-se pouco... – o vinho é obtido do esmagamento impiedoso das uvas, realizados pelos pés de homens e mulheres, ou ainda, segundo consta, graças a umas quantas marteladas – é o chamado vinho a martelo. Existem muitas espécies de vinho. O vinho tinto ou tintol, que faz a cabeça dura e o corpo mole; o vinho branco, óptimo para refogar os desgostos; o vinho verde, que pode ser maduro, mantendo-se verde; o vinho palhinha, que deve beber-se com palheta; o vinho do Porto, fabricado com as melhores uvas britânicas; o vinho da madeira, produzido a partir de serraduras seleccionadas; o vinho abafado, que se deve beber perto de uma ventoinha; o vinho da missa, que é o néctar dos deuses.
O vinho encontra-se armazenado em garrafas, garrafões, toneis, pipas, barris e estômagos, conforme as circunstâncias e a capacidade de cada um. Há até para aí quem diga que consegue ver uma luz no fundo do tonel. Convenhamos que é preciso beber muito vinho para dizer uma coisa dessas!...

3. O Azeite
Este maravilhoso líquido obtém-se pela trituração das azeitonas. Na Antiguidade Clássica foi muito utilizado para temperar o bacalhau cozido com batatas. Hoje em dia é mais usado para olear portas que rangem ou porcas que não enroscam nos respectivos parafusos. Como diz o povo, a verdade e o azeite vêm sempre ao de cima. Por isso mesmo, todos os barcos têm os seus cascos oleados com azeite, para não irem ao fundo.
O azeite pode ser graduado em major ou general, ou ser ordinário. Virgem é que ele é bom – diz-se. Opiniões...

4. O Leite
Falemos agora do leitinho, esse precioso líquido responsável pela manutenção da classe dos mamíferos.. Todos os mamíferos, do morcego ao hipopótamo, do ornitorrinco ao homem, mamam durante os primeiros tempos da sua vida. Também você, ouvinte descrente, mamou quando era pequenino. Há até quem continue a mamar pela vida fora...
Tal como no caso da água, a nossa sociedade seria completamente diferente se não existisses leite. Reparem que, sem leite, não haveria biberões, galões, garotos, meias de leite, pãezinhos de leite, queijo, manteiga, margarina, sopas de leite, iogurtes, soutiens, natas, dentes de leite, leiteiras, leit-motivs, seios, mamilos, leitarias, leitões, chocolates de leite, leite creme, etc.
Mas quando se fala em leite, pensamos logo em bebés e a associação é compreensível. Quando os bebés têm fome, dá-se-lhes leitinho e eles calam-se; a pele dos bebés é láctea como a via e quando os seus rabinhos estão assados, põe-se-lhes leite em pó de talco. Quando os rabinhos estão fritos, é que já não sabemos o que se faz...
Fique sabendo que um leitor é um indivíduo que comercializa leite. Não sabia, pois não? Mas nunca é tarde para aprender. Como diz aquele ditado luso-britânico: “mais vale late que never...”

5. O Petróleo
O petróleo é o líquido mais amigo dos árabes. Connosco não se dá lá muito bem... Encontra-se petróleo no subsolo, mas é preciso fazer sondagens, isto é, pergunta-se a vários solos se têm ou não petróleo por baixo e estabelece-se, depois, tendências estatísticas. Abre-se um furo e sai petróleo ou ouro negro – assim designado para se distinguir do outro ouro que, por ser sólido e amarelo, é muito susceptível de se confundir com o petróleo, que é líquido e preto.
Eis alguns produtos derivados do petróleo: a terebentina, a gasolina, a serpentina, a margarina (a oleosa, claro), os emiratos árabes, o gasóleo, o fuel-óleo, o linóleo, os detergentes, a OPEP, os diluentes, os delinquentes e os petrodólares.
O petróleo é também utilizado como substituto da electricidade. Quando falta a luz, basta encher a lâmpada com petróleo, chegar-lhe um fósforo e é cá uma luminosidade!...

Frases
* O provador de vinhos é o único profissional autorizado oficialmente a beber nas horas de serviço.

* Uma bebida espirituosa é a que faz cócegas na garganta.

* O vinho está sempre em estado líquido excepto quando é cá uma pomada!

* E agora um pouco de humor negro: quando há uma grande inundação, é uma liquidação geral.

* “Então isto lique-faz.-se?” – disse o cubo de gelo ao raio solar.

* Uma bibica é uma bica dupla.

* Mas afinal: mercúrio ou cromo?

* Uma reunião social em que apenas se bebe chá, é uma chá-tice.

* A aguardente desta cana não presta. Prefiro a dessa cana...

* Matematicamente, um copo de três não se pode beber a meias.

* A tinta da China é um negócio permanente. Ou a tinta permanente é um negócio da China.

 


 

 

Actualizado em: 18 de Janeiro 2003
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