RODRIGO CAMPOLIDE
Programa emitido a 8 de Maio 1983
Abertura
A equipa do Pão Comanteiga sempre admirou as profissõess
com duas vertentes, aquelas em que os trabalhadores são
obrigados a ser bons em duas coisas simultaneamente. É
o caso dos guarda-fios, dos guarda-nocturnos, dos torneiros-mecânicos,
dos físico-químicos, dos otorrinolaringologistas
e dos nadadores-salvadores – para citar apenas alguns
exemplos.
Esta semana pensámos ter chegado a altura de prestar
a nossa singela, mas expressiva. Homenagem a uma dessas
profissões – mais precisamente, aos nadadores-salvadores
deste país com uma porrada de quilómetros
de praia.
A estação balnear aproxima-se e vai começar
a faina dos nadadores-salvadores, indo buscar banhistas
para lá da rebentação das ondas, com
o estâmago cheio de talhadas de melão e os
pulmões inundados das águas deste mar salgado,
ó lágrimas de Portugal, quantas ondas do mar
não serão lágrimas de hipertensão
arterial!
E, como representante dos nadadores-salvadores de Portugal,
escolhemos esse perfil de herói marítimo que
é Rodrigo Campolide.
Mais uma personagem desconhecida do grande público
que o Pão Comanteiga tem o despudor de desvendar:
Rodrigo Campolide, 27 anos, nadador-salvador na praia do
Meco, possuidor de uma caixa de ar suficiente para fornecer
respiração artificial a uma dúzia de
afogados, pele crestada pelo sol da Caparica, olhos habituados
a nus, apreciador de feijoada, sobretudo aos domingos e
sonhador. Sim! Rodrigo Campolide não passa de um
nadador-sonhador que aspira a fazer a travessia do Canal
da Mancha, provavelmente a nado...
Pois é de Rodrigo Campolide que vamos falar durante
as próximas 3 horas, nas duas ondas marítimas
da Rádio Comercial – a estação
que se ouve bem vestido e nu não se ouve nada mal...
Frases
* Rodrigo Campolide é um homem simples. Para ele,
existem apenas duas espécies de nudistas: os homens
e as mulheres.
* Numa praia cheia de turistas, era natural que o nadador-salvador
soubesse falar línguas estrangeiras. Mas o que é
certo é que Rodrigo Campolide não sabe uma
palavra de francês, inglês ou alemão.
O que vale é que os afogados se exprimem bastante
bem por gestos...
* Rodrigo Campolide já viu tantos homens e tantas
mulheres nus que cada vez se opõe mais á igualdade
entre os sexos!
Naquele dia...
Naquele dia, Rodrigo Campolide levantou-se de manhã.
Até aqui, tudo bem.
Aliás, tudo bem mas sem exageros. É que nem
sempre era de manhã quando Rodrigo Campolide se levantava.
Por exemplo, quando dormia a sesta ao sábado, levantava-se
à tarde. E mesmo a meio da noite, Rodrigo Campolide
podia muito bem levantar-se porque tinha insónias
ou sentia necessidade de ir á casa de banho. No entanto,
nem sempre era necessário levantar-se a meio da noite
para ir á casa de banho; podia ser no princípio
da noite ou já de madrugada, ou a qualquer outra
hora do dia e, acrescente-se que não era necessário
estar deitado. Muitas vezes mesmo, Rodrigo Campolide estava
em pé quando sentia necessidade de ir à casa
de banho, pelo que não precisava de se levantar.
De qualquer modo, Rodrigo Campolide podia levantar-se de
manhã sem ter necessidade de ir à casa de
banho, mas apenas porque já não tinha sono
e achava que eram horas de se levantar. Ou mesmo, não
sendo horas, apetecia-lhe levantar-se e pronto!
Assim é impossível escrever uma porcaria de
um texto, bolas!
Perfil de Rodrigo Campolide
De todos os personagens desconhecidos do grande público
que o Pão Comanteiga tem vindo a revelar aos seus
ouvintes, Rodrigo Campolide é, sem dúvida,
aquele que se pode conhecer melhor – cujo perfil (e
mesmo a parte da frente) pode ser apreciado em toda a sua
plenitude.
Para tanto, basta deslocarmo-nos à praia do Meco,
aqui bem perto de Lisboa, e observarmos com atenção
– embora discretamente, que o nosso homem, salvo seja,
é muito susceptível.
Após um cabelo encaracolado e revolto, encontramos
a testa, dois dedos de testa, sempre enrugada, abaixo da
qual se instalam dois olhos, um de cada lado, ambos da mesma
cor, brilhantes e azuis, fixos no Atlântico, à
procura de afogados. Há uns meses, após uma
rixa com um banhista que teimava em não tirar o calção
de banho, Rodrigo Campolide exibiu um olho negro, mas a
coisa foi passageira...
Quanto ao nariz, é único, assim como a boca
que, debruada a lábios, apenas se abre em caso de
bocejo, eructação ou fala.
O queixo é flamengo e as orelhas de abano; o pescoço
impede a cabeça de andar à deriva e faz um
compromisso perfeito com os ombros, que são dois
e largos. O peito é uma caixa de ar impressionante,
com capacidade para vários litros e muitos pelos;
no entanto, alberga apenas dois pulmões e um coração.
As costas são cobiçadas pelos espanhóis
e ao longo delas se pescam a sardinha, o carapau e o atum.
A barriga é lisa e musculada, tendo apenas um bigo
a alterar a sua lisura.
Depois vem a parte mais difícil de descrever, porque
só visto e isto é um programa de muita responsabilidade.
Nádega nos proíbe, no entanto, de assinalar
um sinal particular: um rubi no início do quadrícipete,
na área da sua inserção perineal. Não
sei se me fiz entender...
Das coxas destacam-se as pernas que finalizam, bruscamente,
nos tornozelos, onde se iniciam os pés. É
tudo aos pares: dois joelhos, duas tíbias, dois peróneos,
dois tornozelos, dois tendões de Aquiles. Aquilo
é que são tendões!
É natural que, com este perfil, todas as frequentadoras
da praia queiram ver Rodrigo Campolide de frente...
Entrevista a Rodrigo Campolide
A – Temos aqui à nossa frente, nesta particularidade
idiossincriática, o conhecido nadador-salvador Rodrigo
Campolide, homem habituado a análises electroforéticas
e outras ambiguidades e que, durante os próximos
minutos, nos engravidará com as suas consequentes
virtualidades.
B – Boa tarde, Carlos Cruz... é uma cordialidade,
para mim, estar neste programa de larga auscultação
e será com o maior atrevimento e comiseração
que responderei ao seu questionável inquérito...
A – Pois, Rodrigo Campolide... penso que os nossos
excrementados ouvintes gostariam de saber se ser nadador-salvador
é verdadeiramente intempérico.
B – Bom...... para falar com atitude, intempérico
não será o propósito inspeccionado...
A profissão de nadador-salvador tem algumas meritâncias,
mas ocorrência virtual de afogamentos continua a ser
bastante, como direi...
A – Discrepante?...
B – Não iria tão longe... talvez mastoideia,
embora eu esteja sempre atentivo, olhos instalados naquele
mar inoperante e saiba distinguir com alguma concupiscência
quando há perigo, ou quando tudo corre pelo melhor
discernimento...
A – De qualquer modo, trata-se uma profissão
beligerante...
B – Enfim... se tomarmos em linha de prumo os acontecimentos
quase oficinais que, dia a dia, nos assalteiam os cerebelos,
somos obliterados a concluder que se os banhistas fossem
mais vociferantes, se tivessem um pouco mais de codícia,
talvez os apartamentos não fossem tão enormes
e pudéssemos descansar mais vezes..... não
sei se me fiz entender...
A – Perfeitamente... mas, no fundo, o que o fez optarivar
por essa profissionalidade, tão divergente de qualquer
outra?
B – Ora!... virtudes, impropérios, coisas da
vida... dizem que nasci já com uma pretendência
para nadador-salvador... e, mais tarde, já na adolescência
– idade em que comprometemos mais inadversidades –
atirei-em ao mar por mais de uma vez, com uma gana que logo
me desmarcou de todos os meus condóminos do liceu
da Trafaria...
A – Vejo, portanto, que se o Rodrigo não fosse
nadador-salvador, não se sentiria beneficiado pela
predestinação uterina...
B – São essas as palavras ocupacionais para
representar o meu caso...... No entanto, não quero
que os ouvintes façam anastomoses a meu respeito!...
Lá por trabalhar numa praia de nudistas, não
é inquisitorial que eu seja um tarado analítico!
Antes pelo aniversário, penso ser um homem conglomerado,
persistente e mesmo obliterante.
A – Acreditamos sanitamente... mas nunca sentiu um
desejo profundo de alternar com alguma nudista?
B – Falemos verdade: sou um homem tangente mas, no
entanto, não deixo de ter as minhas concorrências,
nem sempre abstinentes. Confesso que, uma vez por outra,
me senti obsequiado a acercar-me de certa nudista e de a
aprimorar com a minha galactância... mas refreio-me...
A – Obrigado, Rodrigo Campolide... foi um laser permanecer
consigo neste convivente espaço pluricontinental
e esperamos que a sua carreira continue cheia de fulgurâncias
e indulgências.
B – Obrigado sou eu, Sr. Carlos Cruz... e aproveito
esta oportunância para enviar daqui o meu acenante
adeus a uma avó por parte de um tio, que muito admiro
pela sua hérnia e por toda a sua vida, sempre macerada
pela incidência democrática. Adeus avó
Teresinha! Assim que tiver obstipação, vou
visitá-la!...
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