TALHERES
Programa emitido a 24 de Outubro 1982
Abertura
Pão Comanteiga, nº 2, 2ª série,
3º Direito; dos dois lados – sempre! Das 10 ás
13 ou das 13 às 10, para quem vem em sentido contrário,
sem ofender qualquer opção política.
Pão Comanteiga, nas ondas da Rádio Comercial
e nas ondas do seu cabelo, minha senhora, que nos escuta
enquanto faz a barba. Na onda média e na frequência
modulada, com frequência semanal medianamente regular.
Pão Comanteiga – um programa humilde que se
ouve enquanto de beija, que é a cores, embora não
se veja, que tem dois fãs em Estarreja, que desopila
como a cerveja, que aunto mais se ouve mais se deseja, que
liberta as tensões como quem despeja, que bate com
força mas não aleija, que se serve de bandeja,
cuja música areja e que não deve ser ouvido
na igreja.
Pão Comanteiga – um programa que rima com prima.
Todos nos seus postos: Artur Couto e Santos de pé;
Bernardo Brito e Cunha de mão; José António
Pinheiro de cócoras; José Duarte de costas;
José Fanha de frente; Mário Zambujal de lado
e Carlos Cruz sentado na catapulta de lançamento.
Pão Comanteiga – abre-se e é só
miolo!
Frases
* Na tropa, as facas têm cabo, sargento ou oficial,
conforme a patente.
* Na Madeira devia comer-se com talheres de pau.
* A faca de carne distingue-se da facada na carne pela
sílaba tónica.
* Faqueiro é aquele americano, tipo John Wayne,
que está encarregado de guardas as facas.
* E agora vem a história daquele empregado de mesa
que ficou rico ao inventar a máquina de agarfar.
* Os chineses comem o arroz com dois pauzinhos porque se
comessem com seis pauzinhos, atrapalhavam-se.
* Nem sempre é possível descascar a fruta
com uma faca. As nozes, por exemplo.
* Sabendo que uma colher de chá tem capacidade para
5 mililitros de chá, é impossível obter
15 mililitros de café com três colheres de
chá.
* É já velha a história do homem que,
sempre que bebia café, sentia uma picada na garganta
porque se esquecia de tirar a colher da chávena.
No entanto, mais estranha é a história do
sujeito que, sempre que engolia colheres, sentia a boca
amarga porque se esquecia de tirar o café da chávena.
* Para barrar o pão, basta uma faca. Para berrar
“o pão!” basta falar mais alto.
* Naquele fim de semana desvairado, em vez de dar uma facada
no casamento, como era seu hábito aos fins de semana
– deu uma facada na mulher e acabou de vez com o casamento.
Novos talheres
Pão Comanteiga propõe novos talheres, novos
utensílios que poderão ajudar o homem a introduzir
os alimentos na boca. A faca, o garfo e a colher passaram
de moda e há anos que não sofrem modificações.
Portanto – atenção industriais de cutelaria
– aí vão as ideias do Pão sobre
novos talheres ou sobre melhoramentos a introduzir nos já
existentes:
* a faca com lâmina no cabo para masoquistas;
* a colher sem concha para as pessoas que fazem dieta;
* o garfo com dentes cariados, para dentistas ferrenhos;
* o garfo com radar, cujo receptor é colocado na
boca, para distraídos;
* A colher com duas conchas para ser usada por dois amantes
que, frente a frente, muito juntinhos, comem do mesmo prato;
* o garfo com 25 dentes, especial para comer ervilhas e
grão;
* a faca com relógio digital no cabo, para o homem
de negócios que tem apenas 5 minutos para engolir
o almoço;
* a colher com reservatório contendo gelo, especial
para comer a sopa que está quente. Uma variante será
a colher com o reservatório cheio de água
quente, para aquecer a sopa fria, à medida que se
come.
* o garfo com um motor movido a pilhas, que lhe imprime
um movimento de rotação, ideal para comer
esparguete.
* os pauzinhos com aspirador incorporado, para comer arroz
num restaurante chinês sem dar barraca.
(também publicada na Revista Pão Comanteiga
nº17,fevereiro 1983)
Redacção: a faca
A faca dá-nos o leite, o queijo e a manteiga. Eu
gosto muito das facas. Na quinta do meu afô há
3 facas que estão no curral e quando lá fou
passar as vérias, gosto muito de mugir as facas.
Depois, lefo o leite à minha afó Firgínia,
que o aquece no vogão. É preciso ter cuidado
quando se aquece o leite porque se ele verfe, deita por
vora. A faca, quando está zangada, marra com duas
coisas que tem em cima da cabeça e que são
os cornos e que o meu pai também parece que tem e
às fezes até lhe doem à brafa que ele
tem que tomar um comprimido. Quando as facas são
muitas chamam-se manada e quando são poucas chamam-se
poucas facas. Quando vor crescido não quero ser faca,
porque senão tinha que vicar vechado no curral e
não podia brincar às escondidas e à
apanhada.
(também publicada na Revista Pão Comanteiga
nº17,fevereiro 1983)
O jantar
Era um jantar de cerimónia.
Os pais e os convidados deglutiam o arroz de ervilhas com
elegância e o Paulinho – única criança
presente – entediava-se no topo da mesa. Ninguém
lhe ligava, absorvidos que estavam pelas suas palavras sérias
e ajuizadas de adultos.
Farto, o Paulinho decidiu divertir-se. Fingiu que a colher
era uma catapulta e desatou a enviar ervilhas para o decote
da Dona Ivone, para a gravata do Sr. Ferreira, para a testa
do tio Afonso. A princípio, ninguém notou.
O tema da conversa era deveras interessante e o Paulinho
pôde divertir-se em paz durante alguns momentos.
Mas eis que o pai, depois de receber uma ervilha na narina
direita, se ergue de supetão e avança, colérico,
em direcção ao Paulinho. O miúdo levantou-se
a tremer, mas depressa se recompôs e, com o sangue
frio exacto, declarou:
“Não me digas, pai, que vais bater numa pobre
criança indefesa que, perante a indiferença
dos adultos, decidiu divertir-se um pouco. Se existem culpados
nesta sala, são vocês que, ao longo do jantar,
nada fizeram senão conversar uns com os outros, ignorando-me,
votando-me ao ostracismo!”
Os adultos entreolharam-se, envergonhados.
No minuto seguinte, estavam todos a brincar às catapultas,
mandando com ervilhas uns aos outros, enquanto o Paulinho
dissertava sobre a filosofia de Descartes.
A evasão
E de súbito teve a ideia: aproveitar a colher e escavar
um túnel por baixo do muro da prisão, até
à liberdade!
Começou o penoso trabalho de escavação
nessa noite mesmo. A terra era dura mas a colher aguentava-se.
No entanto, havia um problema: onde esconder a terra escavada?
O túnel demoraria semanas a fazer e a terra que ele
iria tirar todas as noites formaria um monte difícil
de esconder naquela cela tão pequena. Por isso, decidiu
comer a terra. E estabeleceu um horário: escavava
entre a meia-noite e as duas da madrugada, comia a terra
entre as 2 e as 4. Durante o dia, fazia a digestão.
A princípio, foi-lhe difícil engolir a terra,
sobretudo mastigá-la. Mas o homem a tudo se habitua
e, quando o objectivo é a liberdade, todos os esforços
são poucos. Por isso, acabou por se habituar e, ao
3º dia de escavação, recusava os alimentos
da prisão, preferindo a terra que engolia todas as
noites.
Ao 15º dia, o túnel já tinha alguns metros
de comprimento e as autoridades prisionais começavam
a ficar preocupadas com a recusa do prisioneiro em alimentar-se.
Ao 30º dia, a sua greve de fome era conhecida de todos,
menos dele próprio, que cada vez gostava mais de
comer terra.
Ao 45º dia, uma comissão de apoio ao grevista
da fome conseguia um indulto da pena e ele era posto em
liberdade.
Faltavam-lhe 45 centímetros de túnel para
atingir a superfície.
(também publicada na Revista Pão Comanteiga
nº17, fevereiro 1983)
Os banquetes
O cavaleiro Bellevue Quatrevingt-quatre andava preocupado.
Desde a última batalha, longa e sangrenta como as
demais, que a vida no castelo não passava de um banquete
contínuo. Convidados vindos dos quatro cantos do
Condado empanturravam-se com os melhores veados da região,
perus, frangos, coelhos, passarinhos e toda a sorte de espécies
cinegéticas.
No fundo, o cavaleiro Bellevue Quatrevingt-quatre gostava
daqueles lautos banquetes, em que a bebedeira geral atingia
níveis inauditos, mas havia algo que o repugnava:
o hábito de comer com as mãos.
É que os Quatrevingt-quatre, embora rudes e treinados
para a vida dura das batalhas, tinham também uma
educação esmerada que lhes permitia repugnarem-se,
de vez em quando, com algumas coisas. E comer com as mãos
era deveras repugnante!
Por isso, a partir daquela noite, o cavaleiro Bellevue Quatrevingt-quatre
proibiu que se comesse com as mãos.
Contrariados, os convidados tiveram que passar a comer com
a boca...
(também publicada na Revista Pão Comanteiga
nº17, fevereiro 1983)
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