PÃO COMANTEIGA NO CONTRA-ATAQUE –
18
Programa emitido em 5 de Junho 1982
Folhetim
Acedendo aos pedidos de numerosos admiradores, o Pão
Comanteiga sentiu-se na obrigação de transmitir
hoje, e apenas hoje, o famoso folhetim em 8 episódio,
“O Amor é Rouco”.
Trata-se de uma pungente história de um homem que
ama uma mulher mas que não é correspondido.
No entanto, no derradeiro momento, ela entrega-se-lhe sem
preconceitos.
Porque as telenovelas já deram o que tinham a dar,
porque o peso é a moeda corrente no México,
porque o céu é azul e porque nos apetece,
vamos apresentar o sensacional folhetim “O Amor é
Rouco”.
1º Episódio
A – O cenário é simples: ao fundo, uma
cadeira partida; no centro da sala, uma cadeira inteira.
António Maria fuma cachimbo pelos ouvidos e é
o priemrio a falar; a seguir fala Júlio Cunha. Depois,
fala cada um por sua vez, alternadamente, até ao
fim deste episódio.
B – Estou apaixonado mas não sou correspondido!
O meu coração bate com mais força quando
ela está presente, bate mais devagarinho quando ela
está ausente, bate assim-assim quando ela está
longe mas vem a caminho, acelera o ritmo à medida
que ela se aproxima da minha casa, entra em delírio
ritmado quando ela passa por aquela porta... mas ela não
me liga! Porque hei-de ser tão infeliz se a minha
cútis é tão lisa e sedosa, os meus
cabelos endiabrados rodopiam quais ondas do mar, o meu tronco
é bem constituído e tem pelos em profusão
admirável?... Porque será que ela não
me ama?
A – Barulho de passos.
B – Oiço barulho de passos...
A – É natural... era eu que os fazia na quieta
melancolia dos pinheiros do caminho... Vejo pelo teu ar
que estás desesperado!...
B – É verdade.... tenho joanetes e sofro terrivelmente!...
A – A propósito de joanetes: estás só?
B – Não, estou contigo...
2º Episódio
A – O cenário muda tão rapidamente que
o autor não tem tempo para ver o que se modificou.
No entanto, vê-se Pedro da Rosa com a tia Luisa que,
vergada sob o peso dos anos, faz crochet de gatas. Pedro
da Rosa é o primeiro a falar.
B – Ando preocupado com o António Maria...
você não anda preocupada, tia Luisa?
A – Eu bem queria andar, mas o reumático não
me deixa!...
3º Episódio
A – Desta vez, Pedro da Rosa encontra-se com Júlio
Cunha. Não sabemos quem fala primeiro; mas o segundo
é o outro, de certeza.
B – Mas por que raio a vida há-de ter tantos
altos e baixos?! Por que não há-de ser tudo
simples e liso como a minha barriga?
A – A sua barriga é lisa?
B – Claro que é! Ora veja...
A – Mas tem aí um buraquinho...
B – Buraquinho?!... Onde é que está
o buraquinho?!
A – Aí... então não vê?!...
Ou será que, ainda tão velho, já precisa
de óculos...
B – Ah! Refere-se ao umbigo...
A – Sei lá se isso é o umbigo!... sou
muito fraco em anatomia...
B – Está bem! Concordo consigo... mas, tirando
o umbigo, que por sinal é um defeito congénito
a que sou alheio, a minha barriga é completamente
lisa – poderia jogar-se xadrez sobre ela...
A – É pequena demais para isso...
B – Olha, olha! Há tabuleiros mais pequenos...
A – Tem razão.... mas têm quadradinhos
pretos e brancos e a sua barriga é toda da mesma
cor...
B – Pronto! Acabou-se a discussão e bebe-se
um copo!
A – Não posso.
B – Como não pode? Não tem nada que
se beba?
A – Ter, tenho – não tenho é boca...
B – Se não tem boca como consegue falar?
A – pelos cotovelos...
4º Episódio
A – Encontramo-nos na mesma sala do 1º episódio.
António Maria passeia de um lado para o outro. Vê-se
que está nervoso porque deixa cair o cachimbo do
ouvido com muita frequência. Ao fundo da sala, a tia
Luisa faz crochet de gatas. De vez em quando tosse. António
Maria é o primeiro a falar. A tia Luisa é
a única que tem tosse.
B – Como sou desgraçado! Os rios correm para
o mar, as folhas desprendem-se das árvores no Outono,
alguns isqueiros acendem sempre à primeira, o tabaco
faz mal à saúde, o arco-íris cruza
os céus depois de uma carga de água, as abelhinhas
polinizam as flores fazendo zum-zum e dando às asinhas,
mas nada disso tem significado para mim porque ela não
me ama!
A – Cof! Cof!
B – Que mal terei eu feito para merecer tal sorte?
Eu que sou tão bom companheiro, amigo do seu amigo,
sempre pronto a ajudar em qualquer situação
mais difícil e até com algum jeito para a
bricolage!
A – Cof! Cof!
B – Não deve existir ninguém no mundo
que sofra tanto como eu! Nem os aborígenes da Austrália!...
esses, ao menos, têm o booomerang e sempre se entretêm
a partir as próprias caras – além de
que têm uma companheira que os aconchega nas noites
pálidas de Inverno e lhes dá coisas boas,
como beijinhos, raízes, queijo flamengo, setas envenenadas
e pernas de canguru!
A – Cof! Cof!
B – Que hei-de eu fazer?
A – Olha, filho, vai à rua e compra-me 250
gramas de rebuçados peitorais, por favor.
5º Episódio
A – Pedro da Rosa está sentado num cadeirão
de braços e pernas. Traz uma camisa amarela vestida
mas não se sabe porquê. Júlio Cunha
bebe leite por um sapato e fala em segundo lugar.
B – Continuo preocupado com o António Maria.
A – Tem razão, amigo Pedro da Rosa.... aquela
rapariga dá-lhe volta à cabeça!...
B – É verdade... ainda ontem o vi a assoar
a nuca e a pentear o nariz...
6º Episódio
A – António Maria continua com a tia Luisa,
mas está muito mais nervoso do que no 4º episódio
porque fuma dois cachimbos, um em cada ouvido. A primeira
a falar é a tia Luisa. Está melhor da tosse.
B – Mas afinal, quem é a causadora desse mal
de amor?
A – Desculpe, tia, mas temos as vozes trocadas...
eu é que devia fazer de tia e a tia é que
devia fazer de eu...
Pausa
A – mas afinal, quem é a causadora desse mal
de amor?
B – Chama-se Maria Antónia e é linda...
linda como o orvalho que, de manhã, se depositou
nas plantas fanerogâmicas, linda como uma trepadeira
que cobre quase totalmente um muro de jardim, linda como
as ruínas do Convento do Carmo ou a cota de malha
de Afonso Henriques, bela como a lua, saturno ou mesmo plutão,
linda como uma rosa desabrochando centro de uma lata de
tinta de esmalte, linda como uma banana sem casca que seja
atirada ao vento por um americano, de óculos escuros,
viajando a bordo de uma fragata neo-zelandesa, linda como
o sol, essa estrela maravilhosa que nos dá o calor,
o leite, o queijo e derivados!...
A – Mas se a amas tanto, porque não lho confessas?
B – telefonei-lhe há pouco... pedi-lhe que
viesse até cá hoje...
A – Mas como conseguiste telefonar-lhe se não
temos torradeira?
B – Usei o serrote... o amor tudo pode, derrubar montanhas,
arrasar bibliotecas, esborrachar embalagens de tomate pelado,
desbravar novas terras, comer cardos, engolir prosas e telefonar
através de um serrote se isso for estritamente necessário!
A – E ela disse que vinha?
B – Não disse... acenou com a cabeça...
7º Episódio
A – Júlio Cunha despiu já a camisa amarela,
que por sinal lhe ficava muito mal, e ostenta agora um roupão
debruado a debrum. Faz de conta que fuma um lápis
nº2. pedro da Rosa parece enfadado, bocejando quer
com uma boca quer com a outra. Um deles é o primeiro
a falar.
B – este folhetim é uma chatice!
A – Uma chatice, não – duas chatices!
B – Em que episódio vamos?
A – No sétimo...
B – Já só falta um, felizmente!
8º Episódio
A – Trata-se do último episódio e, como
é habitual nestas coisas, todos estão presentes,
excepto Maria Antónia. António Maria, ainda
nervoso, roi as unhas dos pés; Jùlio Cunha,
descalço, come um rabanete; Pedro da Rosa não
faz nada; e a tia Luisa, sempre com o seu crochet, lê
um livro de pernas para o ar, o que proporciona uma visão
razoável das suas coxas, que são duas. Júlio
Cunha é o primeiro a falar:
B – Mas afinal o que estamos aqui a fazer?
A – Pedro da Rosa avança dois passos, aproveita
para ver melhor as coxas da tia Luisa, confere que são
duas e responde:
B – Parece que, finalmente, vamos conhecer a jovem
amada do António Maria...
A – A tia Luisa pousa o livro, esconde as coxas atrás
de uma estante e fala:
B – Até que enfim! Confesso que estava fartinha
de fazer crochet!
A – António Maria já roeu todas as unhas
dos pés e verifica, estupefacto, que tem doze dedos.
Diz:
B – A mulher dos meus sonhos, a única capaz
de me levar a Nouatchock, aquela que me esfregará
as costas com palha de aço, me penteará o
cabelo nas longas noites de Verão...
A – Nesse momento Maria Antónia faz a sua entrada
triunfal. Todos põem os olhos nela.... Ela avança
para António Maria e diz:
B – Ó meu amor!
A – Acaba assim?
B – Fraquito...
|