Cama
Programa emitido em 9 de Janeiro 1983
Abertura
Directamente da cama para todo o país – Pão
Comanteiga, um programa humilde e preguiçoso, transmitido
em OM e FM pela Rádio Comercial, entre as 10 e as
13, aos domingos.
Hoje decidimos ficar na cama, deitadinhos, sossegadinhos,
com os textos na mão e o gira-discos sobre a almofada.
Entre bocejos e espreguiçadelas, tentaremos manter-nos
acordados durante 3 horas, recostados no espaldar da cama.
Um programa sonolento, cheirando a lençóis
de linho e colchões de suma-a-uma; mas apesar disso,
um programa variado, com matizes que vão do ressonar
franco ao pensamento lúbrico, do sonho cor de rosa
ao pesadelo negro.
Mais do que nunca, o Pão Comanteiga de hoje é
para ouvir na cama. Não se levante, não se
mexa, não abra os olhos sequer – deixe-se penetrar
pelo nosso som... assim...
Desespero
Ao chegar a casa, altas horas da noite, deparou com a mulher
estendida na cama, olhos esbugalhados, língua pendente
num canto da boca. Ao lado, o frasco dos calmantes, vazio.
Desesperado, exclamou:
“Querida! Que fizeste tu!”
Com a angústia estampada no rosto, correu ao telefone
e discou o número, atabalhoadamente.
“Está? É o Dr. Varela?... doutor, ajude-me!
A minha mulher tomou os meus calmantes todos! como vou conseguir
dormir esta noite?...”
Só para não incomodar
O chevalier Bellevue Quatrevingt-quatre regressou ao seu
castelo já muito depois da meia noite, após
mais uma dura e sangrenta batalha, que durara mais de três
semanas. Vinha estoirado e a cair de sono, mas não
queria incomodar a sua Lady que, àquela hora, deveria
dormir profundamente. Por isso – e só para
não incomodar – entrou no quarto sem acender
a luz, aproximou-se do leito, pé ante pé,
com alguma dificuldade, devido à escuridão.
E, sem paciência sequer para tirar a armadura, atirou-se
pesadamente para cima da cama, esborrachando o chevalier
Quelquechose Avec, que há cerca de três semanas
mitigava a solidão da Lady de Quatrevingt-quatre.
Frases
* Para um casal, um jogo de cama é constituído
por dois lençóis e duas fronhas, não
é?
* Quando diversas pessoas dormem umas por cima das outras
em diversas camas, estamos em presença de uma camarata.
Quando diversas pessoas dormem umas por cima das outras
na mesma cama, estamos em presença de uma camada
– ou de uma cambada?
* Para estar de coma é quase sempre necessário
estar de cama. O inverso não é verdadeiro,
felizmente.
* Era um sujeito tão azarento que tinha calos nos
pés da cama.
* Tinha as camas todas por fazer e nem uma chave de parafusos
em casa!
* Dormia numa cama articulada – era contorcionista.
* O sofá-cama é um móvel em que as
pessoas se sentam mal porque estão quase deitadas
e se deitam mal porque estão praticamente sentadas.
* Os diabéticos não devem dormir em camas
com dossel.
* Era tão pura e virtuosa que dormia em camas separadas:
da cintura para cima, numa cama, da cintura para baixo,
noutra cama.
* Maria Antonieta dormia numa cama Luis XV
Vulgar
Quando chegou a casa, a mulher estava na cama com o Gonçalves.
Irritado, pegou-lhe pelos colarinhos do pijama e mostrou-lhe
a porta da rua.
“É vulgar...” – comentou o Gonçalves.
E voltou para a cama.
Diálogo
A – Bom dia. Procuro uma cama.
B – Tenho muitas, mas nenhuma como a que o senhor
procura.
A – Como sabe?
B – Porque todas estas camas são minhas; portanto,
é impossível que, entre elas, esteja a que
procura.
A – Mas a cama que procuro não é minha.
B – Está, portanto, a fazer um favor a um amigo...
A – Não... o senhor não me compreendeu...
eu procuro uma cama para comprar... pensei que o senhor
tivesse camas para vender...
B – E tenho... todas as que aqui vê são
para vender...
A – Então não são suas?
B – Exactamente... por isso mesmo é que eu
as vendo...
A – Já percebi... não gosta delas...
B – Pelo contrário – gosto até
bastante delas!
A – Não percebo então por que as vende...
B – Ora essa! Elas são o meu ganha pão!
A –Então diga-me quantas carcaças custa
aquela ali, a de mogno?
B – Desculpe, mas o pagamento terá que ser
feito em dinheiro...
A – Estou a ver... depois, com o dinheiro é
que o senhor vai comprar o pão...
B – E o resto, claro.
A – Ah! Também há resto!
B – É evidente! Como dizia a minha mãe:
“nem só de pão vive o homem”.
A – De acordo. Mas diga-me, por favor, que tipo de
camas tem para vender?
B – Tenho de tudo um pouco.
A – E camas inteiras, não tem?
B – Claro que tenho! Que tipo de cama deseja?
A – Olhe, para lhe ser franco, qualquer uma me serve...
esta, por exemplo, é cómoda?
B – De modo nenhum: essa aí é uma cama.
Cómodas também tenho... estão ali ao
fundo, ao pé dos psichés...
A – Não, não... se é cómoda,
quero dizer, se confere comodidade ao seu utente?
B – Desculpe, mas utentes não tenho. Pensa
que sou algum laranja?
A – De facto, a sua cor é mais a atirar para
o vermelho...
B – Não misture política com camas,
por favor.
A – Não seria a primeira vez... já se
tem feito...
B – Pois aqui, no meu estabelecimento, não...
A – Bom... então embrulhe-me 250 gramas de
nozes.
B – Não quer também alguns amendoins
para o caminho?
A – Condescendo – levo dois.
B – Afinal, não se perdeu tudo...
A – È o que a agricultura tem de bom... aproveita-se
tudo...
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