Domingo
Programa emitido em: 21/6/1981
Abertura
No princípio, a semana possuía apenas seis dias - o que era um
inconveniente inegável. Por isso, às 24 horas de sábado,
Deus decidiu criar o domingo. Adão e Eva ficaram satisfeitíssimos
porque tinham o dia livre para crescerem e se multiplicarem, entregando-se ao
Pecado Original, sob os olhares reprovadores dos querubins. Esse foi o primeiro
domingo que ficou na história da Humanidade. E, apesar de tudo, Deus pensou
que o domingo fora uma boa invenção.
Com efeito, sem domingo, não haveria a missa de domingo. Sem domingo não
existiriam os passeios de domingo. Sem domingo não haveria o Pão
Comanteiga. Sem domingo, Fernando namora nunca teria escrito "Domingo à
tarde". Sem domingo, a semana inglesa teria que começar na 6ª
feira, depois do almoço. Sem domingo, os calendários teriam muito
menos números encarnados. Sem domingo, a Páscoa era praí
a um sábado.
Percebendo tudo isso, Deus achou que o domingo fora uma boa invenção
e sentiu-se até tentado a criar outros domingos, ao longo da semana, eliminando
dias bem mais aborrecidos. Teríamos, então, o domingo, a 2ª
feira, o 2º domingo, a 4ª feira, o 3º domingo, a 6ª feira
e o sábado. Mas isso seria muito confuso e convidaria os homens à
boa vida. Por isso, Deus deixou ficar a semana como ainda está hoje e,
para mostrar que nem tudo corre bem aos domingos, escolheu esse dia para o Dilúvio.
Talvez digam as Escrituras que Sodoma e Gomorra foram destruídas a um domingo,
que as sete pragas do Egipto calharam sempre a um domingo, que Cristóvão
Colombo descobriu a América a um domingo, que Benjamin Franklin inventou
o pára-raios a um domingo, que François Mitterand foi eleito presidente,
também, a um domingo.
É por essas e por outras que o Pão Comanteiga é a um domingo...
Estorinhas
Primeira
Era domingo.
Meteram-se no carro, não esquecendo os garrafões, o farnel e o transístor.
Arrancaram, rumo à praia do costume e colocaram-se, diligentemente, na
bicha.
Duas horas depois, os putos encheram o porta-bagagens com a água dos garrafões
e tomaram uma banhoca. Depois, estenderam as toalhas sobre o capot e deixaram-se
tostar ao sol.
Por volta das duas da tarde, comeram o farnel, rematando com um cafezinho preparado
com a água do radiador do carro. Depois, foi a vez da sesta, enquanto as
crianças brincavam às escondidas, por entre o emaranhado de carros.
Pelas oito na noite, regressaram a casa, em marcha atrás.
Deliciosos, estes domingos de praia!...
Segunda
Era domingo.
Durante toda a manhã, hesitou entre a casa de campo ou o apartamento à
beira-mar. Acabou por se decidir pela casa de campo. A polícia aguardava-o.
Passou o resto do domingo à sombra...
Terceira
Era domingo.
Um domingo quente de Verão. Domingos levantou-se tarde, como de costume,
abriu a janela e espraiou a vista pelo horizonte. O olho direito fixou-se no infinito
e o esquerdo no parque de estacionamento, em frente. Era estrábico.
E porque era domingo, Domingos decidiu variar. Vestiu uma camisa lisa, umas calças
de alças e calçou uns sapatos vulgares, desses sem sola. Saiu para
a rua e sentiu o bafo quente penetrar-lhe as narinas. Tentou respirar profundamente,
mas era impossível - o calor sufocava-o. Desapertou os botões da
camisa lisa, até que o umbigo ficou exposto, colocou a fivelas das alças
das calças dois furos abaixo, para libertar os ombros, e sentiu-se mais
aliviado.
Avançou pela rua deserta e encontrou a Berta, em trajes menores, que se
dirigia para a praia. Domingos foi com a Berta para a bicha da camioneta e ali
permaneceram, envergonhados, lado a lado, arrastando os sapatos, esperando vez.
Era domingo, como tivemos ocasião de referir, e a bicha interminável,
dava várias voltas à praça. Mas Domingos e Berta, alheios
ao calor, aguardavam calmamente.
Finalmente, chegou a sua vez. Berta foi à frente, Domingos era um cavalheiro
- as senhoras primeiro. Entrou uma e depois outra, duas crianças de colo,
três adolescentes, cinco velhinhas, quatro baldes de praia, uma toalha,
dois colchões insuflados, dois chapéus de sol, um homem com bicos
de papagaio, uma senhora divorciada, dois regadores, um empregado da Rodoviária,
mais quatro adolescentes adultas, dois sujeitos carecas, uma velhota amorosa,
mais quatro colchões de praia, mas vazios, e Berta, ansiosa, olhava para
Domingos, do interior da camioneta, agarrada ao varão, com o passe multimodal
na mão, aguardando, em vão, que ele se decidisse.
Mas Domingos, sempre bem educado, ia cedendo a sua vez a uma galinha pedrez, três
guerreiros teutónicos, dois polícias sinaleiros, três velhinhos
daltónicos, seis velhinhos gaiteiros, uma toalha de praia e uma senhora
de saia.
A camioneta estava completa. A porta fechou-se. Automática. Berta, de boca
aberta, gritou:
- Domingos! Domingos!
- Domingos, há muitos, minha senhora! Todas as semanas!
E a camioneta partiu, levando Berta, boquiaberta, em direcção à
praia. Na paragem, desesperado, Domingos jurava a si próprio mudar de nome.
Ou, pelo menos, de táctica...
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